Gabriel Mascaro soma religião, sexo e maternidade em novo filme
Por Maria do Rosário Caetano
Fé, suingue erótico, rave gospel, atendimento espiritual por drive-thru, busca incansável pela maternidade, salvação do próximo, combate à multiplicação de divórcios. Estes são alguns dos explosivos ingredientes de “Divino Amor”, sétimo longa-metragem de Gabriel Mascaro, estreia desta quinta-feira, 27 de junho, no circuito de arte brasileiro.
Terceiro longa ficcional do realizador pernambucano, de 35 anos (o primeiro foi o híbrido “ Ventos de Agosto” e o segundo, “Boi Neon”, soma de moda fashion e vaqueiros nordestinos), “Divino Amor” passou pelos festivais Sundance, Berlim e Guadalajara. Fruto de parceria do Brasil com a Europa (Países Nórdicos) e América Hispânica (Uruguai e Chile), o filme constitui prova exemplar de quão amplos são os horizontes descortinados pelo cinema pernambucano.
Uma cinematografia “regional”, registre-se, que tem conseguido romper imensas barreiras geográficas. Vide o exemplo de Kleber Mendonça (“Aquarius” e “Bacurau”) e de sua companheira e produtora, a franco-brasileira Emilie Lesclaux. A dupla tem estabelecido parcerias com produtores internacionais e encontrado poderosas vitrines (como Cannes) para seus trabalhos.
O mesmo se dá com Gabriel Mascaro e sua corroteirista, produtora e companheira, a britânico-brasileira Rachel Daisy Ellis. A dupla conta, em “Divino Amor”, com o fotógrafo mexicano Diego García (colaborador de Apichatpong Weerasethaku e Carlos Reygadas), com o montador Fernando Epstein, e com time de produtores-parceiros, liderado pelo uruguaio Sandino Saravia Vinay.
Nunca é demais lembrar que, além de cineasta, Gabriel Mascaro é artista visual. Quem viu “Boi Neon” reconhece sua base documental, mas constata sua realização calcada em muitas invenções plásticas e liberdades. O filme nos revela um Brasil que pouco conhecemos. No nosso imaginário, o Nordeste segue como território do Boi Bumbá e dos bonecos de barro de Vitalino. O cineasta nos mostra um país em que modernidade e arcaismo se somam de forma brutal (e fascinante).
“Divino Amor”, roteiro que ele concebeu há quatro anos, ganhou perturbadora atualidade com a eleição de Jair Bolsonaro, apoiado fortemente por segmentos evangélicos. Sua trama, ambientada em solo brasileiro e em tempo futuro (2027), centra-se em Joana, devota religiosa, interpretada com garra e total entrega por Dira Paes. Ela trabalha em função burocrática num cartório de fé pública. E, com fervor, utiliza seu ofício para tentar dificultar a consumação de divórcios. Não mede aliciantes esforços na busca de conciliação dos cônjuges litigantes. Porém, enquanto ajuda casais alheios a seu núcleo familiar, ela enfrenta grave problema. Quer ser mãe, mas o marido Danilo (Júlio Machado), mesmo submetendo-se a doloro e longo tratamento hormonal, não consegue engravidá-la. Joana jamais perderá a fé. Vai esperar, dedicando-se a orações e orgias sexuais planejadas, por um sinal divino. Um sinal que seja o reconhecimento de sua imensa devoção a Deus.
Ninguém pense que Joana será mostrada como uma fanática religiosa. O filme trabalha ambiguidades e respeita a opção desta mulher tomada pela fé. A crise matrimonial terminará por deixá-la ainda mais próxima de Deus.
Em encontro com a imprensa, no Cinearte, em São Paulo, Mascaro contou que nasceu e cresceu em bairro de classe média baixa, na periferia do Recife, e que viu a força avassaladora de religiões evangélicas. “Muitos de meus amigos se converteram”. Por isto, ele buscou compreender, sem recorrer a simplismos, o que os levou às várias denominações do evangelismo.
“Eu quis fugir das análises totalizantes da esquerda brasileira” – ponderou – “que explicam as religões evangélicas como base do conservadorismo contemporâneo”. A ele, interessava mergulhar nas relações entre “Estado, religião e corpo”.
Em busca de objetivo tão desafiador, cercou-se de roteiristas-parceiros (além de Rachel Ellis, Lucas Paraizo e Esdras Bezerra), que o ajudaram a construir “distopia, que soma ficção científica, pornografia, tributária da pornochanchada, música eletrônica, neon, suingue gospel e terapias holísticas pós-tropicalistas”. Para tanto, colocou “uma família cristã, com formação fundada na honestidade, num projeto filosófico-religioso e não no charlatismo”. Recusou, na construção dos personagens, de “tudo que se aproximasse da caricatura”.
Ninguém pense, porém, que Gabriel Mascaro realizou um filme religioso e respeitoso (inofensivo) em sua essência. Realizou, isto sim, uma obra transgressora, com temas explosivos, cenas de sexo longas e ampla exposição de corpos. Sem Dira Paes, que já passou por experiência de igual ousadia sexual (vide “Baixio das Bestas”, do também pernambucano Claudio Assis), Mascaro não teria chegado ao resultado que chegou. Ele sabia disto e a atriz foi sua primeira opção para interpretar Joana.
Quem achar que Mascaro e seus roteiristas-parceiros deliram demais ao engendrar sua trama futurista (mesmo que 2027 esteja tão perto de nosso tempo presente), receberá dele explicação desconcertante. Como milhões de brasileiros fazem “questão de ignorar o que se passa no seio de comunidades evangélicas”, ele fez pesquisas in loco. E leu muito. Inclusive relatos e poemas de “mulheres-mártires medievais” , que se entregaram “ao êxtase religioso”. E até “morreram nesta entrega místico-erótica a Deus”.
O cineasta entende que “os evangélicos compõem uma força complexa, sofisticada, que adota práticas das mais modernas”. Ele contou ter presenciado “uma rave gospel na qual o pastor parecia um guitar hero, um astro pop banhado em neon e sons eletrônicos”. E disse mais: “já existe drive-thru da fé em São Paulo”. Ou seja, “local onde famílias buscam, de dentro de seus automóveis, a orientação espiritual de seu pastor”.
“Divino Amor”, decerto, servirá como perturbador convite “aos segmentos (intelectual e cultural) de esquerda” para que “saiam da bolha” em que estão colocados-protegidos. Até porque, diz Mascaro, “os evangélicos agora estão no poder, são a força hegemônica”.
Por fim, há que se lembrar (sem quebrar com os mistérios do filme) que passagem bíblica essencial a religiões cristãs (em especial ao Catolicismo) constituirá o momento culminante – e mais intrigante – de “Divino Amor”. Ah, não se pode esquecer, também, que no 2027 de Mascaro, o Carnaval já não será a paixão nacional. Esta paixão secular e profana será substituída pela Festa do Amor Divino.
Assista aqui o trailer do filme.
Divino Amor
Brasil, Uruguai, Chile, Noruega, Suécia e Dinamarca, 101 minutos, 2019
Direção: Gabriel Mascaro
Elenco: Dira Paes, Júlio Machado, Emílio de Mello, Teca Pereira, Mariana Nunes, Thiago Justino, Tuna Dwek, Thalita Carauta e Calum Rio (criança-narradora)
Trilha sonora: Juan Campodónico e Santiago Marrero, Otávio Santos
Distribuição: Vitrine Filmes
Censura: 18 anos
FILMOGRAFIA
Gabriel Mascaro (Recife, 24 de setembro de 1983)
2008 – “KFZ – 1348” (com Marcelo Pedroso) – doc
2009 – “Um Lugar ao Sol” – doc
2010 – “Avenida Brasília Teimosa” – doc
2012 – “Doméstica” – doc
2014 – “Ventos de Agosto” – ficção
2015 – “Boi Neon” – ficção
2019 – “Divino Amor” – ficção
Curta e média-metragem:
2010 – As Aventuras de Paulo Bruscky” (20′)
2012 – “A Onda Traz, o Vento Leva” (28′)
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