Cine Ceará: força local e três homenageados
Por Maria do Rosário Caetano
O Cine Ceará (Festival de Cinema Ibero-Americano), cuja vigésima-nona edição será aberta na noite desta sexta-feira, 30 de agosto, em Fortaleza, terá, pela primeira vez, poderosa representação local. Finalmente, os holofotes do cinema parecem estar voltados ao audiovisual cearense.
A noite inaugural promoverá a primeira exibição pública, em território brasileiro, de “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Karim Aïnouz, escolhido para representar o Brasil na disputa por uma vaga no Oscar. O cineasta, nascido na terra de Iracema, tornou-se cidadão do mundo e vive entre Berlim, o eixo Rio-São Paulo e Fortaleza. Seu vínculo com o Estado natal se dá graças ao magistério (ele é professor de Cinema no Instituto Dragão do Mar). Seus principais parceiros na escola são o pernambucano Marcelo Gomes (de “Cinema, Aspirinas e Urubus”) e o baiano Sérgio Machado (“Cidade Baixa”).
“A Vida Invisível”, premiado na Mostra Un Certain Régard, no Festival de Cannes, não conta com atores e cenários cearenses. Sua trama, baseada no romance “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, se desenvolve no Rio de Janeiro, em torno de duas irmãs (interpretadas por Júlia Stockler e Carol Duarte) criadas num mundo dominado pelo poder masculino. Uma delas é nterpretada, na terceira idade, por Fernanda Montenegro. Completam o elenco Gregório Duvivier, Flávio Bauraqui, Maria Manoella e Bárbara Santos.
Mesmo que se tire de “A Vida Invisível”, que Aïnouz define como “um melodrama tropical”, a condição de longa cearense, a representação do Estado seguirá poderosa. Foram selecionados, para três mostras diferentes, sete longas ficcionais ou documentais.
Na competição oficial, são dois os filmes cearenses que disputarão o Troféu Mucuripe com a produção ibero-americana: “Notícias do Fim do Mundo“, de Rosemberg Cariry, e “Greta”, de Armando Praça (este fez sua estreia no Festival de Berlim). O protagonista do filme de Cariry é o paraibano Everaldo Pontes, o São Jerônimo de Júlio Bressane. O protagonista do longa de estreia de Armando Praça, que mostrou seus curtas em diversas competições do Cine Ceará, é Marco Nannini.
Em caráter hors concours serão exibidos mais dois filmes de DNA 100% nordestino: o documentário “Soldados da Borracha”, de Wolney Oliveira, e o aguardadíssimo “Pacarrete”, de Allan Deberton, que acaba de ser consagrado em Gramado (com oito Kikitos, sendo três os mais cobiçados – melhor filme, direção e atriz). Pela primeira vez, em 47 anos de história, o festival gaúcho deu seu reconhecimento máximo a um filme cearense.
Allan Deberton nasceu na interiorana Russas e, em seu primeiro longa, contou a história de uma mulher, sua conterrânea, que amava (e ensinava) ballet. E que tornou-se, depois de regressar à terra natal, passados longos anos em Fortaleza, a “louca” da cidade, motivo de chacota de moleques e escárnio dos mais velhos e das autoridades. Apaixonada pela cultura francesa, ela adotou o nome Pacarrete, derivado de flor popular em Paris, a “pâquerette”(uma pequena margarida). O impacto do filme foi tamanho, que Paulo Sérgio Almeida, editor do Boletim Filme B, arriscou um prognóstico: o vencedor do festival gaúcho é “uma comédia original, até então desconhecida do mercado, mas que poderá ter um bom público, desde que a ArtHouse, sua distribuidora, consiga apoio (do setor) da exibição”.
O documentário “Soldados da Borracha“, de Wolney Oliveira, resgata a história de milhares de cearenses (e trabalhadores de Estados vizinhos) que foram colher látex para fornecer a matéria-prima necessária à fabricação de pneus para equipamentos bélicos. O Governo Vargas contribuiu com os EUA em seu esforço de guerra contra o nazifascismo, mobilizando e estimulando os nordestinos a saírem de suas terras secas rumo à floresta Amazônica. Nela, muitos encontraram seu túmulo, vítimas de malária ou flechas de indígenas.
A estes quatro títulos (os da competição e os hors concours) se somarão mais três longas selecionados para o Olhar do Ceará, o equivalente à mostra Sob o Céu Nordestino, do Festival Aruanda, de João Pessoa, Paraíba. “Se Arrependimento Matasse”, de Lilia Moema Santana, “Tremor Iê”, de Elena Meirelles e Lívia Paiva, e “Currais”, de David Aguiar e Sabina Colares, serão exibidos junto com 17 curtas. O melhor longa cearense receberá o Troféu Mucuripe na mesma noite em que serão entregues os troféus aos vencedores da competição ibero-americana.
Se a mostra Sob o Céu Nordestino quase roubou o brilho do Festival Aruanda ao apresentar cinco filmes paraibanos, o Ceará deve causar furor ainda maior. E não por bairrismo, mas sim, por, finalmente, realizar filmes que estão conseguindo espaço e prêmios significativos em grandes festivais. E, ao que tudo indica, por estarem dispostos a romper fronteiras regionais e chegar ao mercado com boa chance de atingir o público (feito que só Halder Gomes e alguns filmes espíritas conseguiram antes).
“Greta” foi selecionado para o Festival de Berlim, um dos maiores do mundo, “Soldados da Borracha” integrou a exigente seleção do É Tudo Verdade, maior festival de documentários da América do Sul, e conquistou o Troféu ABD. “Pacarrete”, por sua vez, fez barba, cabelo e bigode na Serra Gaúcha. O cinema cearense começa, ao que tudo indica, a seguir os passos da mais famosa cinematografia produzida no Nordeste, a pernambucana. Só para mostrar a força vinda do Recife, vale lembrar que “Bacurau”, de Kleber Mendonça e Juliano Dornelles, vendeu, só em sessões de pré-estreia, 20 mil ingressos, “Divino Amor”, de Gabriel Mascaro, se aproxima dos 40 mil, e o documentário “Estou me Guardando pra Quando o Carnaval Chegar”, de Marcelo Gomes, já soma 11 mil (mais, muito mais, que várias ficções brasileiras).
No terreno das homenagens, o Cine Ceará vai entregar três Mucuripes especiais a um cineasta (Karim Aïnouz, que o receberá das mãos de Fernanda Montenegro, no palco do tradicional Cine São Luís) e a dois atores. Primeiro, à Lilia Cabral, protagonista absoluta de “Maria do Caritó”, peça de Newton Moreno, transformada em filme por João Paulo Jabour. Depois, será a vez de Matheus Nachtergaele, ator de talento ímpar. Revelado em montagens teatrais do calibre de “O Livro de Jó”, do grupo Vertigem, o paulistano de origem belga praticamente tornou-se “cidadão honorário” do Nordeste. E isto graças ao maravilhoso João Grilo suassúnico, que ele interpretou em “O Auto da Compadecida”. Agora, para completar o amor da região pelo intérprete de sobrenome complicado, Nachtergaele caiu nas graças da multidão cearense ao desempenhar ótimo (e hilário) papel na série “Cine Holliúdy”, do realizador e torcedor do Fortaleza, Halder Gomes. A comédia televisiva, desdobramento de filme de mesmo nome, fez tanto sucesso, que ganhará nova temporada na Rede Globo. Com Matheus Nachtergaele no elenco, claro.
O Cine Ceará exibirá, até dia 6 de setembro, mais de 40 filmes. Na noite dos troféus Mucuripe, a plateia do Cine São Luís vai gargalhar com a encantadora comédia protagonizada por Marcélia Cartaxo, a doidinha Pacarrete. O show de interpretação da atriz, em seu maior papel desde a Macabéia de “A Hora da Estrela”, fez dela o xodó dos dias e noites gaúchos. A atriz espalhou tanto encantamento, ao lado de suas colegas paraibanas Zezita Mattos e Soia Lira, que as lojas de Gramado fizeram questão de vesti-la, para a Noite dos Kikitos, como uma estrela, não hollywoodiana, mas nordestina. Ela subiu ao palco com um lindo vestido vermelho, capa negra e botinhas igualmente pretas, com cadarços rubros. Dificilmente os gramadenses se esquecerão desta “paraíba” de talento único, que se orgulha de sua Cajazeiras natal. Pacaratte é um filme cearense, temperado com o talento das três paraibanas e do baiano João Miguel. E, claro, com os bons desempenhos dos cearenses Samya de Lavor, Débora Ingrid e Rodger Rogério.
Gente, o que é a trilha de “Pacarette”? Uma festa para os ouvidos.