A tripla volta de Camilo Cavalcante ao longa-metragem
Por Maria do Rosário Caetano
Cinco anos atrás, o pernambucano Camilo Cavalcante saiu do Festival de Paulínia consagrado como um dos mais promissores e jovens talentos do cinema brasileiro. Seu primeiro longa-metragem, “A História da Eternidade”, inspirado em um curta de mesmo nome, cativou o júri de tal forma, que uma unanimidade se formou: era dele o Troféu Menina de Ouro, o mais cobiçado da competição.
O tempo passou, o Festival de Paulínia e o polo audiovisual que o cercava se desmancharam no ar e Camilo, hoje com recém-completados 45 anos, dispersou suas energias em projetos os mais variados (séries documentais para TV, em especial).
Só que, de repente, ele aparece com três longas-metragens. Um, “Beco”, está na Mostra Brasil, segmento da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (de 17 a 30 de outubro). Enquanto isto, ele finaliza “O Palhaço de Cara Limpa” e “King Kong en Asunción”, este, um road movie que perambula por territórios da Bolívia (a começar pela imensa Salina de Uyuni) e do Paraguai, visto em suas faces castelhana e guarany. O brasileiro nunca escondeu seu fascínio pela América Latina.
O segundo longa camiliano, “Beco”, será visto, em primeira mão, pelos frequentadores da Mostra paulistana. Com ele, o realizador promove mergulho no Beco do Inferno, espaço geográfico localizado ao lado do Mercado de Afogados, no bairro de mesmo nome, em sua Recife natal. E faz o que mais gosta (e fez em duas dezenas de vídeos e curtas-metragens): conta histórias de vida de gente humilde e suburbana. Sejam trabalhadores ou lúmpens, transeuntes ou sedentários, pobres ou miseráveis. Gente do povo, que busca comida, bebida, música, diversão, um dedo de prosa, que seja num beco povoado de bares.
Já “King Kong en Asunción” é uma narrativa ficcional (e experimental) em diálogo com o documentário. Um velho matador de aluguel está escondido numa imensa planície de sal, na Bolívia. Depois de meses de isolamento, ele viaja para o interior do Paraguai. Remunerado por trabalho executado, toma o rumo da capital, Assunção, disposto a aposentar-se da função de pistoleiro de aluguel. Mas seu maior desejo é conhecer sua única filha, uma mulher de trinta e muitos anos. Sem saber o paradeiro dela, ele inicia seu tumultuado e obsessivo mergulho nas entranhas da cidade. Desnorteado, vai perambular em busca de si mesmo e da filha desconhecida.
O título é uma citação explícita ao mais famoso King Kong do cinema, aquele símio que explodiu em fúria (numa Nova York de prédios altos e máquinas voadoras) quando quiseram tomar dele a mocinha frágil por quem se apaixonara.
Quem está nos créditos de “King Kong em Asunción” é Ana Ivanova, uma das atrizes do mais festejado filme da história do audiovisual paraguaio: “As Herdeiras” (Marcelo Martinessi, 2018). Neste filme, premiado em Berlim, Gramado e uma dezena de festivais mundo afora, Ivanova interpreta Angy, moça desinibida e autoconfiante, que seduz a protagonista Chela (Ana Brun), no momento em que esta, sozinha, tenta reconstruir sua vida. Afinal, sua parceira homoafetiva, Chiquita (Margarita Irún), fora encarcerada.
A Revista de CINEMA conversou com Ana Ivanov, que festeja sua primeira participação em um filme brasileiro e torce por novos convites. Afinal, pondera, “como venho de um país pequeno, com poucos fundos de fomento à produção audiovisual, apostar na consolidação de parcerias é vital”. E acrescenta: “o que temos de melhor na América Latina são as redes que unem pessoas criativas, capazes de gerar projetos e executá-los em coproduções com países vizinhos”.
Como você foi parar num filme do pernambucano Camilo Cavalcante? Onde se conheceram? Em algum festival?
Foi um acaso do destino que me levou a participar de um casting com a produtora paraguaia Karen Fraenkel, parte da equipe de “King Kong en Asunción”. Isto foi em 2016. Um ano depois, me avisaram que eu fora selecionada para interpretar um dos personagens. Quando me reuni com um dos produtores brasileiros, para acertar datas das filmagens, constatamos que o calendário coincidia com a rodagem de “Las Herederas”. Fiquei muito triste. Quando Camilo Cavalcante chegou, em 2017, a Assunção, para rodar “King Kong…”, fiz questão de conhecê-lo. Disse a ele que havia visto “A História da Eternidade”, seu longa anterior, e que me encantaria trabalhar sob a direção dele em outra oportunidade. Camilo foi muito amável, conversamos um pouco e ele me apresentou o protagonista, Andrade Jr (ator cearense-brasiliense, falecido em maio passado, aos 73 anos). Conheci, também, o diretor de fotografia, Camilo Soares e a produtora Amanda Nascimento.
Mas se as filmagens de “As Herdeiras” a impediram de atuar em “King Kong en Asunción”, como é que você se integrou ao filme?
Em 2018, ano em que fomos a dezenas de festivais, desde que “Las Herederas” estreara em Berlim, Karen Fraenkel voltou a me contatar e trouxe uma novidade: havia uma “voz” protagonista em “King Kong…”, e Camilo queria que eu a fizesse. Ela me explicou que tal voz seria uma representação da morte e estaria presente em grande parte do filme. Fiquei preocupada: eu nunca fizera um personagem que fosse somente voz. Será muito difícil atuar sem a imagem do meu corpo, um desafio e tanto, pensei. Como amo desafios e a exigência de fazer algo novo, aceitei. O texto que eu interpreto é belíssimo, de autoria da gaúcha Natália Borges Polesso, e foi traduzido poeticamente para o guarany, por Lilian Sosa. Passei a ensaiar, sem descaso e ao longo de três semanas, em Assunção, até viajar para o Recife e gravar o texto em estúdio. Camilo me disse que buscava, neste filme, recriar a natureza humana em sua forma mais primitiva. Ele queria que este relato oral fosse um forte contraponto à imagem.
Você ficou satisfeita com o resultado?
Fiquei muito satisfeita. E espero novos convites. Este é meu primeiro projeto cinematográfico brasileiro e desejo, com muito entusiasmo, que seja o início de muitos outros. No Brasil, só tive uma experiência, das mais singular: há dois anos, trabalhei em São Paulo, com o diretor Gerald Thomas, em projeto teatral. Estou realmente aberta para projetos brasileiros, por tratar-se de um mercado muito importante, além de nutrir imenso fascínio por este país tão grande. Estou especialmente impactada pelo Nordeste, sua história e sua mística, muito inspiradores.
O que mudou na sua vida e na sua carreira de atriz depois do imenso sucesso internacional e paraguaio de “As Herdeiras”?
Fazer parte deste filme, que nos levou a tantos países, recebeu tantos prêmios e alcançou visibilidade inédita no cinema paraguaio, me permitiu circular por um mercado internacional completamente desconhecido por mim. Além do mais, criou um padrão de exigência muito alto. Sempre lembro que tenho que estar à altura de novos projetos e desafios. Este filme mudou nossas vidas, a minha e de minhas colegas de elenco. Abriu caminhos novos e diferentes para todas nós. Não há fórmulas na carreira artística, nem na vida. Há, isto sim, que trabalhar e contar com alguma dosagem de sorte, ingredientes aos quais somaria a intuição, esta ferramenta essencial à escolha de novos trabalhos e desafios.
Guillermina Villalba, secretária do Audiovisual do Paraguai contou, no FAM (Florianópolis Audiovisual Mercosul), que seu país está realizando média de 5 a 6 longas/ano. Como você vê o momento presente da cinematografia de seu país?
Este foi um ano muito bom para nosso cinema, nossa indústria está se fortalecendo com novas produções e estreias. O apoio da SNC (Secretaria Nacional de Cultura) vem se mostrando fundamental para o setor audiovisual. E faço questão de sublinhar que, no interior de meu país, apesar da ausência de recursos técnicos e financeiros similares aos da capital, existem três focos de produção: Cuidad del Este, Coronel Oviedo e Encarnación. Nestas cidades, estrearam novos filmes de ficção. É fundamental acompanhar os processos de descentralização da cultura entendendo que esta é uma responsabilidade de todos. Por outro lado, a promulgação da Lei 6.106 de fomento ao audiovisual, ocorrida em 5 de julho de 2018 (depois de 10 anos de esforço de cineastas e organizações como a Mesa Multi-Setorial e a SNC), tem que ser festejada como uma grande conquista coletiva do setor. Falta, agora, só a regulamentação da Lei pelo Executivo nacional.
Como você vê as demandas das mulheres por uma maior representação no cinema?
Vejo como algo essencial, fundamental. Espero, para futuro próximo, transformações nas miradas e nos conteúdos, necessitamos de mais mulheres nos papéis de roteiristas e diretoras, pois elas trarão perspectivas distintas e revitalizadoras. Não estou dizendo que uma roteirista e/ou diretora signifique necessariamente uma perspectiva de maior empatia com a vida das mulheres, mas creio ser inegável que haverá muito mais possibilidades de isto acontecer, se o roteirista ou diretor é um homem, um ser historicamente privilegiado em excesso. No que depender de mim, de meus esforços, espero ajudar a promover a visibilidade das mulheres rurais, afrodescendentes e indígenas no cinema que estamos fazendo no Paraguai.