Gramado premia “King Kong en Asunción”, “La Frontera” e “O Barco e o Rio”
Por Maria do Rosário Caetano
O “cinema do Norte” foi o grande vencedor da quadragésima-oitava edição de Festival de Cinema de Gramado, a primeira realizada no espaço virtual. O vencedor na categoria longa brasileiro foi o pernambucano “King Kong en Asunción”, de Camilo Cavalcante. Como melhor curta, o eleito foi “O Barco e o Rio”, de Bernardo Ale Abinader, primeiro filme amazonense a triunfar no festival gaúcho. Já na competição latino-americana, o vencedor foi o colombiano “La Frontera”, do jovem David David.
O júri oficial apostou em filmes mais inquietos e experimentais e pautou-se pelo distributivismo. Ano passado, “Pacarrete”, de Allan Deberton, somou oito troféus. Esse ano, o vencedor, somou três (melhor filme, melhor ator, láurea póstuma para Andrade Júnior, morto em maio do ano passado, e trilha sonora para Shaman Hernández). Apesar de suas ousadias narrativas, o longa camiliano foi o escolhido do Júri Popular. Só não fez a tríplice coroa, porque perdeu o Prêmio da Crítica, atribuído ao “Animal Amarelo”, de Felipe Bragança.
A escolha de “King Kong en Asunción” foi muito justa. O terceiro longa de Cavalcante é um inventivo mergulho na mente e nos poros de um pistoleiro de aluguel que, já velho e exausto, decide interromper a prática de seu terrível ofício e procurar filha adulta, que nem conhece.
O Kikito de melhor ator ao brasiliense Andrade Júnior foi inquestionável. O intérprete, que morreu sem ver o filme pronto, é um dos mais sólidos pilares do filme, além de sua fonte originária. Foi sua performance de “homem-gorila”, apresentada ao diretor num quarto dividido de hotel, no Festival de Nova Iguaçu, que serviu de ponto de partida ao roteiro. A trilha sonora, do argentino Shaman Herrera, é também de grande e xamânica beleza.
O filme de Camilo Cavalcante tem alma latino-americana, é narrado em guaraní pela voz da Morte, representada pela paraguaia Ana Ivanova, e somou esforços do Brasil a mais quatro países (Bolívia, Paraguai, Argentina e Colômbia). Faz-se notável, também, em sua construção, a fotografia de Camilo Soares. Ele registra, com rara potência, as imensidões do deserto de sal boliviano (Salar de Uyuni), as selvas, o chaco paraguaio, as ruas da cidade grande e, também, os espaços fechados.
O segundo filme a receber prêmios importantes foi “Aos Pedaços”, décimo-sexto longa-metragem do veterano Ruy Guerra (89 anos). O cineasta embaralha tempos e mergulha nos pesadelos de um homem de alma cindida, cercado de mulheres fatais e de um pregador de bíblia na mão.
Ao receber o Kikito de melhor diretor, Guerra fez o mais longo e politizado discurso da cerimônia de premiação. Defendeu o cinema de inovação e bateu forte no Governo atual. Conclamou à luta “contra a escuridão em que vivemos, esse governo racista que persegue indígenas e quilombolas”, e que aposta “na destruição das artes e da ciência”. E fechou agradecendo à equipe de “Aos Pedaços”, que o ajudou “a descobrir o filme que queria fazer”. Dois dos integrantes de sua trupe, que realizou o filme em praias de Maricá, litoral fluminense, e em estúdio do Polo de Cinema da Zona da Mata, em Cataguases-MG, foram premiados: o fotógrafo Pablo Baião e o designer de som, Bernardo Uzeda.
Ao usar o espaço on-line para agradecer o Kikito de melhor filme, Camilo Cavalcante endossou a fala de Ruy Guerra e acrescentou: “Sem arte, a gente não sobrevive ao peso da vida. Seguimos com a vontade de construir um país e uma América Latina mais iguais, mais justos e mais afetuosos. Estamos vivendo um momento surreal, de violência e de falta de tolerância”.
“Um Animal Amarelo”, coprodução que uniu Brasil, Moçambique e Portugal, somou prêmios (melhor atriz para Isabel Zuaa, roteiro para o diretor Felipe Bragança e seu colaborador lusitano João Nicolau e direção de arte para Dina Salem Levy) ao Prêmio da Crítica e menção honrosa (para seu protagonista, o ator Higor Campagnaro).
Houve um filme injustiçado na noite dos troféus Kikito, o paulista “Todos os Mortos”, coprodução Brasil-França comandada pela dupla Caetano Gotardo e Marco Dutra, do coletivo Filmes do Caixote. A este longa-metragem, que subverte as regras do filme histórico, restaram três prêmios secundários: melhor atriz coadjuvante (Alaíde Costa), ator coadjuvante (Thomás Aquino) e trilha sonora (Salloma Salomão, dividido com o argentino Shaman Herrera, de “King Kong en Asunción”).
Os dois documentários selecionados para a competição – “Me Chama que Eu Vou”, sobre Sidney Magal, e “O Samba é Primo do Jazz”, sobre Alcione – passaram (merecidamente) quase em branco. O primeiro teve sua montagem (de Eduardo Gripa) laureada. Construídos, ambos, com manufatura convencional e escorados no carisma de seus protagonistas, em nada ousaram, em nada inovaram.
O brasiliense “Por que Você Não Chora?”, de Cibele Amaral, recebeu menção honrosa (para Elisa Lucinda), uma das atrizes de seu numeroso elenco.
A competição de longas latino-americanos dividiu-se entre dois filmes, o vencedor “La Frontera”, ficção de pegada documental, vinda da Colômbia, e o documentário uruguaio “El Gran Viaje al País Pequeño”. Os diretores David David, do primeiro, e Mariana Viñoles, do segundo, são, sim, realizadores inquietos, que fazem filmes de risco e sabem que o documentário e a ficção são formas híbridas de narração, arriscadas e sujeitas ao acaso.
O que seria do filme-viagem dos sírios (refugiados que encontraram abrigo no Uruguai), se um levante não sacudisse a narrativa? Como não nos sentirmos sem chão quando os acolhidos proferem terríveis imprecações (“bandidos”, “ladrões”, “mentirosos”) contra aqueles que, generosamente, os acolhiam? Cinema é risco.
Além de melhor filme, “La Frontera” recebeu dois troféus Kikito – para suas ótimas atrizes, a indígena Dajlin Vega Moreno e a afro-caribenha Sheila Monterola, e melhor roteiro, da lavra de seu jovem diretor, David David. O filme se passa em território conflagrado (fronteira entre Venezuela e Colômbia) e acompanha destinos de gente do povo, vítima de decisões políticas insensatas.
“El Gran Viaje al País Pequeño” somou o Kikito de melhor direção (Mariana Viñoles) e Prêmio Especial do Júri, ao troféu do Júri Popular e ao Prêmio da Crítica.
O ótimo thriller social paraguaio, “Matar a un Muerto”, merecia mais que o único Kikito ganho (melhor ator para Aníbal Ortíz). De origem guaraní, Aníbal interpreta Dionísio, ajudante de homem que enterra na floresta, clandestinamente, corpos assassinados pela ditadura militar comanda por Alfredo Stroessner (entre 1954 e 1989).
Ao híbrido de western e drama amoroso “El Silencio del Cazador”, do argentino Martin Dessalvo, coube o Kikito de melhor fotografia para Nicolas Trovato.
A disputa pelo prêmio de melhor curta brasileiro ficou entre o amazonense “O Barco e o Rio” e o pernambucano “Inabitável”. Ambos de significativas qualidades. O primeiro somou quatro troféus (melhor filme, melhor direção para Bernardo Abinader, fotografia para Valentina Ricardo e direção de arte para Francisco Lira Caetano) ao Prêmio do Júri Popular.
Já “Inabitável” ficou com o Kikito de melhor atriz para a baiana do Grupo Teatral Olodum, Luciana Souza, em formidável desempenho, roteiro, dos diretores Matheus Farias e Enock Carvalho, Prêmio Canal Brasil (R$15 mil, troféu com novo design e exibição garantida na telinha da emissora) e o Prêmio da Crítica.
O paulistano “Você Tem Olhos Tristes” rendeu o Kikito de melhor ator a Daniel Veiga, que dedicou o troféu aos corpos transexuais (caso dele, que fez a transição para corpo masculino) e melhor montagem (Ana Júlia Travia). No elenco, dessa história de bike boy, que entrega comida pela ruas de São Paulo, estão Gilda Nomacce e Jean-Claude Bernardet.
O também paulistano “Receita de Caranguejo” rendeu Prêmio especial a Preta Ferreira, atriz, cantora e líder Sem-Teto, que passou mais de dois meses na prisão, acusada de constituir “perigo à sociedade”. Isadora Torres e Vinícius Martins foram premiados pelo melhor desenho de som.
No Gauchão, competição composta com curtas-metragens que disputam troféus patrocinados pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, os vencedores foram “Construção”, de Leonardo da Rosa (realizado no interior do estado, em Pelotas) e “Deserto Estrangeiro”, laureado pela melhor direção (Davi Preto) e pelo desempenho de seus protagonistas (melhor atriz, para Isabel Zuaa, premiada também com o Kikito, por “Um Animal Triste”, e melhor ator para Mauro Soares).
Na mostra de longas gaúchos, que desde o ano passado tornou-se competitiva, o eleito foi “Portuñol”, de Thais Fernandes. Ao receber a láurea, a realizadora reivindicou “a criação de novos prêmios para mais categorias artísticas e técnicas”, pois “o Rio Grande do Sul conta com excelentes quadros”.
Confira os vencedores:
Longa brasileiro
. “King Kong en Asunción” (PE) – melhor filme, ator (Andrade Júnior, póstumo), trilha sonora (Shaman Herrera), Júri Popular
. “Aos Pedaços” (RJ) – melhor diretor (Ruy Guerra), fotografia (Pablo Baião), som (Bernardo Uzeda)
. “Um Animal Amarelo” (RJ) – melhor atriz (Isabel Zuaa), roteiro (Felipe Bragança e João Nicolau), direção de arte (Dina Salem Levy), Prêmio da Crítica, menção honrosa ao ator Higor Campagnaro
. “Todos os Mortos” (SP) – melhor atriz coadjuvante (Alaíde Costa), ator coadjuvante (Thomás Aquino), trilha sonora (Salloma Salomão)
. “Me Chama que Eu Vou” (SP) – melhor montagem (Eduardo Gripa)
. “Por que Você Não Chora?” (DF) – menção honrosa para a atriz Elisa Lucinda
Longa latino-americano
. “La Frontera” (Colômbia) – melhor filme, atriz (Dajlin Vega Moreno e Sheila Monterola), roteiro (David David)
. “El Gran Viaje al País Pequeño” (Uruguai) – melhor direção (Mariana Viñoles), Prêmio Especial do Júri, Júri Popular, Prêmio da Crítica
. “Matar a un Muerto” (Paraguai) – melhor ator (Aníbal Ortíz)
. “El Silencio del Cazador” (Argentina) – melhor fotografia (Nicolas Trovato)
Curta-metragem brasileiro
. “O Barco e o Rio” (Amazonas) – melhor filme, direção (Bernardo Ale Abinader), fotografia (Valentina Ricardo), direção de arte (Francisco Lira Caetano), Júri Popular
. “Inabitável” (PE) – melhor atriz (Luciana Souza), roteiro (Matheus Farias e Enock Carvalho), Prêmio Canal Brasil, Prêmio da Crítica
. “Você Tem Olhos Tristes” (SP) – melhor ator (Daniel Veiga), montagem (Ana Júlia Travia)
. “Receita de Caranguejo” (SP) – melhor som (Isadora Torres e Vinícius Martins) e Prêmio especial para a atriz Preta Ferreira
. “Atordoado Eu Permaneço Atento” (RJ) – melhor trilha sonora (Hakaima Sadamitsu)
Longas e curtas gaúchos
. “Portuñol”, de Thais Fernandes – melhor longa
. “Construção”, de Leonardo da Rosa – melhor curta
. “Deserto Estrangeiro” – melhor direção (Davi Preto), melhor atriz (Isabel Zuaa), melhor ator (Mauro Soares)
Prêmio Gramado Film Markert
. Melhor série de TV – “Lupita pelo Mundo” (animação da Content e PetitFabrik)
. Melhor documentário – “Sementes, Mulheres Pretas no Poder”, de Ethel Oliveira e Júlia Mariano
Pingback: 100 MAIORES HISPÂNICOS + FESTIVAL DE GRAMADO: VENCEDORES – Almanakito da Rosário