CPC-UMES lança “Andrei Rublev” em DVD e Blu-Ray

Por Maria do Rosário Caetano

Duas vertentes – uma materialista e uma mística – compõem a base do grande cinema russo e soviético. Quem conhece os filmes de Eisenstein, Dziga Vertov, Pudovkin e Dovchenko sabe que a base estético-filosófica de seus filmes sedimentou-se no materialismo histórico. Quem conhece o cinema de Andrei Tarkovsky e Alexander Sokúrov sabe que os dois são os nomes mais significativos da vertente místico-espiritual.

“Andrei Rublev”, épico religioso-filosófico de Tarkovsky – que o CPC-UMES acaba de lançar em DVD e Blu-Ray – é o mais belo e ousado dos projetos soviéticos dirigidos por um autor preocupado com a transcendência.

O filme, realizado em 1966, teve sua primeira sessão no mesmo ano, em Moscou. Ao longo de 183 minutos, Tarkovsky recria, livremente, a história do maior pintor e iluminador de ícones da história russa. O resultado gerou controvérsias. “Andrei Rublev” só foi lançado além das fronteiras soviéticas em 1969. E o fez, fora de competição, no Festival de Cannes.

Émile Breton, integrante da equipe de pesquisadores do historiador e crítico francês, Georges Sadoul (1904-1967), registrou, no “Dicionário Sadoul de Filmes”, por ele atualizado, que “Andrei Rublev” era (é) um filme de grande importância por “sua vigorosa reivindicação de espaço de expressão para o criador”, fosse o pintor de ícones, fosse um cineasta, ou um escritor. Para, em seguida, ponderar: Tarkovsky “rompe com o cinema soviético dos anos 1920/1930 – ao qual muitas vezes o comparam –, pois este é ligado à definição não de uma transcendência da arte, mas a um elo cientificamente buscado entre o criador e a sociedade em que ele vive”. Ou seja, uns buscam a justiça social na terra. Outros, no céu.

Andrei Rublev nasceu entre 1360 e 1370 e morreu em 1430, com idade próxima aos 70 anos. Quando Tarkovsky começou a escrever (com o amigo Andrei Konchalovski, irmão de Nikita Mikalkov) o roteiro de seu épico, ele tinha pouco mais de 30 anos. E trazia na bagagem um Leão de Ouro, conquistado em Veneza, com “A Infância de Ivan” (1962). Portanto, com cacife suficiente para realizar um filme em preto-e-branco, com mais de três horas de duração e sobre um homem em busca de ascese na “Santa Rússia” medieval, povoada por eslavos e asiáticos. Uma Rússia dominada por sentimentos religiosos profundos e apavorada pela invasão dos tártaros.

Os dois Andrei tomaram todas as liberdades possíveis ao roteirizar a vida do pintor e iluminador de ícones, um fiel devoto cristão-ortodoxo. Mesmo assim, trabalharam sempre com a consultoria do historiador artístico e restaurador Savva Yamschikov. E convocaram os melhores quadros artísticos da União Soviética para ajudar na criação de “Andrei Rublev”. Direção de arte primorosa, figurinos (de gente do povo, monges, príncipes, tártaros) muito críveis, cenários físicos e artificiais impressionantes. E muitos cavalos, muita neve, muita chuva, muita lama. Como chove nesse épico espiritual!

Tarkovsky trabalhou em diálogo com as ousadias experimentais do Construtivismo Russo – Eisenstein em especial – impregnadas em sua sensibilidade. E somou a grandes atores, um fotógrafo (Vadin Yusov) fiel à grande tradição de soviéticos geniais como Edward Tisse, Anatoli Golovnia e Sergei Urushiev, e um músico de talento ímpar (Viacheslav Ovchinnikov).

“Andrei Rublev” contou, ainda, com a retaguarda da poderosa Mosfilm, um dos estúdios mais antigos do mundo (o mais antigo e mais resistente?). A cópia impressa em DVD e Blu-Ray pelo CPC-UMES foi primorosamente restaurada, em 2004, pela mesma Mosfilm.

A maioria das fontes ocidentais registra em cores fortes os problemas enfrentados por Tarkovsky frente ao poder cultural e político soviético. “Andrei Rublev”, afinal, foi realizado na Era Brejnev. Não se deve, porém, exagerar os conflitos enfrentados pelo cineasta naquele momento. Até porque, depois de “Rublev”, ele faria mais três filmes com apoio total do governo Brejnev: “Solaris” (1972), “O Espelho” (1974) e “Stalker” (1979). Os problemas se agravariam, sim, na década de 1980. Tanto que Tarkovski realizou seus três últimos filmes – “Nostalgia”, “Tempo di Viaggio” e “O Sacrifício” – fora de seu país natal. Os dois primeiros na Itália e o último na Suécia.

É sabido que o cinema soviético posicionou-se entre dois pêndulos: um balizado pelo cinema de invenção (como o realizado pelos Construtivistas e por seus seguidores) e outro com realizadores voltados à produção mais narrativa e em busca de diálogo com o grande público. Tarkovsky sempre atuou no terreno dos inventores. Tudo indica que, ao ser concluído, “Andrei Rublev” tenha assustado parte da burocracia estatal por sua longa duração e narrativa lenta e metafísica. E a incompreensão não foi só interna. Ao ser exportado, o filme sofreu enxugamentos. A Columbia Pictures, que o distribui nos EUA, reduziu muitos de seus 183 minutos.

A relação do Socialismo soviético, baseado no materialismo histórico, com a religião sempre foi muito complexa. Até Joseph Stálin, o mais autoritário dos governantes do país dos Sovietes, entendeu, em determinado momento, que tinha que afrouxar seus parâmetros e exigências relativos à fé popular. O ateísmo nunca foi uma força hegemônica na imensa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, soma de 15 territórios.

Se o governo Brejnev fosse contra a realização de “Andrei Rublev”, a liberação de recursos da poderosa Mosfilm não se daria como se deu. A indústria cinematográfica da URSS tinha comitês que zelavam por cada projeto, desde seu argumento, passando pelo roteiro e desaguando na liberação dos recursos. Tarkovsky contou com orçamento dos mais significativos. Trata-se, e o público verá, de uma superprodução, com centenas de locações (naturais e em estúdio), batalhas, vestuário e objetos de cena.

Talvez, vale reforçar, parte da burocracia brejneviana esperasse por um filme de comunicação mais fácil. Ao deparar-se com um épico filosófico, veio o incômodo. Mas, a partir de 1969, o filme seguiu sua trajetória na URSS e no exterior. Não resultou, é verdade, em nenhum estouro de bilheteria. Sua recepção ficou distante do maior sucesso do cineasta, “Solaris”, ainda hoje seu filme mais conhecido. Seguido de “Stalker”.

Com a ditadura militar implantada no Brasil, em 1964, o cinema soviético foi banido de nossas telas. Nem o tema religioso de “Andrei Rublev” abriu portas (o artista tornar-se-ia santo da Igreja Ortodoxa em 1988). Só em 1995, ano do Centenário do Cinema, “Andrei Rublev” se faria presente em nossas telas. Isso aconteceu quando a Folha de S. Paulo organizou, na Sala Cinemateca, em Pinheiros, a mostra dos “100 Maiores Filmes de Todos os Tempos” e o épico tarkovskiano foi um dos eleitos.

Onde encontrar cópia do raro e pouco visto épico espiritual de Tarkovsky, que morrera nove anos antes, de câncer (tinha apenas 54 anos) no exílio parisiense? Na Cinemateca Brasileira? Na Cinemateca do MAM-Rio? Em nenhuma das duas. Quem socorreu a Folha foi a Cinemateca Uruguaia, que, ciente do valor de seu tesouro fílmico, mandou um emissário para zelar pela exibição. A película, afinal, tinha que voltar, intacta, a Montevidéu.

O segundo longa-metragem de Tarkovsky empreende profundo mergulho nas errâncias de Andrei Rublev, na primeira metade do século XV. Para dar conta de 24 de seus quase 70 anos, o cineasta e Konchalovski construíram um roteiro em oito partes (todas em preto-e-branco) e um Epílogo (em cores).

Tudo começa no verão de 1400. Um prólogo, arrebatador, nos mostra um homem realizando, num tosco balão, o sonho humano de voar. Do alto, ele contemplará a terra e seus amigos. E o espectador será tomado por imagens de beleza epifânica.

O que se verá a seguir exigirá – para plena fruição – um espectador atento e com algum conhecimento histórico da “Santa Rússia”. O filme não é, temos que admitir, fácil.

Numa casa de madeira, um bufão (o formidável Rolan Bykov) diverte aldeões com suas sátiras maliciosas. Ao local, chegam três monges: Andrei Rublev (Anatoly Solonitsyn), Danila (Nicolai Grinko) e Kiril (Ivan Lapitov). Registre-se o magnífico trabalho de Solonitsyn, seja como o jovem monge, seja em sua maturidade, já calvo e se aproximando dos 50 anos.

Os três monges erram por caminhos e aldeias russas em busca de trabalho, pois são pintores de ícones religiosos. O bufão acabará espancado por enviado dos poderosos boyardos.

Em sua errância, os religiosos encontrarão, na segunda parte (1405-1406), o grande artista Theophanes, o Grego. Que convidará Rublev a trabalhar com ele nos afrescos da Catedral da Anunciação, em Moscou. Um novo personagem entrará em cena, o jovem Foma (Mikhail Kononov).

A terceira parte (“A Paixão Segundo Andrei”) mostra Rublev e Foma, numa floresta, conversando sobre a mentira e o ofício de ambos, a arte de pintar e iluminar ícones religiosos. Quando Theophanes os encontra, uma de suas provocações (“a ignorância do povo russo é consequência de sua estupidez”) incomodará Rublev. Ao longe, sobre a neve muito branca, uma procissão de penitentes (imagens que dialogam com uma das mais belas sequências de “Ivan, o Terrível”, de Eisenstein) encena a crucificação de Cristo.

“A Festa (1408)”, quarta parte do filme, mostra, ainda na floresta e à beira de um rio, um grupo de pagãos completamente nus, que realiza o ritual da tocha para saudar o verão. Ao ver um casal fazendo sexo, Rublev será punido e amarrado numa cabana (como Cristo o foi na cruz). Uma moça, Marfa (Nelly Snegina) o libertará. Andrei Rublev vagará, perdido, pela floresta.

Na quinta parte, “O Juízo Final”, o jovem monge terá reencontrado seus colegas e, em uma igreja em Vladimir (situada a 200 km de Moscou), trabalhará (em parceria com Kiril e Foma) na criação de afrescos. Mas o tema do Juízo Final provoca bloqueio criativo no jovem monge. Ele não quer aterrorizar as pessoas, estimulando-as à submissão. Por isso, Andrei Rublev prefere ir trabalhar numa igreja menor. E começarão os momentos mais terríveis da história do protagonista desse épico de Tarkowski. Um Grande Príncipe encomenda a escultores um trabalho em seus domínios. Não fica satisfeito com o resultado e exige que o refaçam. Eles se negam, pois foram convocados pelo ambicioso irmão do Príncipe a realizar trabalho semelhante àquele esculpido em pedras. Insatisfeito e disposto a evitar a reprodução das peças, o Grande Príncipe mandará furar os olhos dos artesãos-escultores. O angustiado Rublev conhecerá Durochka (a atriz Irma Raush, então esposa do cineasta). Ela é uma moça tola, inocente, sem discernimento.

No outono de 1408, dá-se “A Invasão”. O Grande Príncipe encontrava-se em viagem à Lituânia. Seu ambicioso irmão aproveita para aliar-se aos invasores tártaros, chefiados por Khan (Bolot Beishenalieyev), e tentar assumir o comando de Vladimir. A carnificina é total. Em mais uma citação de Eisenstein (“Outubro”/1927), vemos um cavalo no centro do quadro, caindo e sendo dilacerado por uma lança.

Os tártaros barbarizam a população civil, queimam a cidade e os afrescos de seus templos. Mensageiro do Bispo é detido e torturado para revelar o esconderijo do ouro de Vladimir. Como não cede, sua boca receberá o metal incandescente de um crucifixo derretido. Um dos aliados russos dos invasores agarrará Durochka para estuprá-la. Andrei Rublev tomará atitude que terá imensa influência em sua vida futura.

No brutal inverno de 1412, dá-se “O Silêncio” de Rublev. De volta ao Mosteiro de Andronikov, ele permanecerá mudo. A fome e as batalhas continuarão assolando a “Santa Rússia” que o rodeia. Os tártaros seguem em suas conquistas. Durochka, a boba de mentalidade simplória, se encantará com a armadura metálica que enfeita o peito de um guerreiro tártaro. E montará na garupa do invasor, partindo com ele para tornar-se sua “oitava esposa, a primeira de origem russa”. Rublev tenta, em vão, impedi-la. Kiril o demove, lembrando que prejudicar pessoas tolas como a jovem significa má sorte. Por isso, “ela não sofrerá”.

Significativa passagem de tempo introduzirá a oitava parte, “O Sino”. Andrei Rublev vivenciará as várias estações dos anos de 1423 e 1425, ainda afastado de seu ofício de pintor e iluminador de ícones. E cumprindo voto de silêncio. O Grande Príncipe deseja inaugurar um imenso sino em seus domínios. Um adolescente, Boriska (Nicolai Burlyaiev), candidata-se à empreitada. Ele garante que herdou do pai, em sua hora derradeira, os segredos da complexa fabricação de sinos. Com um grupo de auxiliares, buscará argila para o molde, forno para a fundição do bronze, enfim, tudo que se fará necessário. Rublev a tudo observa. O bufão do prólogo reaparece e avança sobre o pintor de ícones, pois o tem como o responsável por seu espancamento. Kiril revelará que fora ele o delator. E tentará convencer Rublev a retomar seu ofício, rompendo com o voto de silêncio. Não era justo que desperdiçasse talento tão grande, que lhe fora dado por Deus. O Grande Príncipe, por sua vez, avisa que se o sino não funcionar, todos que estão envolvidos em sua fabricação serão decapitados.

No epílogo, entram ícones reais (em cores fortíssimas, com predomínio do vermelho e do dourado) de Andrei Rublev, pintados e iluminados no século XV (Tarkovsky os filmou no século XX). As imagens registram a entrada de Jesus em Jerusalém, a ressurreição de Lázaro, Cristo entronado, entre outras cenas bíblicas. Dá-se um corte e, sob chuva, vemos quatro cavalos bravios. Esse é o enigmático final do épico espiritual de Tarkovsky.

Depois de três horas de imagens, muitas delas brutais, entenderemos porque os estudiosos da obra de Andrei Rublev afirmam que “o pintor conseguiu combinar a busca da ascese à harmonia clássica bizantina, criando – sempre – figuras calmas e pacíficas”. Distantes, portanto, da brutalidade que seus olhos, tantas vezes, testemunharam. Distantes, também, da arte bolchevique.

Andrei Rublev
URSS, 183 minutos, 1966
Fotografia em preto-e-branco, com epílogo em cores
Direção: Andrei Tarkovsky
Elenco: Anatoly Soonistsyn, Roland Bykov, Nikolai Grinko, Ivan Lapitov, Irma Raush, Nelly Snegina, Mikhail Kononov, Nicolai Burlyaiev, Yuri Nazarov, Bolot Bieshenaliev, Vladimir Titov
Lançamento em DVD (R$39,90) e Blu-Ray (R$54,90) pelo CPC-UMES Filmes. Pedidos por: www.cpcumesfilmes.org.br

 

FILMOGRAFIA
Andrei Arsenevich Tarkovsky
(Rússia/1932- Paris/1986)

1962 – “A Infância de Ivan”
1966 – “Andrei Rublev”
1972 – “Solaris”
1974 – “O Espelho”
1979 – “Stalker”
1982 – “Nostalgia”
1986 – “O Sacrifício”
1983/1995 – “Tempo di Viaggio” (documentário póstumo, concluído por Tonino Guerra)

Sobre o realizador:

1999 – “Um Dia de Andrei Arsenevich”, de Chris Marker
2019 – “Andrei Tarkovsky – Uma Oração de Cinema”, de Andrei A. Tarkovsky

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