Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Hoje à noite, com transmissão ao vivo pelo Canal Brasil e G1 (a partir das 20h45, com desfile de artistas pelo tapete vermelho), serão entregues os prêmios Kikito aos melhores do cinema brasileiro e latino-americano.
A oitava e última noite da mostra competitiva exibiu duas produções gaúchas: uma decepcionante — “O Avental Rosa”, de Jayme Monjardim — e outra — a animação “A Cidade dos Piratas”— instigante, anarquista e louca aventura cinematográfica de seu diretor, Otto Guerra.
O experiente diretor de TV, Jayme Monjardim, definiu “O Avental Rosa” como seu “filme mais autoral”. O filho de Maysa (e autor da ótima minissérie sobre a figura materna) contava com um imenso elenco liderado pela baiana Cyria Coentro e pelo uruguaio Cesar Troncoso, dois atores de reconhecido talento. Com eles, muitos outros intérpretes, em especial gaúchos, em papéis pequenos. E participações especiais de Nicette Bruno e Leonardo Medeiros.
No palco, ao lado de seu produtor (o cineasta gaúcho Paulo Nascimento, da Accorde), Monjardim e sua imensa equipe anunciaram um filme sobre tema relevante: as cuidadoras, que, com seus aventais cor-de-rosa, atendem a pacientes, muitos deles terminais, na rede hospitalar. O diretor e sua protagonista levaram dois aventais ao palco do Palácio dos Festivais.
O diretor das superproduções “O Tempo e o Vento”, “Olga” e “O Vendedor de Sonhos” (este, baseado em best-seller de autoajuda de Augusto Cury) perdeu a valiosa chance de fazer seu filme mais autoral. O roteiro de “O Avental Rosa” é recheado de incongruências e diálogos que mastigam a trama para o espectador, sem deixar uma fresta que seja para ele preencher com sua imaginação.
O elenco está tão mal dirigido, que uma personagem em especial (a irmã da protagonista, interpretada por Tânia Bondezan) não fala, grita (a ponto de pensarmos que o som sofreu processo de avaria). Sutileza parece opção desconhecida (que contraste com o denso e sutil desempenho de Osmar Prado na pele do treinador Kid Jofre, na cinebiografia de Eder!). Os enquadramentos de “O Avental Rosa” são televisivos e nos deixam saudosos dos planos-sequência de “Simonal”. Ou do frescor das imagens do brasileiro “Benzinho” e do paraguaio “As Herdeiras”, os franco-favoritos na conquista dos principais Kikitos, na noite de hoje, 25 de agosto.
Um dos cenários do filme de Monjardim, a padaria do personagem de Cesar Troncoso, parece retirada de uma telenovela do SBT. Para agravar, há erotismo recorrente e fora do lugar. A protagonista, que se desdobra como voluntária (embora sempre esteja pensando em auferir dinheiro para pagar as contas), se acaricia (numa determinada sequência, como se estivesse num comercial de perfumes) e se masturba como se fosse a mais solitária das mulheres. Por que, se o filme deixa claro desde o início, que o proprietário da padaria é apaixonado por ela? Por que não passa a viver um tórrido romance com ele, se os dois são viúvos? O roteiro (nascido de argumento de Claudia Netto e escrito por ela e Monjardim) diz que a cuidadora viveu experiência muito ruim com o primeiro marido. Razão duplicada para procurar um parceiro melhor, não? O final do filme (que não vamos revelar) se mostra contraproducente para um filme que se propõe a valorizar o papel das cuidadoras hospitalares.
Para resgatar o astral do festival, que teve a melhor e mais plural seleção brasileira de sua história — indo de filmes autorais como “Mormaço” e “Ferrugem”, ao cinema-espetáculo, bem representado pelas cinebiografias de Simonal e Eder Jofre, passando pelo sólido “Benzinho”— a tela do Palácio dos Festivais recebeu o alucinado “A Cidade dos Piratas”, quarto longa-metragem dos Estúdios Otto Guerra.
Um filme de alma anarquista e politicamente incorreto. Uma animação com pedigree documental, uma cinebiografia de dois anarquistas: o cartunista Laerte Coutinho, que durante o processo de filmagens tornou-se crossdresser e virou “a” Laerte, e o próprio Otto Guerra, que enfrentou um câncer e teve que conviver com a possibilidade de não concluir o filme (animações consomem anos de seus realizadores).
“A Cidade dos Piratas” ia, de início, transformar historietas contidas nas tiras “Piratas do Tietê” (publicadas outrora na Folha de S. Paulo) em razão principal de sua narrativa. Só que “a” nova Laerte renegou os personagens por serem “machistas e misóginos”. Não queria mais saber deles. Otto entrou em parafuso e veio o câncer para agravar. Resolveu desestruturar seu roteiro original e partir para a transgressão. Sua parceira e sócia, Marta Machado desesperou-se. Os compromissos dos Estúdios Otto Guerra com organismos de fomento exigiam que se cumprisse o prometido: um filme baseado nas tiras laertianas. Ela rompeu com o velho parceiro e foi cuidar da vida (e fazer mestrado em cinema de animação, em Santa Catarina)
Dali em diante, sustentado em sólido (não se deixe levar pelas aparências) roteiro de Rodrigo John (grande animador gaúcho), Otto transformou o filme em um “documentário autobiográfico”. Meteu a vida dele (com o câncer e o aparelho de surdez que o acompanha, pois está ouvindo muito pouco) na trama, somando-a aos piratas pirados de Laerte, cidadão cisgênero, e à vida (e transformação) vivida por ele (ela, agora).
E Otto (e Rodrigo) colocaram mais, muito mais, na trama: o Brasil quinhentista dos bandeirantes, desbravadores proto-capitalistas e matadores (ou escravizadores) de índios, a poesia de Fernando Pessoa (na voz do ator lusitano Luiz Ramos), criou personagens como Azevedo (voz de Marco Ricca), líder do Partido Revolucionário Conservador, que persegue aqueles que não são brancos-cisgêneros-religiosos, e faz de um médico ortopedista, Ivan (voz de Matheus Nachtergaele), representação ficcional daqueles que vivem como maridos no recôndito do lar e buscam pares do mesmo sexo, travestidos, na noite.
Para enriquecer o filme, há rica parte documental. Trechos de programas de TV (“Provocações”, de Antonio Abujamra, “Marilia Gabriela Entrevista” e o “Transando com Laerte”) somam-se a fragmentos de longas ficcionais (um, de J.B. Tanko), curtas-metragens e depoimentos gravados para o próprio longa ottiano. Num fragmento dos mais divertidos, o professor, cineasta e ator Jean-Claude Bernardet pergunta por que Laerte resolvera “fazer a transição justo no momento da menopausa”. Ou seja, já sexagenário.
“A Cidade dos Piratas” é um filme de aparência (só aparência!) maluquete. Quem prestar atenção verá que ele traz muitas camadas de leitura, destina-se a público adulto (como “Rocky & Hudson”, “Wood & Stock” e “Sbórnia”) e leva para o longa-metragem de animação brasileiro, prática consagrada por dois curtas, em especial, “Dossiê Rebordosa”, de César Cabral, selecionado pelo Festival de Documentários de São Paulo, e “Torre”, de Nádia Mangolini.
O curta de nome enigmático, dirigido por Nádia, que participou da noite de encerramento das exibições da boa safra gramadiana deste ano, também é um documentário que substitui, por desenhos, a imagem de seus depoentes (os filhos do guerrilheiro Virgílio Gomes da Silva, assassinado em 1969 pelo aparelho repressivo militar). Órfãos de pai “desaparecido” e com a mãe encarcerada, os meninos, incluindo uma bebezinha, foram entregues à Febem. Aflitos, eles se amarravam à cadeira onde a irmãzinha de meses era colocada, para não serem separados. E roubavam leite para alimentá-la. A ditadura é vista pelos olhos (e lembranças) de Gregório, Virgílio Jr., Vlademir e Isabel, os quatro filhos de Virgílio, hoje homens e mulher feitos. A beleza evocativa do desenho e a força das lembranças mostram que um curta sobre fatos políticos pode (e deve) fugir, de forma criativa e revitalizadora, da fórmula gasta das cabeças falantes, registradas em enquadramentos convencionais.
O último curta da competição — “Apenas o que Você Precisa Saber de Mim”, de Maria Augusta Nunes, produção catarinense da Novelo — é uma bela surpresa. Dois adolescentes (Laura e Fábio), skatistas, se conhecem numa movimentada pista, em Floripa. Uma câmara vertiginosa (de Gabriel Rinaldi) nos transporta para dentro do esporte radical e para as (misteriosas) emoções dos contidos jovens. A cidade, com sua ponte nova — e a velha Hercílio Luz ao fundo — ganha imenso relevo (e sequência arrebatadora, que nos tirará o fôlego). Os protagonistas (Alice Doro e Aleff Resler) são louros-ruivos, de pele muito branca (“ela”, bem sardenta), mas o amigo de Fábio é black (Rafael Gregório) e todos se encontram em uma festa rapper, na qual são cantados versos potentes e denunciadores. Vale repetir, “Apenas o que Você Precisa Saber de Mim” é uma grata surpresa vinda de Santa Catarina, fruto das novas forças femininas que estão renovando o cinema brasileiro.