É Tudo Verdade premia “Cine Marrocos”

Por Maria do Rosário Caetano

O júri da 24ª edição do Festival É Tudo Verdade fez a coisa certa: elegeu o poderoso documentário paulistano “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil, como o melhor longa da competição brasileira. Já a Crítica (júri Abraccine) preferiu o pernambucano “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes. Este filme ganhou, ainda, menções honrosas do júri oficial e do júri ABD-SP (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas).

A seleção brasileira do É Tudo Verdade 2019 reuniu sete filmes de grandes qualidades. “Soldados da Borracha”, do cearense Wolney Oliveira, é um vigoroso registro da saga de 60 mil brasileiros que foram coletar látex, numa Amazônia inóspita, para fornecer borracha aos Aliados, durante a Segunda Guerra Mundial. Quase metade deles morreu vítima da malária e da incúria. O filme foi eleito o melhor da competição pelo júri ABD-SP.

“Soldados Estrangeiros” é o melhor longa-metragem de José Joffily (este, em parceria com Pedro Rossi). A partir do testemunho de três brasileiros engajados em exércitos internacionais (a Legião Estrangeira francesa, as Forças Armadas de Israel e os Marines dos EUA), a dupla constrói um filme original, substantivo e impactante.

“Niède”, de Tiago Tambelli, constrói um envolvente (apesar de seus 135 minutos) retrato da octogenária arqueóloga paulista, de origem francesa, Niède Guidon, criadora do Parque da Serra da Capivara, orgulho do Piauí. O filme soma muitas e essenciais informações a tempos reflexivos e sensoriais, nos levando ao passado remoto e nos trazendo ao Brasil de nossos dias. Niède é uma grande e incansável narradora.

Dois filmes sobre a poderosa música popular brasileira encantaram o público (que não vota no É Tudo Verdade). “Dorival Caymmi – Um Homem de Afetos”, de Daniela Broitman, imantou a todos com o carisma do artista baiano, um sedutor nato, que ensinou Carmen Miranda a revirar os olhos (prática que ele, Caymmi, nunca abandonou). Além das canções do homem que conversava com o vento e com o mar, o filme exala afeto, sem fugir das zonas de sombra do biografado. Os próprios filhos (Nana Caymmi, em depoimento sincero e, pasmem, elegante e sóbrio) contam que o pai era moralista (passou sete anos sem trocar palavra com a filha, porque ela desquitou-se) e mulherengo (causando imensos dissabores à esposa Stella, que abandonou a carreira de cantora para dedicar-se integralmente a ele).

“Rumo”, de Flávio Frederico e Mariana Pamplona, pode ser definido como um documentário-comédia. Claro que, neste propósito, enriquecido pelo uso do cinema de animação (cada vez mais forte no cinema documental), a dupla encontrou substantiva matéria-prima nos dez integrantes do grupo uspiano que integrou a Vanguarda Paulista oitentista. São divertidíssimos os depoimentos de Luiz Tatit, Ná Ozetti, Gal Oppido, Akira Ueno e pares. Verdadeiro exército de Brancaleone da canção quase falada, os “rumeiros” enfrentam como podem os imensos empecilhos encontrados, ao longo de décadas, frente à poderosa indústria cultural.

Estes cinco concorrentes têm muitas qualidades, mas foram superados, com justiça, pelos dois grandes vencedores. “Cine Marrocos”, primeiro longa solo de Ricardo Calil (“Uma Noite em 67” e “Imperial” são parcerias com Renato Terra), já chegou ao É Tudo Verdade com um prêmio internacional (melhor filme no Festival de Guadalajara-México). Prova de que conta uma história universal, até porque amparada em grandes clássicos do cinema como “Crepúsculo dos Deuses”, de Billy Wilder, “A Grande Ilusão”, de Jean Renoir, “Noites de Circo”, de Bergman, “Júlio César”, de Mankiewicz, e da saborosa comédia italiana “Pão, Amor e Fantasias”, com Vittorio de Sica e Gina Lollobrigida.

Com maestria de veterano, Ricardo Calil conduz um grupo de moradores sem-teto ao fugaz estrelato. Ancorados em imenso edifício erguido sobre o outrora luxuoso Cine Marrocos (situado na hoje decadente Cinelândia paulistana), jovens e bem-vividos, gordos e magros, brancos, mestiços e negros, brasileiros e estrangeiros (em maioria, africanos) contam suas vidas. Explicam por que foram parar numa ocupação do MSTS (não confundir com o MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto, comandado por Guilherme Boulos).

Calil parte de um fato histórico: em 1954, ano do quarto centenário da capital paulista, Paulo Emílio Salles Gomes e amigos influentes organizaram o primeiro (e único) Festival Internacional de Cinema de São Paulo, ao qual compareceram nomes de grande projeção cinematográfica: Eric Von Stroheim (diretor de “Greed” e o mordono de Glória Swanson em “Crepúsculo dos Deuses”), Errol Flynn, o rei dos piratas de celulóide, Michel Simon, o ator-fetiche de Jean Renoir, o “gangster” Edward G. Robson, as belas Jean Fontaine, Jeanette MacDonald e Ann Miller e o crítico André Bazin. O cenário deste verdadeiro desfile de estrelas foi o imponente Cine Marrocos.

A partir de uma oficina para atores, frequentada por alguns dos muitos sem-teto do Cine Marrocos, Calil e equipe chegaram ao objetivo primordial: que eles encenassem trechos dos filmes exibidos no histórico festival paulistano. O resultado é impressionante. Vemos trechos originais e os reencenados. Mas a cinefilia (a essência metalinguística do filme) não deixa a tragédia social vivida pelos “ocupadores” em segundo plano. Há sóbrio equilíbrio entre a ilusão do cinema e a verdade daquelas 800 famílias ameaçadas de despejo, pela polícia, a qualquer hora. E há, no filme, um personagem impressionante (que não revelaremos para não quebrar o prazer da descoberta). Ele dará depoimento essencial aos desdobramentos da narrativa. Mesmo que, depois, a realidade desconstrua, implacavelmente, o que dissera.

“Cine Marrocos” é um filme incontornável. Um híbrido da grandeza de “Era o Hotel Cambridge”, de Eliane Caffé, também construído com ocupantes de um hotel outrora luxuoso.

“Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, do pernambucano Marcelo Gomes, participou da Mostra Panorama, no Festival de Berlim. Foi reconhecido, em São Paulo, com o Prêmio da Crítica e com menções do júri Oficial e da ABD. Com todo merecimento, por tratar-se de revelador mergulho no mundo do trabalho, com distanciamento crítico brechtiano (o cineasta, que é o narrador, anuncia intervenções reflexivas na narrativa, seja retirando o som ensurdecedor de certa sequência, seja criando contrapontos a partir de lembranças memorialísticas, pois conhecera na infância o cenário do filme, a empoeirada cidade de Toritama).

Hoje, este município pernambucano orgulha-se por ser a “capital do jeans”. Para fazer jus a tal título e ganhar dinheiro, centenas de pessoas trabalham de cinco da manhã às dez da noite, confeccionando peças de blue-jeans. Não desfrutam, ao longo do ano, de nenhum repouso ou lazer. Só no Carnaval, abandonam a aridez da paisagem em busca do mar e do frevo. Agem assim os que conseguem acumular dinheiro e, principalmente, os que não conseguem. Estes vendem geladeiras, fogões, máquinas de costura, o que tiverem, para gozar das águas atlânticas e da frevança. Um dos personagens, destaque do filme, o faz-tudo Leonardo, não consegue vender sua moto para alugar carro e bancar as despesas carnavalescas. O cineasta ajuda no passeio, desde que Leo filme seus parentes, que lotam, eufóricos, uma perua.

Diretor do ficcional “Cinema, Aspirinas e Urubus” e do híbrido “Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo “ (com Karim Aïnouz), Marcelo Gomes confirma, com este belo documentário, seu imenso talento e o caráter humanista de suas criações.

O júri internacional elegeu o escandinavo “O Caso Hammarskjöld”, de Mads Brügger, como o melhor longa documental e atribuiu Prêmio Especial ao brasileiro “Meu Amigo Fela”, de Joel Zito Araújo. O primeiro investiga a suspeita morte do secretário-geral da ONU, em 1961, o sueco Dag Hammarskjöld, ocorrida em acidente de avião, quando ele se dirigia à África para mediar conflitos no Congo.

O Prêmio Especial a “Meu Amigo Fela”, vigoroso e matizado retrato do astro nigeriano do african-beat, Fela Kuti (1938-1987), foi um acerto do júri. O mineiro-carioca Joel Zito Araújo, diretor do obrigatório “A Negação do Brasil”, mostra seu fascínio pelo grande artista black, mas não esconde suas zonas de sombra. Todas as contradições do pan-africanista Fela Kuti estão expostas na tela.

O paulista Carlos Adriano foi o grande vencedor na categoria curta brasileiro, com mais um ensaio poético: “Sem Título #5: A Rotina Terá seu Enquanto”, homenagem a Yazujiro Ozu, mestre as imagens cotidianas japonesas.

Confira os vencedores:

COMPETIÇÃO BRASILEIRA 

. “Cine Marrocos”, de Ricardo Calil (SP) – melhor filme (prêmio de R$ 20 mil e Troféu É Tudo Verdade)

. “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes (PE) – Prêmio da Crítica (Júri Abraccine), menção honrosa do Juri Oficial, menção honrosa do Júri ABD-SP (Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas)

. “Soldados de Borracha”, de Wolney Oliveira (CE) – Prêmio ABD-SP de melhor longa

.“Sem Título #5: A Rotina Terá seu Enquanto”, de Carlos Adriano (SP) – melhor curta (prêmio de R$6 mil e Troféu É Tudo Verdade) e Prêmio Mistika (R$ 8 mil em serviços de pós-produção digital)

. “A Primeira Foto”, de Tiago Pedro (CE) – Prêmio Aquisição Canal Brasil (R$ 15 mil e Troféu Canal Brasil)

. “Planeta Fábrica”, de Julia Zakia (SP) – Prêmio da Crítica (Júri Abraccine) e menção honrosa no Prêmio ABD-SP

. “Vento de Sal”, de Anna Azevedo (RJ) – Prêmio ABD-SP de melhor curta

COMPETIÇÃO INTERNACIONAL

. “O Caso Hammarskjöld”, de Mads Brügger (Dinamarca/Noruega/Suécia) – melhor longa (prêmio de R$ 12 mil e Troféu É Tudo Verdade)

. “Meu Amigo Fela”, de Joel Zito Araújo (Brasil) – Prêmio Especial do Júri

. “Hungria 2018: Bastidores da Democracia”, de Eszter Hajdú (Hungria) – menção honrosa

. “Nove Cinco”, de Tomás Arcos (Chile) – melhor curta (prêmio de R$ 6 mil e Troféu É Tudo Verdade)

. “Lily”, de Adrienne Gruben (EUA) – menção honrosa

COMPETIÇÃO LATINO-AMERICANA

. “Piazzolla: os Anos do Tubarão”, de Daniel Rosenfeld (Argentina) – melhor longa (prêmio de R$ 8 mil e Troféu É Tudo Verdade)

. “Maricarmen”, de Sérgio Morkin (México) – Menção honrosa

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