Noite dos documentários mostra a força do gênero e das mulheres no Festival de Gramado
Por Maria do Rosário Caetano
O cinema documental, o olhar feminino e a música marcaram a tônica da quarta noite da quadragésima-oitava edição do Festival de Cinema de Gramado, em cartaz nas telinhas do Canal Brasil e do Canal Brasil Play, até o próximo sábado, 26.
A cantora e instrumentista Alcione teve sua trajetória registrada em “O Samba é Primo do Jazz”, longa-metragem de Angela Zoé. Um aspirante a cantor de Ceilândia, cidade-satélite de Brasília, Wanderson Vieira, está no centro do curta “Wander Vi”. A cineasta Sinai Sganzerla banhou, em música, o curto ensaio “Extratos”, que revisita o passado dos pais, a atriz Helena Ignez e o diretor Rogério Sganzerla, pela Swinging London e pelo deserto africano do Saara. Até a uruguaia Mariana Viñoles, abriu espaço para que seus personagens, refugiados da Guerra Civil Síria abrigados no país de Pepe Mujica, cantassem. Em especial, a telúrica “Síria, Síria”. Seu filme – “El Gran Viaje al País Pequeño” – foi uma das surpresas da noite.
Todos os títulos da quarta noite gramadiana contam com nomes femininos em seu comando. Além de Ângela Zoé, Mariana Viñoles e Sinai Sganzerla, o curta brasiliense (“Wander Vi) traz a assinatura de Nathalya Brum (em parceria com Augusto Borges).
Quem assistiu, até o fim, ao longa uruguaio “A Grande Viagem ao País Pequeno”, quarto programa da noite, foi regiamente recompensado. O filme começa com cara de projeto ‘ongueiro’, daqueles que nos mostram o sofrimento de quem é desterrado por guerras fratricidas, e acaba sendo acolhido por nações pacíficas e generosas. No caso, refugiados sírios acolhidos pelo pequeno país platino.
A primeira pergunta que nos fazemos ao longo dos 15 minutos iniciais do documentário é: por que a cineasta uruguaia escolheu uma jovem e bela família de refugiados sírios e não os seis supostos “talebãs”, que saíram da prisão de Guantánamo, mantida pelos EUA em território cubano, direto para o Uruguai? Sim, em 2014, o Governo Mujica acolheu seis dos prisioneiros acusados, pelos EUA, de integrarem a Al Qaeda.
Mariana Viñoles, autora de “O Mundo de Carolina”, sobre criança portadora de síndrome de Down, nos comprovará, ainda na primeira parte do filme, que fez escolha tão impactante quanto a dos possíveis “talebãs” acolhidos pelo Governo Mujica.
Depois de trâmites diplomáticos realizados na Embaixada Uruguaia no Líbano e de perguntas corriqueiras sobre a vida em campo de refugiados, chegamos ao solo uruguaio. Já sabemos que os protagonistas, Sama e Ibrahim, na flor dos vinte e poucos anos, são muçulmanos (ela traz sempre um colorido véu a cobrir os cabelos). Têm dois filhos pequenos e ela está grávida de muitos meses. Começam as aulas de espanhol.
Aí o filme sofre atordoante reviravolta e livra-se do espírito ‘ongueiro’. O parto da jovem foi difícil e o casal entende que não foi bem tratado pelo Governo do país adotivo. Para piorar e trazer dramaticidade ao documentário, outros refugiados (60 foram acolhidos) estão putos com a pátria de Mujica. Um deles, um homem do campo, casado com uma senhora de pele morena e pai de duas filhas moças, xinga o Uruguai e os uruguaios: “país de ladrões, de bandidos, de mentirosos”. Diz preferir voltar ao campo de refugiados no Líbano, ao lado da Síria varrida por bombas, que ficar num país, cujas leis o impedem de criar carneiros, cabras ou vacas. Enfim, de trabalhar.
Para piorar o coro dos descontentes, os refugiados se agrupam em praça pública, no coração de Montevidéu, e proferem as mais duras agressões, gravadas por rede de TV. Agressões ao Governo Mujica e a seu povo. Um deles diz que refugiadas sírias foram “assaltadas duas vezes por bandidos uruguaios”, que dois anos de aluguel bancados pelo Governo não significam nada, que foram ludibriados. A eles, foram feitas muitas promessas, mas só encontraram mentiras e mais mentiras.
A cineasta, que faz intervenções em off ao longo da narrativa, busca entender as razões dos desterrados e as agressões a um país que julga representar uma “utopia” de coexistência e pacifismo. Afinal, os refugiados não estão ali por vontade própria. Deixaram seu país, em guerra civil, sua língua, sua cultura e seus parentes a contragosto. Obrigados. Não encontraram as condições esperadas. Querem trabalhar e não conseguem.
Ao longo dos 110 minutos, ouviremos cantos de saudade da terra natal, veremos danças alegres e, especialmente, mudanças nos figurinos das jovens árabes, que aos poucos vão se adaptando ao pequeno e liberal país platino. Sama, aos 24 anos e com os três filhos crescendo, já pensa em retomar os estudos e, quem sabe, trabalhar. Pinta os cabelos de louro e, tudo indica, sonha exibi-los. O máximo que consegue, na frente do marido e em conversa por Skype com os parentes que ficaram na Síria, é jogar, ostensivamente, a farta e dourada mecha sobre o rosto.
O filme, que acaba de estrear em Montevidéu, “com boa aceitação”, segue sua carreira em festivais e foi premiado em Barcelona. O resultado é uma sólida recompensa aos quatro anos que Mariana Viñoles dedicou aos sírios, em especial à família de Sama e Ibrahim. Letreiro final conta que um irmão dele acabou morrendo na Guerra Civil.
O documentário brasileiro que faz a cinebiografia de Alcione é bem-feito, competente, gostoso de assistir, mas sem surpresas. Faz o que fazem 90% dos filmes biográficos brasileiros: evita zonas de sombra. Alcione é vista como ela quer ser vista. Ou seja, tem uma imagem a perpetuar: a de uma diva alegre, maquiadíssima, assertiva, dedicada à música e aos músicos que a acompanham, amiga e parceira das irmãs, devotada aos fãs e defensora juramentada de sua bela e azulejada São Luís do Maranhão. Para valorizar a cultura de seu estado natal, até canta um reggae (embora faça questão de reafirmar-se – ela e a irmã e empresária Solange Nazareth – como “cantora romântica”).
Assuntos como sexualidade, maus momentos na carreira (queda na vendagem de discos, por exemplo) são ignorados. Ou levemente insinuados. O título do filme, também, não expressa, para valer, o que vemos na tela (no caso, na telinha do Canal Brasil).
O longa se chamaria, inicialmente, “Eu Sou a Marrom”. Só que a cantora resolveu usar tal nome no show comemorativo de seus 70 anos e que serviu de ponto de partida ao filme. Angela Zoé achou inadequado pegar carona em tal título. Afinal, daria a impressão de que seu longa seria um registro do show produzido pela TV Mirante, do Maranhão. Por isso, acabou optando por “O Samba é Primo do Jazz”, nome de composição de Nei Lopes, um dos criadores mais gravados pela intérprete.
Imagens de arquivo nos mostraram uma jovem Alcione tocando instrumentos de sopro (o trompete, em especial) e amadurecendo como cantora da noite. Tivera formação com o pai, professor de música e mestre de banda militar, com quem aprendera a dominar o “alfabeto musical”. Uma das irmãs conta que o velho era safado. Teve uma penca de filhos (nove, incluindo Alcione) com a esposa oficial e outros tantos (“um dia contamos e chegamos a 35”) em relações extra-casamento. A esposa, compreensiva e apaixonada, chegou a criar alguns dos 26 rebentos que não nasceram dela.
Alcione foi tentar a sorte no Rio de Janeiro. Cantava e tocava trompete. No começo da década de 1970, Clara Nunes e Beth Carvalho arrebentaram a boca do balão como sambistas. Roberto Menescal, da Philips, viu que era chegada a chora de ter em seu casting uma sambista capaz de vender milhões de discos. Convidou Alcione para gravar elepê cujo repertório fosse composto de sambas. “Mas eu não sou sambista”, ela retrucaria. “Mas será”, ele respondeu. Ela gravou o que Menescal queria, estourou nas paradas de sucesso, tornou-se um dos pilares da Mangueira e ganhou programa em horário nobre da Globo (“Alerta Geral”). Recebia a nata do samba e da MPB (Dorival Caymmi, Cartola, Elton Medeiros, Caetano Veloso).
Findos aqueles anos de ouro (que prosseguiram pela década de 1980), ela retornou ao veio de origem: a música romântica. É essa a vertente que domina o filme. Não “Sonho meu”, de Dona Ivone de Lara, nem os exercícios jazzísticos que ela ensaiara em outros tempos. Quando o filme já está acabando, Alcione fala do jazz, de Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald e outras grandes cantoras norte-americanas. O que diz, porém, não é suficiente para justificar o belo título do filme.
“Wander Vi”, o curta brasiliense de Nathalya Brum e Augusto Borges, chama atenção por seu personagem, o “auditor” de mercadorias em supermercado, cantor, bailarino e ator ceilandense Wanderson Vieira. Negro, morador da periferia e defensor das causas LGBTI (tema que o filme não aborda), o rapaz investe mais do que deve de seu parco salário em equipamentos capazes de registrar, com qualidade, sua voz e, quem sabe, catapultá-lo à fama.
Colega de escola dos jovens cineastas, Wander encontrou neles dois cúmplices. Ao filme, fala empolgado de seus sonhos (ser famoso), mostra suas composições, evoca sucessos em inglês e dança com os colegas do grupo Lenda Urbana. O filme, seus autores e Wander têm um objetivo: alavancar a carreira do artista amador. O curta é simpático, mas superficial.
Com “Extratos”, Sinai Sganzerla realiza um significativo exercício de síntese. Ela contou, no debate on-line do Festival de Gramado, que ao realizar, com recursos oriundos de editais, o belo longa “A Mulher de Luz Própria” pôde digitalizar filmes em 16 milímetros realizados por Rogério “O Bandido da Luz Vermelha” Sganzerla. Aproveitou o que era necessário no longa documental sobre Helena Ignez, e guardou sobras de grande valor afetivo e cinematográfico. Assim nasceu “Extratos”, de enxutos oito minutos, que vem desenvolvendo boa carreira em festivais.
Como faz em todos os seus filmes (vide “O Desmonte do Monte”), Sinai banha suas imagens com muita e contagiante música. A passagem de Helena e Rogério por uma Londres que, no inverno congelante, escurecia às 3 da tarde, traz a voz aliciante de um Gilberto Gil, também em fase de exílio londrino. Expulsos pelo frio, o casal cinematográfico foi curtir o calor no Deserto do Saara. Depois, a Bahia, onde Helena curtiu a segunda gravidez (a da própria Sinai). A cineasta está, pois, no ventre da mãe, filmada em cristalinos banhos de mar soteropolitano.
Ao final dos debates, o moderador Roger Lerina tem pedido aos participantes que falem de seus novos projetos. As novidades foram muitas e das mais estimulantes. Angela Zoé contou que está preparando um longa-metragem sobre Di Cavalcanti, o que abre esperanças de que se possa “libertar” o ensaio glauberiano “Di” (1977), censurado pela Justiça, a pedido de uma herdeira, há quatro décadas.
Luís Abramo, fotógrafo de “O Samba é Primo do Jazz”, avisou que está fazendo um filme sobre o pai, o cineasta baiano Fernando Coni Campos (1933-1988), autor de um dos roteiros mais inventivos do cinema brasileiro (“Ladrões de Cinema”, 1977) e do vencedor do Festival de Brasília, em 1983, “O Mágico e o Delegado”. E mais: a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo vai homenagear Coni, exibindo, num Drive-in, “Ladrões de Cinema”, que Arnaldo Jabor um dia planejou recriar em “Made in Brasil”.
Sinai Sganzerla prepara um novo longa (“Praia da Saudade”) sobre cidade litorânea, Atafona, no litoral fluminense, que vem sendo tomada pelo mar. E os jovens da Ceilândia contaram que escrevem roteiros para novos curtas, que pretendem inscrever em editais. Afinal, realizaram “Wander Vi” sem nenhum tipo de apoio público. Apenas com as próprias economias e com parte dos equipamentos emprestada por Adirley Queirós, que trabalha com a Ceiperiferia em longas-metragens (como “A Cidade é uma Só?” e “Branco Sai, Preto Fica”) e em muitos curtas.