Fest Brasília – Feministas movimentam debate do filme mineiro “Luna”
Por Maria do Rosário Caetano, de Brasília (DF)
Temas polêmicos começam a agitar a 51ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que prossegue até domingo, 23, no Cine Brasília e em cinemas de 13 cidades-satélites. No debate do longa mineiro, “Luna”, de Cris Azzi, os questionamentos, em especial de vozes feministas, se fizeram ouvir. O filme foi tachado de “superficial”, de “idealizar o suicídio”, em sequência onírica, e de abrir pouco espaço para profissionais mulheres em seus créditos técnicos. Mas o debate se deu em termos civilizados e o realizador mineiro de “Luna” respondeu com calma a todas as perguntas. Perguntas que, mesmo duras, foram feitas em tom reflexivo, jamais agressivo. Nada que lembrasse o crispado debate de “Vazante”, de Daniela Thomas, ano passado.
A outra polêmica do festival surgiu na internet e refere-se à ausência do documentário “Três Refeições”, de Maria Maia, na competição dedicada aos filmes brasilienses. A cineasta acusou a Câmara Legislativa do DF (e indiretamente o comando do festival) de responsável pela exclusão do filme da Mostra Brasília, dedicada à exibição e premiação do melhor da produção candanga. Maria viu “censura” na exclusão de seu filme, motivada por “razões políticas” e não estéticas. O longa documental acompanha uma das Caravanas comandadas por Luiz Inácio Lula da Silva, com o propósito de lutar contra a fome (daí as três refeições do título).
O ator Guilherme Reis, titular da Secretaria de Cultura do DF e presidente do festival, respondeu, em pessoa e no espaço digital, ao protesto da cineasta, esclarecendo que “a Mostra Brasília é de total responsabilidade da Câmara Distrital” e que “bastava uma olhada na programação dos filmes distribuídos por várias mostras para se perceber que a liberdade de escolha foi total”.
Na tarde da última segunda-feira, 17 de setembro, o assunto saiu da internet e chegou ao público que assistia, no Cine Brasília, a dois curtas (“Para minha Gata Mieze” e “O Homem Banco”) e ao longa-metragem “Marés”, de João Paulo Procópio. O descolado e carismático apresentador da sessão, André Gonzales, da banda Móveis Coloniais de Acaju, leu — em nome da comissão de seleção da Mostra Brasilia (Kakau Teixeira, Núbia Santana, Diana Svintiskas, Adriano de Angelis e Peterson Paim) — nota oficial isentando a Câmara Distrital de qualquer interferência nas decisões do colegiado e reafirmando que “os três longas e 18 curtas da competição foram selecionados entre quase 80 candidatos” e que “os critérios utilizados passaram longe da censura política”. Seguiram procedimentos estético-cinematográficos.
Depois de “Torre das Donzelas”, de Susanna Lira, o grande frisson do festival até agora (comenta-se que o mineiro André Novais Oliveira vem aí com outro peso-pesado, “Temporada”), foram exibidos mais três concorrentes: paulistano “Los Silencios”, de Beatriz Seigner, que alcançou boa receptividade, o brasiliense “New Life”, de André Carvalheira, e o mineiro “Luna”.
Como era de se esperar, a plateia do filme, que representa Brasília na competição, foi a maior de todas. Havia gente sentada no chão e quando Carvalheira, fotógrafo de filmes como “Comeback”, “Ultimo Cine Drive-in” e “Rock Brasília”, chamou sua equipe ao palco, o espaço foi tomado por 40 atores e técnicos. O cineasta, autor de 20 curtas e estreante no longa-metragem, festejou a imensa equipe que o acompanhava: “ela é a prova do quanto a indústria do audiovisual dá empregos”.
O filme, que traz no elenco alguns dos mais reconhecidos atores de Brasília (Murilo Grossi, André Deca, Catarina Accioly, Wellington Abreu, Sérgio Sartori, Larissa Mauro e um convidado, Renan Rovida), foi, porém, recebido com aplausos protocolares. O público não se envolveu com a história fragmentada de um arquiteto idealista e angustiado (Rovida), genro de um empreiteiro rico (Grossi). “New Life” parte de ótimas ideias, uma delas retirada da vida real: em Goiás, um shopping center montou vistoso estande de venda de imóveis, no qual atores em carne e osso representavam uma família ideal, destas tipo comercial de margarina, para atrair compradores. Tal artifício é recriado no filme de Carvalheira, mas as partes do filme não se casam em todo orgânico. A narrativa acaba por demais episódica e os personagens pouco desenvolvidos. Nem o talento cômico de André Deca, na pele de um esperto e maleável candidato a senador, dá bom resultado.
Os muitos episódios do filme foram qualificados, no debate, como “esquemáticos, caricaturais”. O diretor ouviu as opiniões divergentes com calma e contou, para defender “New Life”, com intervenções articuladas por sua diretora de arte, a combativa Maíra Carvalho, pelo montador Marcius Barbieri e pelo ator Murilo Grossi. Um dos questionamentos veio da crítica sergipana Suyenne Corrêa, que externou seu temor de que o final do filme — uma performance de vendedores de imóveis com armas na mão — fosse lido pelos espectadores como defesa do armamento civil, ponto programático de um dos candidatos à presidência da República.
Carvalheira garantiu que “as armas eram de pinball” e que a sequência fora construída “com sentido farsesco, satírico”. Que o filme passara por testes com outros públicos e que, até então, ninguém fizera tal leitura. Murilo Grossi também reafirmou o tom satírico do filme, mas ponderou que o Brasil vive momento de tamanha polarização e ódio, que tudo parece possível.
Outra sequência de “New Life” incomodou mais uma debatedora. Aquele em que o arquiteto chega em casa e encontra a esposa depressiva (Fernanda Rocha) adormecida. Mesmo assim, ele faz sexo anal com ela. Ou seja, “pratica um ato de estupro”. O time masculino que representava o filme ficou em silêncio. As duas mulheres sentadas à mesa, a atriz Catarina Accioly e Maíra Carvalho, afirmaram que a intenção do filme fora mostrar as “pequenas agressões cotidianas” sofridas pelas mulheres. “O marido chega estressado com seus problemas e despeja em sua esposa, numa mulher deprimida e sob efeito de remédios, os seus desejos, sem se interessar em saber se este era o desejo dela”, concluíram.
Os dois curtas-metragens exibidos na segunda noite (domingo, 16 de setembro) da mostra competitiva — “Liberdade”, dos paulistanos Pedro Nishi, de origem japonesa, e Vinícius Silva, afro-brasileiro, e “Sempre Verei Cores no seu Cinza”, de Anabela Roque, portuguesa radicada no Rio de Janeiro, foram bem recebidos pelo público e motivaram debate positivo. “Liberdade”, mostram seus autores, não é só “o famoso bairro de japoneses paulistanos”, mas sim um antigo reduto de afro-brasileiros, expulsos para as periferias da metrópole, e substituídos por imigrantes vindos do Japão. Estes imigrantes, tidos como modelo por sua eficiência laboral, enriqueceram e se mudaram para bairros mais ricos. No presente, novos imigrantes negros, em especial vindos da Guiné e do Haiti, começam a viver, em pensões coletivas, na Liberdade. O filme centra sua narrativa em uma mulher japonesa, Satsuke, e em um músico, Sow, guineense.
O curta carioca de nome-manifesto (“Sempre Verei Cores no seu Cinza”) é um libelo em defesa da UERJ, a Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que sofreu agudo processo de sucateamento. Para defendê-la, à UERJ e à universidade pública, o filme registra performances organizadas por alunos e pela professora do Instituto de Artes, Eloísa Brantis, em espaços públicos da capital carioca, incluindo a porta da Assembleia Legislativa.
Só um curta — o vibrante e potente “Mesmo com Tanta Agonia”, da mineiro-paulistana Alice Andrade Drummond — foi exibido na terceira noite da competição (segunda-feira, 17 de setembro).O filme, o mais forte e poético entre os exibidos até agora — nasceu da soma de duas notícias colhidas em telejornal sensacionalista: a morte de um ambulante nos trilhos de um trem paulistano e a moda de se comemorar aniversários em limusines em trânsito pela Avenida Paulista.
“Estas duas notícias me chocaram”, contou Alice. “Como é que se pode passar, sem mais nem menos, de uma tragédia terrível, como um trem dilacerando o corpo de um homem caído nos trilhos, para a futilidade de uma festa de aniversário comemorada em luxuosa limusines?”. Depois de pensar muito sobre os dois e tão díspares assuntos, a cineasta enriqueceu seu roteiro em parceria com o produtor Matheus Rufino e sua protagonista, a atriz Maria Leite (também cineasta, além de contra-regra e diretora de arte).
Com elenco que rende muito (destaque também para Preta Ferreira), ambientes físicos opressivos (a cozinha de um restaurante, o vagão de um trem lotado e uma limusine que perambula por uma Avenida Paulista feérica), Alice construiu um belo filme. Suas mais belas sequências acontecem dentro do vagão de trem, povoado de rostos cansados, que regressam da labuta diária. Esta é a parte documental do filme, que se harmoniza organicamente com a narrativa ficcional.
“Luna”, o quarto concorrente na categoria longa-metragem, foi filmado em Jardim Canadá, em Nova Lima, no entorno da grande BH. Lá vive a protagonista do filme, a estudante Luana, que se apresenta nas redes sociais como Luna.
Quando o filme começa e vemos que ela foi vítima de vazamento de imagens de sua intimidade na internet, imaginamos que veremos um filme similar ao paranaense “Ferrugem”, de Aly Muritiba, que semanas atrás conquistou o prêmio máximo em Gramado. Mas as propostas são bem diferentes. “Ferrugem” é denso e tenso. “Luna” é mais leve. Parece o tempo todo não querer perder de vista o público adolescente. Daí, não se aprofundar em temas que (apenas) sugere: o amor homoafetivo, o possível assédio de pai sobre filha, o suicídio. E, se “Ferrugem” mergulha na dor, levando uma família enlutada a um praia chuvosa para purgar culpas, “Luna” aposta na catarse. Seu final evoca um mix de performance vingativa (de adolescentes) com esculachos feministas. Mais que à reflexão, o filme nos conduz a um final feliz e reconfortante.
Na plateia, uma debatedora quis saber por que o filme só expôs corpos femininos, nunca os masculinos. Em especial, na catártica cena final. A crítica e integrante de coletivos feministas, Samantha Brasil, quis saber por que o suicídio aparecia no filme como algo idílico, em paisagem verdejante, com Luana sorvendo a seiva de uma árvore frondosa. Cris Azzi, o diretor, disse que consultou fontes médicas que garantiram a ele que pessoas que tomam grande quantidade de pílulas em busca da morte, e sobrevivem, podem ter delírios. Será que eles são reconfortantes como o visto no filme? Ou pendem mais para duros pesadelos?
“Luna” se passa no momento em que o impeachment da presidente Dilma Roussef se processa e é debatido em sala de aula na escola frequentada por Luana. O mesmo momento histórico ambienta “Marés”, longa de estreia do produtor brasiliense João Paulo Procópio. Um fotógrafo (o ator paranaense Lourinelson Vladmir, de “Para minha Amada Morta”) é casado com uma fogosa argentina (Julieta Zarza). Depois de período de tórrido amor e do nascimento da filha do casal, o alcoolismo do rapaz começa a por tudo a perder. As sessões nos Alcoólicos Anônimos pouco ajudam e Valdo Gomes não encontra a paz nem nos braços de outras mulheres, nem na militância política (ao lado dele, vivem vizinhos-defensores do impeachment, que ele combate), nem no carnaval, nem em seu trabalho (ele produz fotos artísticas, algumas delas expostas na espaçosa mansão que herdou dos pais). O filme foi bem recebido pelo público da Mostra Brasilia e houve quem entendesse que ele representaria melhor a cidade na competição nacional, que o escolhido “New Life”.