Mostra de Ouro Preto homenageia o rebelde Edgard Navarro
Por Maria do Rosário Caetano
No próximo dia 20 de junho, Edgard Navarro lança seu terceiro longa-metragem, “Abaixo a Gravidade”, espécie de continuação de “SuperOutro”, seu filme mais famoso. Antes, porém, o cineasta receberá homenagem (e um Troféu Barroco) da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto. Tudo por sua trajetória no cinema, que já dura 43 anos.
A décima-quarta edição da mostra mineira, dedicada à memória do cinema em diálogo com a produção contemporânea, acontece na região do ouro de Minas Gerais, desta quarta-feira, 5 de junho, até segunda, 10.
Famoso por suas performances – numa Jornada de Cinema da Bahia, irritado com um debate, Navarro ficou nu em pelo –, o mais inquieto dos cineastas baianos, herdeiro do também performático Glauber Rocha, promete receber o Troféu e as homenagens em estado zen. Ele assistirá, em seguida, com o público do centenário Cine Vila Rica, aos filmes “Exposed” e “SuperOutro”. Nunca é demais lembrar que esta ficção, de forte base documental e seminal anarquismo terceiro-mundista, foi cantada em verso por seus conterrâneos Caetano e Gil, no poderoso samba-enredo “Cinema Novo”, do disco “Tropicália 2”. Será que Navarro terá mesmo uma noite zen? A conferir.
No dia da Criança, em outubro próximo, o autor de “O Rei do Cagaço” (sim, sem o “n”) e do amoroso “Eu me Lembro”, fará 70 anos. Glauber, se vivo fosse, teria feito 80 em março.
A CineOP exibirá, ao longo de seus seis dias, 105 filmes em sessões de pré-estreias e mostras temáticas. Além do Cine Vila Rica, haverá sessões ao ar livre, na Praça Tiradentes. Em centros culturais, acontecerão debates, seminários, oficinas e sessões do segmento Cine-Escola. O festival se propõe, anualmente, “a refletir e lutar pela salvaguarda do patrimônio audiovisual brasileiro em diálogo com a educação e em intercâmbio com o mundo”.
A Revista de CINEMA conversou com Edgard Navarro sobre a chegada aos 70 anos e a homenagem da CineOP. E quis saber das condições de preservação das matrizes de seus filmes realizados em diferentes suportes ao longo das quatro últimas décadas. Um deles, pouco conhecido, pois feito em vídeo betacam, mas de grande poder de invenção e informação – “Talento Demais” ou, na Bahia, a coisa tá lenta demais –, é relembrado pelo autor em seus dois cortes. Um de média-metragem e outro de longa duração.
As respostas do cineasta, especialmente no item preservação audiovisual, tema da Mostra de Ouro Preto, são de espantosa (e comovente) precisão. Infelizmente, em tempos de streaming, há que se lamentar que nenhum dos filmes de Navarro tenha sido adquirido para os acervos seja da Netflix, HBO GO, Amazon, iTunes, Globo Play, Looke ou assemelhados.
Navarro, como você, um rebelde em tempo integral, se sente chegando aos 70 anos?
Um dia, todos chegaremos aos 70, se não morrermos antes, claro. Há sabedoria em aceitarmos o que é inevitável. O problema é quando as limitações começam a aparecer, trazidas pela ação do tempo. Felizmente, posso dizer que até certo ponto tenho conseguido conviver quase pacificamente com tais limitações. Quanto a ser rebelde, é vero que não tenho hoje a mesma febre iconoclasta de quando era jovem, mas quero continuar honrando a rebeldia, o rebelde ‘sem calça’ que fui continua ‘vivito e coleando’. Aliás, devo dizer que não acredito que exista rebeldia em tempo integral, isto soa como um simulacro, um embuste; e me exaspera ver os surtos e episódios que protagonizei serem às vezes referidos em tom de troça. Afirmo que, embora a falta de motivo parecesse óbvia para desavisados, havia motivações existenciais profundas, as quais eu me empenhei (me empenho) em expor – compulsivamente, até – no intento de, ao tempo em que aprendia com eles, elucidar enigmas propostos à minha geração. De modo que, nesse país que continua a desafiar nossa inteligência, sigo ‘louvando o que bem merece e deixo o que é ruim de lado’. E, pra levar meu barquinho a bom porto, espero conseguir manter invicto o erê que me acompanha – ele é o menino do cartaz de ‘Eu me Lembro’. Não por acaso nasci no dia das crianças – he-he-erê, he-he-erê.
Como recebe esta homenagem da CineOP? Você fará algum discurso especial? Uma de suas famosas performances?
Recebo com muita alegria, logo eu, que um dia quis encarnar a irreverência, hoje me rendo a essa homenagem, porque acredito que é sincera, seja pela busca que tenho empreendido, pela vontade de acertar, embora nem sempre tenha conseguido. Ou pelo empenho quase obsessivo em levar a cabo uma tarefa quase sempre inglória ao longo desses 43 anos. Quanto a discurso, não tenciono preparar, performance, muito menos. Quero e pretendo lidar com esse momento com respeito e sabedoria. Sinto-me honrado e feliz, é tudo.
Você já está preparando seu novo longa-metragem? O que pode adiantar sobre ele?
Não. Não há nenhum longa em pré-produção. O que há de concreto no momento é que faço parte de um núcleo criativo inscrito pela Hamaca, produtora do companheiro cineasta Henrique Dantas [“Filhos de João – Admirável Mundo Novo”], cuja produtora foi contemplada em edital [Chamada Pública BRDE/FSA Núcleos Criativos – PRODAV]. O resultado foi publicado em dezembro do ano passado. Desde então, temos um roteiro a ser desenvolvido proximamente, a partir do momento em que a verba for liberada, o que deverá acontecer no segundo semestre deste ano. Por enquanto, quero manter sigilo sobre temática e argumento deste projeto.
A CineOP é um festival dedicado à memória do cinema. Como estão as matrizes dos seus filmes? Estão em boas condições ou algumas já necessitam de restauro? Seus curtas, médias e longas estão acessíveis em DVD ou no streaming?
Parte significativa de meus filmes encontra-se em condições aceitáveis. Os curtas em Super-8, que são cinco, estão preservados em suporte digital a partir de telecinagem, devido a iniciativa e esforço do professor Rubens Machado, da ECA-USP. Ele se dedicou a um projeto de resgate da produção superoitista da década de 1970, financiado pelo Itaú Cultural em 2001. Para termos a preservação definitiva destes trabalhos em Super-8, será necessário promover telecinagem frame a frame dos cinco filmes. Quatro deles tiveram o som restaurado pelo resgate via Itaú Cultural. Entretanto, com um desses filmes – “Na Bahia Ninguém Fica em Pé” – há um problema. Por tratar-se de um filme de entrevistas, que teve o som originalmente gravado na própria película, alguns trechos tornaram-se quase inaudíveis. Por isto, seria necessário e aconselhável gerar uma matriz com subtítulos, de modo que pudéssemos suprir essa falha. Infelizmente, a película original de um dos curtas em Super-8 (“Habemos Papam”, dirigido por mim e por Pola Ribeiro) parece que se perdeu em definitivo. Trata-se de documentário sarcástico sobre a primeira visita do Papa João Paulo II à Bahia, em julho de 1980.
Já aos negativos do média-metragem “SuperOutro” e dos curtas “Porta de Fogo” e “Lin e Katazan” encontram-se depositados na Cinemateca Brasileira, em São Paulo. A telecinagem de todos eles foi obtida de forma precária. Seria oportuno fazer uma telecinagem de boa qualidade para obter matriz digital também de boa qualidade e a partir daí uma digitalização definitiva. Quanto ao vídeo “Talento Demais”, realizado em betacam, possuímos a fita original de edição da versão mais longa (72 minutos), da qual poderemos obter arquivo digital definitivo; quanto à versão mais curta (50 minutos), possuímos uma fita DVCam que, embora não seja a fita original de edição, é a única que possuímos.
Os meus três longas de ficção produzidos pela Truque, segundo relato de minha produtora executiva, Sylvia Abreu, estão em boas condições. Os três estão em Full HD. De “Eu me Lembro” e “O Homem que Não Dormia” temos, também, cópia em 35mm de preservação na Cinemateca Brasileira. Ambos foram lançados em DVD. Nenhum deles está disponível em streaming. Caso alguma plataforma tenha interesse em comercializar, podemos negociar, os direitos estão livres.