Murilo Salles expõe fotos do autoexílio
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta e fotógrafo Murilo Salles lança, na Galeria Carbono, em São Paulo, na terça-feira, 13 de agosto, livro com fotos realizadas em período de autoexílio nos EUA, Europa e África. O volume, em formato álbum, contém 116 fotografias, das quais 18 foram ampliadas em grande formato e compõem exposição que permanecerá aberta na galeria dos Jardins paulistanos, até 25 de agosto.
Neste momento, além do livro e da exposição, Murilo Salles finaliza o documentário “Uma Baía” e prepara outro, que revisitará viagem do escritor Mário de Andrade à Amazônia, no final dos anos 1920. Prepara, também, nova ficção (“A Vida de Cada Um”). Este projeto – admite – depende dos humores do governo atual. Um governo que qualifica como pior que o de Fernando Collor de Mello. O realizador carioca viu seu ofício (a criação de longas-metragens) cair de 150 produções por ano para cinco ou seis títulos. Ele mesmo experimentou hiato de quase seis anos sem lançar um novo longa-metragem. Voltou a dirigir graças a convite da Fifa (Federação Internacional de Futebol), que produziu o magistral “Todos os Corações do Mundo”, ópera boleira orquestrada sob seu comando.
O longa documental que registrou a Copa do Mundo, realizada nos EUA, é considerado o mais inventivo dos registros do campeonato mundial de futebol. O cineasta recebeu carta branca para liderar alguns dos maiores nomes da fotografia cinematográfica e publicitária brasileira da época (César Charlone, Pedro Farkas, Walter Carvalho, José Roberto Eliezer, Marcelo Durst, Lúcio Kodato, Breno Silveira, Roberto Amadeo, Carlos Pacheco e Nonato Estrela), para que, juntos, realizassem uma superprodução que fizesse história. Lançado nos cinemas, o filme foi visto por quase 300 mil espectadores.
Um de nossos mais respeitados diretores de fotografia, Murilo Salles iniciou-se no cinema muito jovem, ao lado do amigo Bruno Barreto. Primeiro, realizaram curtas e, depois, Bruno dirigiu “Tati, a Garota”, “A Estrela Sobe” e “Dona Flor e seus Dois Maridos”, todos fotografados por Murilo. Quando “Dona Flor” estourou nas bilheterias (mais de 10 milhões de ingressos), o jovem diretor de fotografia foi tocado por imenso desejo de descobrir novos mundos, enfrentar novos desafios. Vagou pelos EUA e Europa, até encontrar Ruy Guerra, que comandava, em seu país natal, o Instituto de Cinema de Moçambique. Ruy convocou o diretor de fotografia a dar sua contribuição (como professor e realizador) ao país que acabava de proclamar sua independência, em processo revolucionário comandado por Samora Machel.
Murilo Salles embarcou para Maputo e realizou, no país africano, seu primeiro documentário, “Estas São as Armas”. Passou quase dois anos em Moçambique. Regressou ao Brasil para assumir seu trabalho como diretor de fotografia do inventivo, anárquico e fescenino “Cabaret Mineiro” (Carlos Alberto Prates Correia, 1979).
O carioca, hoje com 68 anos, faria – antes de tornar-se cineasta em tempo integral – duas direções de fotografia que o transformariam num dos mais festejados profissionais do país: a de “Tabu”, de Júlio Bressane (1982) e a de “Eu te Amo”, de Arnaldo Jabor (4 milhões de ingressos). Bressane registrou o crédito de Murilo à moda de Mário Peixoto, em “Limite” (1930).
No longa, realizado nos estertores da era muda, Peixoto escreveu “um filme cinematografado por Edgard Brazil”. Bressane não fez por menos: “Tabu, um filme cinematografado por Murilo Salles”. Com Jabor, o diretor de fotografia que “cinematografava filmes” construiu belos labirintos de luz e sombras em busca da alma dos personagens que ganharam vida nos corpos de Sonia Braga e Paulo César Pereio.
Em 1985, Murilo Salles mostrou, em Locarno, na Suíça, e em Gramado e Brasília, seu primeiro longa ficcional, “Nunca Fomos Tão Felizes”, baseado em conto de João Gilberto Noll. Ainda fotografaria um ou outro filme, mas tornar-se-ia, para valer, um cineasta.
Nesta entrevista à Revista de CINEMA, Murilo fala de seu livro de imagens em tempo de autoexílio, de sua paixão pelo cinema documentário, garante não ter abandonado a direção de fotografia, compara a gestão Collor à gestão Bolsonaro e lamenta o estágio, para ele, desolador, em que se encontra boa parte da crítica cinematográfica brasileira. Na opinião do autor de “Como Nascem os Anjos”, a crítica de nossos dias se tornou “veículo da arrogância simplista” desta “faculdade de julgar e de opinar”.
Revista de CINEMA – O que o motivou a selecionar, para esta exposição, 18 das 116 fotos do livro “Murilo Salles Fotografias 1975-1979”? Por que estas imagens e não outras? Há um conceito a uni-las, ou são fotos pelas quais você tem afeto especial?
Murilo Salles – Esse livro é fruto de um autoexílio ao qual me propus. Uma parte de amigos muito próximos e queridos estava exilada. Assim que acabei de fotografar o “Dona Flor”, viajei para encontrá-los. Em seguida, quando retornei ao Brasil para fazer as cópias do “Dona Flor”, o Ruy Guerra me convidou para uma viagem a Moçambique com ele. Embarquei e voltei dois anos depois. Foi uma estada de quase quatro anos fora do Brasil e um período no qual não fotografei nenhum filme. Então, passei a me obrigar a me exercitar, pois estava num momento muito fértil e atento às questões fotográficas. Em Moçambique, fiquei dois anos dando aulas de fotografia. Então, fiz da minha Nikon F2 a extensão do meu olhar e flanava na rua fotografando pelo simples desejo de fotografar. E fui impondo isso como disciplina à minha sensibilidade fotográfica. Na verdade, adorava fazer isso, sair simplesmente à rua e fotografar sem tema, quer dizer, meu diálogo era com a fotografia. Fotografava a luz, as cores, os movimentos, procurando a precisão do quadro no momento do instantâneo. E fotografava pessoas que queriam ser fotografadas, que me escolhiam e se mostravam a fim. Tenho problemas com o fotografar pessoas. Acho que estou ‘roubando’ algo que não me pertence. Por isso, tem muita gente de quem recorto fora os rostos. O que me interessa é a forma do corpo, “aprisionar a forma do movimento”. No cinema, isto é naturalizado, pois, na maior parte das cenas, o movimento é apenas parte constitutiva da ação, não é pensamento. Sou adepto da tese que a imagem pensa. Aliás, é uma das formas de pensamento possíveis fora do discursivo, do retórico, do senso comum do discurso narrativo. Meus documentários investem nisso.
Há fotos feitas também durante a realização de filmes que o tiveram como diretor de fotografia, não?
Todas as fotos do livro foram tiradas entre 1975 e 1979, pois são imagens feitas na Europa e em Moçambique. Quatro foram feitas no Bonfim, em Salvador, durante a viagem de locação do “Dona Flor”. Algumas outras, feitas em paralelo às filmagens de “Cabaret Mineiro”, em Montes Claros e Grão Mogol, em 1979. Escolhi 116 imagens dessa época e fiz esse livro. Eu sentia que tinha que fazê-lo, pois na verdade esse movimento-flâneur-fotográfico foi um trabalho! Talvez o trabalho mais importante de fotografia que tenha feito. Queria que as pessoas pudessem fruí-lo. As fotos foram selecionadas em processo coletivo, que passou por uma curadoria entre Márcia Mello, que desenvolve trabalho de longo termo comigo e os curadores das duas galerias em que estou expondo, a Múltiplo, no Rio de Janeiro, e, agora, a Carbono, em São Paulo. Mas os núcleos temáticos são bem claros: fotos sobre a cor, fotos que são um sudário da luz, fotos que expõem minha formação neoconcreta (ainda sou um modernista…) e fotos sobre pintura, pois foi durante essa viagem de autoexílio que descobri o contemporâneo nas artes plásticas. Então, há fotos que são homenagem ao Rothko, e outras inspiradas pela action painting que me marcou muito. Uma coisa une o trabalho: meu intenso afeto por ele.
Você tem feito muitos longas documentais e não dirige uma ficção desde 2014 (“Os Fins e os Meios”). Você deixou a ficção de lado?
Realmente o documentário me fisgou. Talvez porque seja essa a forma de expressão mais complexa, que mais me desafia. Faço documentários para aprender a fazer ficção. Meu primeiro filme como diretor foi um documentário feito em Moçambique: “Essas São as Armas”. Fiz alguns documentários muito bacanas. O “És Tu Brasil” é um filme do qual me orgulho imensamente. São momentos mágicos de quatro grandes artistas em diálogo direto comigo e com a minha câmera digital que tinha acabado de conhecer, a PD150 da Sony. Esse projeto foi exibido na TV Cultura. Depois, fiz “Nome Próprio”, ficção, filmada em 2006 com a HVX200 e exibido em Windows Media Play! Incrível essa radicalidade digital feita por um fotógrafo de excelência em película, não é? Mas, voltando ao documentário, tive a felicidade de ter feito com uma equipe magnífica e mega criativa o “Todos Corações do Mundo”, o filme oficial da Copa de 1994, nos EUA, que completa 25 anos. Agora, acabo de colocar no ar, no Canal Curta!, uma série ensaística que ficou também muito bacana e importante para esse momento que vivemos, “Alegorias do Brasil”(está sendo reprisada). Acabo de fechar a montagem do documentário, que mais tempo e energia me demandou, que está em fase de finalização, “Uma Baía”, que são ensaios, fábulas feitas a partir de material documental com personagens que habitam e se relacionam no entorno da Baía de Guanabara. Estou muito feliz, pois acredito que tenha encontrado um caminho muito próprio de narrar essas histórias no gênero desafiador que denominamos documentário. Preparo meu próximo filme, uma atualização da viagem que Mário de Andrade fez pelo Rio Amazonas, em 1927, enquanto dava um intervalo na redação de “Macunaíma”, e submeteu-se a essa experimentação das sensações amazônicas, junto com Dona Olívia Penteado, acompanhada de uma sobrinha e da filha de Tarsila e Oswald. Foi narrado por ele, Mário, no “Turista Aprendiz”. É um projeto fascinante! Começou como documentário, mas estou transformando-o numa rapsódia cinematográfica, portanto, pura ficção, na veia.
É sua volta à ficção pra valer? Já conseguiu recursos para produzi-la?
O projeto do novo longa de ficção está dependendo de toda essa perversa política cultural do novo governo. Intitula-se “A Vida de Cada Um”. Se tiver sorte e conseguir fazê-lo, será um filme de maturidade, em torno de personagens complexos, um belo filme, assim espero.
Depois de estrear na direção com “Nunca Fomos Tão Felizes” (1985), você dirigiu uma dezena de longas. E transformou a direção de fotografia, ofício que o consagrou, em atividade secundária. Você fotografou e coproduziu “Árido Movie”, de Lírio Ferreira, recém-exibido na Flip. Por que deixou a direção de fotografia em segundo plano?
De jeito nenhum, deixei em segundo plano. Pergunte aos fotógrafos dos meus filmes. Em “Nome Próprio”, divido a fotografia com a Fernanda Riscali. Fotografei o “Árido Movie”. Exerço a fotografia ao dirigir um filme. Impossível não pensar nisso. Em todos eles, acabo fazendo a marcação de luz e cor, apesar de serem fotografados por outros diretores de fotografia, o que é de uma intromissão avassaladora. Está sendo assim no “Uma Baía”. Não consigo que seja diferente, por mais que tente. Agora, no filme do Mário de Andrade, vou me abandonar mais. Prometo!
Você está apreensivo com os rumos tomados pela política cinematográfica no Brasil, ou não crê no desmonte anunciado? Vivemos momento semelhante ao da Era Collor, que afetou inclusive sua carreira pessoal (“Faca de Dois Gumes” é de 1989 e “Todos os Corações do Mundo”, de 1995, um intervalo de seis anos)
Acho que está muito pior! O Collor era um doidão, arrogante e corrupto. Mas não era um troglodita ignorante autoritário que faz elogios públicos a torturadores. E que quer acabar com a cultura e com a educação pública. Nossa, me deprimo!
Quais dos seus filmes você considera mais bem-resolvidos? Ou seja, aqueles que você recomendaria a um jovem que quisesse se iniciar na direção.
Bem resolvido… não acho nenhum deles, pois filmes bem-resolvidos dormem em sua mesmice. Meus filmes são todos mal-resolvidos. Todos eles, sem exceção, provocam desconforto em quem os assiste, tanto nos conservadores, que querem apenas se entreter, quanto naqueles que preferem filmes que se encaixem em seus paradigmas da cartilha vanguardista. Faço filmes porque adoro fazer e pensar o cinema que faço, e estou sempre irrequieto, querendo mexer com a linguagem, com a narrativa, para suspender as demandas inconscientes da experiência dos sentidos no senso comum. Procuro ‘brincar’ com questões bastante diversas em cada filme. Pensar o que quero fazer com aquele determinado filme e me jogar nessa aventura. Para além dos paradigmas de reconhecimento. Meus filmes não se resolvem. Se apresentam como inquietações que deixam o espectador sem saber se gosta ou não, ou mesmo ainda sem conseguir gostar, mas também sem desgostar. Faço uma cinematografia fora do desejo de fácil identificação à direita ou à esquerda e, talvez por isso mesmo, eles causem sempre estranhamento na crítica de cinema. Aliás, isso é quase um elogio, pois, com raras exceções, a crítica se tornou o veículo da arrogância simplista da faculdade de julgar e de opinar. Num eco facebookiano, digo que tornou-se, principalmente, a amplificação da doxa (o lugar de exposição dos pré-julgamentos), tanto à direita quanto à esquerda. Pouca gente quer olhar com sensibilidade e inteligência para o que se apresenta. É o fim de um tempo de delicadeza. É a barbárie do tempo dos “vencedores”. Mas sabemos que aprendemos, principalmente, quando enfrentamos riscos e, portanto, cometemos erros. Aprendemos principalmente com a exposição livre de ideias e a troca entre elas.
Exposição e lançamento do livro “Murilo Salles Fotografias 1975-1979”
Data: 13 de agosto, às 19h, a 25 de agosto (segunda a sexta-feira, das 10h às 18h30, sábados, das 9h à 14h)
Local: Galeria Carbono (Rua Joaquim Antunes, 59, Jardim Paulistano, 11 4564-8400)
FILMOGRAFIA DE MURILO SALLES
COMO DIRETOR
1978 – Estas São as Armas (doc, média-metragem)
1985 – Nunca Fomos Tão Felizes (fic)
1995 – Todos os Corações do Mundo (doc)
1996 – Como Nascem os Anjos (fic)
2003 – Seja o que Deus Quiser (fic)
2004 – És Tu Brasil (doc)
2006 – O Espetáculo da Delicadeza (doc)
2008 – Nome Próprio (fic)
2014 – Aprendi a Jogar com Você (doc)
2014 – O Fim e os Meios (fic)
2015 – Passarinho Lá de Nova Iorque (doc)
2018 – Alegorias do Brasil (série de TV)
2019 – Uma Baía (doc, em finalização)
COMO DIRETOR DE FOTOGRAFIA
1972 – Tati a Garota, de Bruno Barreto
1973 – Um Edifício Chamado 200, de Carlos Imperial
1973 – A Estrela Sobe, Bruno Barreto
1975 – Carro-de-Bois, último curta de Humberto Mauro
1976 – Lição de Amor, de Eduardo Escorel
1976 – Dona Flor e seus Dois Maridos, de Bruno Barreto
1980 – Cabaret Mineiro, de Prates Correia
1980 – Beijo no Asfalto, de Bruno Barreto
1981 – Eu te Amo, de Arnaldo Jabor
1981 – Tabu, de Júlio Bressane
2005 – Árido Movie, de Lírio Ferreira
2006 – Nome Próprio (fotografia em parceria com Fernanda Riscali)
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