Toni Venturi lança o longa “Dentro da minha Pele”
Por Maria do Rosário Caetano
O cineasta Toni Venturi lança, neste domingo, 23 de agosto, “Dentro da minha Pele”, seu mais novo longa-metragem. Trata-se de poderosa reflexão sobre o racismo brasileiro, construída com depoimentos substantivos, recursos metalinguísticos, grafismos plásticos e algum material de arquivo. Enfim, um mergulho no que a filósofa Sueli Carneiro chama de “mancha negra”, questão desafiadora e crucial na história brasileira.
O filme, o nono do diretor paulistano e o primeiro de sua codiretora, Val Gomes, terá pré-estreia no Cine Drive-in Go Dream, no Pacaembu, às 17h30, e será disponibilizado on demand pela Globoplay. Quem não for à pré-estreia, poderá alugar o filme, que permanecerá por longo período no streaming.
“Dentro da minha Pele” nasceu como projeto pessoal de Toni Venturi, 64 anos, paulistano de origem italiana, autor, até então, de quatro longas documentais (um deles sobre Luiz Carlos Prestes, outro sobre Rita Cadillac), de quatro ficções (destaque para “Latitude Zero” e “Cabra Cega”) e de séries para TV (como “Cena Inquieta”, em cartaz no SescTV). Ao realizar seu nono longa-metragem, um documentário sobre o racismo, Toni fez questão de montar equipe em que profissionais de pele preta fossem maioria (44 negros e cinco brancos). E compreendeu a importância de ter como parceira, na direção, a socióloga afro-brasileira Val Gomes.
O cineasta, que estudou Cinema no Canadá, colocou-se como alvo voluntário de seus entrevistados. Por isso, ao longo da narrativa, de densos 85 minutos, alguns dos “entrevistados” o colocarão na parede.
Sueli Carneiro dirá a Venturi que ele é um dos brancos de origem europeia que ajudam a perpetuar o racismo estrutural, por não quererem ceder o poder de mando, acumulado ao longos de quase cinco séculos.
Neon Cunha, funcionária pública transexual, usa seu discurso muito articulado para esboçar o quadro da discriminação dos afro-brasileiros no trabalho e provocar o documentarista: por que é você, que é branco, quem comanda o projeto e não sua codiretora, que é negra?
O depoimento mais ousado (e desconcertante) do filme vem do historiador e artista Salloma Salomão, de corpo esguio e gestos calmos. Olhando nos olhos de Toni Venturi (e dos espectadores), ele provoca: e se “matássemos meia-dúzia de brancos, cruelmente, com argumento racista? Talvez (conseguíssemos) tornar essa sociedade mais sensível à questão do racismo antinegro”. Para encerrar sua provocação: “nós ainda não nos capitalizamos em termos de perversidade para operar nesse campo”.
A psicóloga Cida Bento, colunista da Folha de S. Paulo, usa de ferina ironia ao referir-se à teoria apaziguadora da miscigenação, aquela que garante não haver racismo no Brasil. Aqui, diz-se, não se sabe quem é negro, quem é branco. “Pergunte à Polícia”, propõe, incisiva, e “você vai saber”.
Toni e Val Gomes “entrevistaram” dezenas de pessoas. Quatro são brancas. Uma professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Lia Vainer Schucman, o sociólogo Jessé Souza, autor de “A Ralé Brasileira – Quem é e Como Vive”, o tenente-coronel aposentado Adilson Paes, estudioso progressista das causas da violência policial, e Márcia Gazza, mãe de filho adotivo, negro, assassinado por policiais. O jovem, Renatinho, foi espancado, torturado e levado a hospital no Itaim Paulista. Quando os pais souberam, ele já estava morto.
A maioria absoluta dos “entrevistados” é de pele preta. Rappers, slammers, modelos, artistas plásticos, arquiteta, médico (arrebatador o testemunho do Dr. Estefânio Neto, sergipano radicado em São Paulo), garçom, estudantes da Fundação Getúlio Vargas (dois jovens pobres que frequentam essa conceituada escola da elite paulistana), funcionários públicos, domésticas.
Toni e Val fugiram com muita habilidade do modelo “cabeças falantes”, aquelas que dão depoimentos superficiais, de formato televisivo. Daí, não ser adequado dizer que diretor e codiretora “entrevistam” os participantes do filme. Na verdade, estabelecem conversas, que na maioria dos casos, rendem muito.
Não se pode esquecer o poderoso depoimento de Neide de Sousa. Baiana, de família grande (dez irmãos), ela veio para São Paulo na adolescência. Aos 15 anos, tornou-se doméstica de patroa que nunca perdia a chance de reafirmar a “inferioridade” da empregada. Ganhou uma coberta, peça única, que deveria servir de lençol e cobertor, comia o que sobrasse da mesa dos patrões, dispunha de papel higiênico usado para o número 1 (o xixi), estendido em varalzinho para reaproveitamento. Ela começou a emagrecer e a irmã, que a acolhera em São Paulo, perguntava o que estava acontecendo. Quatro anos depois, Neide não aguentou. Deixou aquele emprego e conseguiu outro. Ainda hoje exerce o ofício e conta sua história com lágrimas no olhos, mas sem nenhum sentimentalismo ou chantagem.
Outro depoimento impressionante é o de Daniele dos Santos Reis, pele morena, que casou-se com rapaz de pele preta. Divorciaram-se, mas o amor falou mais alto e casaram-se de novo. Quando Daniele, que é professora, inicia seu testemunho, ela está grávida e feliz ao lado do marido. Irá conclui-lo com o filho nos braços. Ela lembra que a avó, que se casara com um homem branco, censurou a neta por ter escolhido parceiro preto. O ideal seria “embranquecer a família”.
Além dos depoimentos, fortes e reveladores, Toni e Val lançam mão de contrastantes registros da metrópole paulistana (imagens contrastantes de bairros ricos e grandes periferias urbanas) e de informações impressas na tela, que servem para contextualizar historicamente a exploração e a resistência dos negros. O Brasil, não podemos esquecer, continua sendo um país cuja hegemonia branca nunca foi posta em risco. Saberemos, assim, que 1837, lei proibia negros de estudarem em escolas de brancos. Que, em 1890, começou a vigir a “Lei da Vadiagem”. Com a abolição e importação de mãos-de-obra branca, de origem europeia, os negros (sem nenhum tipo de reparação) começaram a vagar pelas ruas. Ou seja, a praticar a “vadiagem”, que os qualificaria ao cárcere.
Em 1978, nasceu o MNU (Movimento Negro Unificado). Imagens da solenidade inaugural constituem um dos poucos instantes em que “Dentro da minha Pele” recorre a material de arquivo. A Lei de Cotas, de 2012, constituirá um dos raros momentos em que os brancos se sentiram ameaçados. Afinal, jovens pretos poderiam tirar vagas de seus filhos nas melhores universidades do país. Houve grito, protestos e até um partido político (o DEM), que recorreu ao STF para derrubar a conquista. Foi derrotado. Os afro-brasileiros, que ocupavam 3% das vagas no ensino superior, hoje se aproximam dos 12%. Mas o desafio da inclusão ainda é desesperador.
Muitos dos participantes do filme dedicam-se à criação artística, seja como profissão ou segundo ofício. Por isso, além do trabalho costumeiro, aparecem mostrando seus dons, seja ao violão, num rap ou num samba. Dois, em especial, nos encantam com seus dons musicais. O paraibano Chico César abre o filme com a poderosa “Respeitem meus Cabelos, Branco”. Thaíde o encerra, com cor, alegria e sonoridade emancipadora.
Dentro da minha Pele
Brasil, 86 minutos, 2020
Longa documental
Direção: Toni Venturi e Val Gomes
Roteiro: Toni Venturi, Val Gomes e Marcus Aurelius Pimenta
Grafismos: Bruno Bayeux
Produção: Olhar Imaginário
Distribuição: O2 Play
Estreia: 23/08, no Drive-in Go Dream, no Pacaembu (17h30), e será disponibilizado, também neste domingo, on demand (VOD) pela Globoplay
FILMOGRAFIA
Toni Venturi
(São Paulo/SP, 21/11/1955)
1997 – “O Velho, A História de Luiz Carlos Prestes” (doc)
2001 – “Latitude Zero” (ficção)
2004 – “Cabra Cega” (ficção)
2006 – “Dia de Festa” (doc)
2007 – “Rita Cadillac, a Dama do Povo” (doc)
2011 – “Vocacional, uma Aventura Humana” (doc)
2011 – “Estamos Juntos” (ficção)
2017 – “A Comédia Divina” (ficção)
2020 – “Dentro da minha Pele” (doc)