Brasília realiza festival online com sessões às onze da noite
Por Maria do Rosário Caetano
O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais tradicional do país, inicia, nessa terça-feira, 15 de dezembro, sua quinquagésima-terceira edição. E o faz – pela primeira vez em sua história de segundo festival mais antigo das Américas (só perde para Cartagena de Índias) – na telinha linear do Canal Brasil. Distante, portanto, de seu tradicional e caloroso palco, o Cine Brasília.
Historicamente, plateias politizadas e vibrantes lotaram o cinema desenhado por Oscar Niemeyer, dispostas a vaiar ou aplaudir os filmes e discursos de seus realizadores. Houve momentos em que vaiou com tamanha virulência, que fez tremer a atriz Claudia Raia, envolta em traje de gala e sobre um par de tacones lejanos. Estávamos na Era Collor e a jovem atriz, integrante do elenco do remake do longa “Matou a Família e Foi ao Cinema”, havia feito campanha para o presidente eleito. Empossado, Fernando Color de Mello desmontaria a Embrafilme e o Concine (Conselho Nacional de Cinema).
Se não fosse o coronavírus, a plateia do Cine Brasília iria delirar durante a exibição de, pelo menos, dois longas da competição distrital: “Candango: Memórias do Festival”, de Lino Meireles, e “Utopia Distopia”, de Jorge Bodanzky.
O primeiro narra, com empolgação e muitas histórias (algumas picantes), cinco décadas do festival, de sua primeira às últimas edições. O segundo reconstitui, pelo olhar de um ex-aluno, o diretor de fotografia e cineasta Bodanzky, a acidentada história da UnB (Universidade de Brasília), com ênfase na controversa demissão de 200 professores, ocorrida em 1965. O time docente, de composição estelar, esperava grita internacional. Que não veio. O Governo Militar, empossado sob a força das armas, um ano antes, vibrou. E recompôs os quadros de professores a seu modo e sem perder a pose.
Os dois documentários (o de Meireles e o de Bodanzky) serão exibidos na Mostra Brasília, apenas no serviço de streaming dos Canais Globo (permanecerão disponíveis na plataforma, para assinantes, durante todo o festival). Já a competição de longas brasileiros só estará disponível às 23h (em ponto, quem perder, perdeu). Uma comparação: o Festival de Gramado conseguiu parceria nobre com o Canal Brasil e o vantajoso horário da 21h.
A pandemia está impondo seu preço, este ano, aos quase 200 festivais espalhados por todo o território brasileiro. Com Brasília não foi diferente. O festival dos elegantes troféus Candango quase não aconteceu. Por razões políticas e burocráticas, foi parar nas vésperas do Natal (sua noite de premiação acontecerá no dia 21 de dezembro).
Sílvio Tendler, que esse ano assina a direção artística do festival, gosta de lembrar que, na condição de titular da Secretaria de Cultura do DF, comandou, em 1996, uma das mais poderosas edições do evento. A que revelou a força do cinema pernambucano, que renascia com “Baile Perfumado”, a estreia de Tata Amaral (com “Um Céu de Estrelas”) e a potência de “Como Nascem os Anjos”, de Murilo Salles, aplaudido de pé, pelo público, por quase dez minutos.
Dois fatores colocam o sucesso da edição de número 53, agora sob coordenação direta de Tendler, em risco: o horário de sua principal mostra competitiva (onze da noite!) e uma descompensada seleção de competidores.
Pela primeira vez, a disputa pelo Troféu Candango somará cinco documentários e uma única ficção. Desde que nasceu, em 1965, das mãos de equipe liderada pelo carismático Paulo Emilio Salles Gomes, o festival sempre teve suas competições lideradas por obras ficcionais e entregou troféus Candango a diversas categorias artísticas e técnicas. Incluindo atrizes e atores da grandeza de Fernanda Montenegro, Helena Ignez, Leila Diniz, Marcélia Cartaxo, Leonardo Villar, Paulo José, Othon Bastos e José Dumont.
A Revista de CINEMA perguntou ao comando do festival (a Secec – Secretaria de Cultura e Economia Criativa do DF) e a seu diretor artístico, o cineasta Silvio Tendler, por que a principal competição da quinquagésima-terceira edição começará tão tarde e como se equacionará a distribuição de prêmios para atriz e ator (protagonistas e coadjuvantes) e direção de arte, por exemplo, já que o único filme de ficção selecionado – o baiano “Longe do Paraíso”, de Orlando Senna – não terá concorrentes. Não houve respostas.
Outras questões: por que, pela primeira vez em sua história, o Festival de Brasília assemelha-se a uma versão reduzida do Festival É Tudo Verdade, esse sim, criado como vitrine do cinema documentário 100% inédito?
Estará a produção ficcional brasileira sofrendo já as consequências do desmonte das políticas de fomento, empreendido pelo Governo Bolsonaro?
Quantos documentários de longa-metragem e quantas ficções se inscreveram esse ano? Quantos curtas-metragens?
A Secec e Tendler não responderam. Mas, por procedimento burocrático jamais praticado por comandos do festival ao longo dos últimos 55 anos (o evento sofreu solução de continuidade em 1972, 73 e 74), foi fácil acessar o quadro completo de inscritos. Como se o edital de uma competição cinematográfica fosse semelhante à construção de um conjunto habitacional ou um hospital, o presidente do festival, o secretário de Cultura Bartolomeu Rodrigues, por excesso de zelo, tornou públicas as notas classificatórias (e desclassificatórias) recebidas por cada filme, de curta ou longa-metragem, brasileiro ou brasiliense. (Historicamente, se escondeu a lista dos rejeitados, para não causar prejuízos aos filmes, quando de seus lançamentos comerciais).
Os dados não mentem: inscreveram-se 122 longas-metragens (em maior parte, documentários), sendo 22 deles produções brasilienses. Os demais inscritos, até chegar ao total de 698, eram filmes de curta duração. As comissões de seleção escolheram seis longas para a competição brasileira e quatro para a brasiliense. E vinte curtas (12 nacionais e oito candangos).
Havia quantidade razoável de filmes de ficção. Verdade que muitos já exibidos em outros festivais. Até o grande vencedor de Gramado – o ótimo “King Kong en Asunción”, de Camilo Cavalcante – se inscreveu. Decerto, porque o regulamento apresentado pela Secec não deu destaque a cláusula histórica (e pétrea) do Festival de Brasília e de todos os festivais de primeira linha do mundo: jamais exibir, em competição, produção já premiada em outro certame. A filmes premiados cabem exibições hors concours. Festivais importantes existem para ser primeira vitrine.
Registre-se que ficções brasileiras, 100% inéditas, não se sentiram atraídas pelos prêmios em dinheiro ofertados pelo Festival de Brasília. Caso de “Eduardo e Mônica”, de René Sampaio, “Medida Provisória”, de Lázaro Ramos, “Diário de Viagem”, de Paula Kim, “A Paixão Segundo G.H.”, de Luiz Fernando Carvalho, “Sol”, de Lô Politi, “Clube dos Anjos”, de Ângelo Defanti, e “L.O.C.A.”, de Claudia Jouvin. Seus produtores não se animaram a lançar seus filmes em competição às vésperas do Natal. Mesmo assim – e sem estes títulos –, a comissão de seleção tinha alternativas para escolher pelo menos três ficções.
O regulamento do Festival de Brasília exige que o filme inscrito seja inédito no Distrito Federal. E, “preferencialmente inédito’ em todo país. A comissão de seleção de longas brasileiros mostrou-se em sintonia com nosso tempo – valorizou filmes dirigidos por mulheres e realizados em todas as regiões do país (Brasília sempre defendeu o cinema de todos os Brasis). E adotou, pelo menos na aparência, a condição do “100% inédito”, para valorizar o festival mais antigo do país.
Só que escolheu um documentário (o mineiro-pernambucano “Entre Nós Talvez Estejam Multidões”, de Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito) já exibido em dois festivais (Olhar de Cinema, em Curitiba, e o Forum-Doc, de Belo Horizonte). A única ficção selecionada (“Longe do Paraíso”) encerrou, em caráter hors-concours, o Panorama do Cinema, de Salvador, Bahia, em 2019.
Os outros quatro selecionados – os documentários “Por Onde Anda Makunaíma”, de Rodrigo Séllos (RR), “Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem”, de Natara Ney (RJ-PE), e os cariocas “A Luz de Mário Carneiro”, de Betse de Paula, e “Ivan, o Terrível”, de Mário Abbade – são inéditos.
O produtor e cineasta Cavi Borges organizou, para o Canal do Festival, no YouTube, Mostra Paralela On-Line, com 30 filmes de curta e longa-metragem que passaram por cinemas e festivais brasileiros, nos últimos 52 anos. Entre os títulos escolhidos, estão filmes de Rogério Sganzerla, Sérgio Ricardo, Fernando Coni Campos, André Luiz Oliveira, Jairo Ferreira, Sylvio Lanna, Sérgio Peo, Luciana Bezerra, Noilton Nunes, Bruno Sáfadi, Sinai Sganzerla, Felipe Cataldo, entre outros.
No campo da reflexão, o Festival de Brasília promoverá (on-line) seus tradicionais debates dos filmes, mesas-redondas sobre o cinema afro-brasileiro, a produção feminina e a preservação de matrizes audiovisuais (e a preocupante crise da Cinemateca Brasileira).
No campo da formação, promoverá várias oficinas (com David Tygell sobre Trilha Sonora, com Hermes Leal, sobre Roteiro Cinematográfico, com Daniela Broitman, sobre Cinema Documentário, entre outras). Está prevista uma “live” com o cineasta britânico Ken Loach, que conversará, direto de Londres, com Sílvio Tendler.
Mostra Competitiva de Longas Brasileiros (no Canal Brasil linear)
. Terça-feira (dia 15) – 23h00 – “Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem” – O documentário de Natara Ney tem como ponto de partida um pacote de 110 cartas de amor trocadas por dois amantes nos anos 1950. As cartas foram encontradas no Mato Grosso do Sul.
. Quarta-feira (dia 16) – 23h00 – “Longe do Paraíso” – A ficção de Orlando Senna conta a história do pistoleiro Kim (Ícaro Bittencourt) que, jurado de morte após cometer grave erro na organização para a qual trabalha, tem a chance de redimir-se caso execute missão quase impossível. Com Emanuelle Araújo, Heraldo de Deus, Sônia Dias, Bertrand Duarte e Caco Monteiro.
. Quinta-feira (dia 17) – 23h00 – “A Luz de Mário Carneiro” – O documentário de Betse de Paula relembra a trajetória do diretor de fotografia Mário Carneiro, também pintor e cineasta (codirigiu o seminal “Arraial do Cabo” e o longa “Gordos e Magros”).
. Sexta-feira (dia 18) – 23h00 – “Por Onde Anda Makunaíma” – O documentário, produção de Roraima dirigida por Rodrigo Séllos, promove resgate histórico e cultural do célebre personagem da rapsódia de Mário de Andrade.
. Sábado (dia 19) – 23h00 – “Entre Nós Talvez Estejam Multidões” – O documentário da dupla Bemfica e Brito empreende jornada pela Comunidade Eliana Silva, assentamento urbano de Belo Horizonte, a partir da perspectiva dos moradores, justo no momento em que Jair Bolsanaro triunfava nas eleições presidenciais de 2018.
. Domingo (dia 20) – 23h00 – “Ivan, o Terrível” – O documentário de Mário Abbade revisita a trajetória fílmica de Ivan Cardoso e seus “terrir movie” (terror e riso), como “O Segredo da Múmia”, “As Sete Vampiras” e “O Escorpião Escarlate”.
. Segunda-feira (dia 21) – Entrega dos troféus Candango aos vencedores. No Canal do Festival no YouTube (à noite)
Mostra Brasília – Competitiva de Longas Brasilienses (no streaming dos Canais Globo, para assinantes, durante todo o Festival):
. “Candango: Memórias do Festival”, de Lino Meireles (doc)
. “Cadê Edson?”, de Dácia Ibiapina (doc)
. “Utopia Distopia”, de Jorge Bodanzky (doc)
. “O Mergulho na Piscina Vazia”, de Edson Fogaça (doc)
Mostra de Curtas-Metragens Brasileiros: Durante todo o Festival (de 15 a 20 de dezembro) na plataforma dos Canais Globo (para assinantes)
. “A Morte Branca do Feiticeiro Negro”, de Rodrigo Ribeiro – doc, SC)
. “A Tradicional Família Brasileira KAT”, de Rodrigo Sena (doc, RN)
. “Distopia”, de Lilih Curi (ficção, BA)
. “Guardião dos Caminhos”, de Milena Manfredini (experimental, RJ)
. “Inabitável”, de Matheus Faria e Enock Carvalho (ficção, PE)
. “Inabitáveis”, de Anderson Bardot (ficção, ES)
. “Noite de Seresta”, de Muniz Filho e Sávio Fernandes (doc, CE)
. “Ouro para o Bem do Brasil”, de Gregório Baltz (doc, RJ)
. “Pausa para o Café”, de Tamiris Tertuliano (ficção, PR)
. “República”, de Grace Passô (ficção, SP)
. “Quanto Pesa”, de Breno Nina (ficção, MA)
. “Vitória”, de Ricardo Alves Jr (ficção, MG)
Mostra Brasília (Competição de Curtas-Metragens Brasilienses: Durante todo o Festival (de 15 a 20 de dezembro) na plataforma dos Canais Globo (para assinantes):
. “Algoritmo”, de Thiago Fostieri (ficção)
. “Questão de Bom Senso”, de Petérson Paim (doc)
. “Do Outro Lado”, de David Murad (ficção)
. “Rosas do Asfalto”, de Daiane Cortes (doc)
. “Eric”, de Letícia Castanheira (doc)
. “Brasília 60 + 60: Do Sonho ao Futuro”, de Raquel Piantino (animação)
. “Delfini Brasília, Olhar Operário”, de Maria do Socorro Madeira (doc)
. “Curumins”, de Pablo Ravi (doc)
53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro
Data: 15 a 20 de dezembro, on-line
Mostra competitiva de longas-metragens será exibida na TV linear do Canal Brasil, sempre às 23h00
A Mostra de Curtas-Metragens Brasileiros e a Mostra de Brasília (longas e curtas) serão exibidas nos Canais Globo, plataforma de streaming (estes títulos ficarão disponíveis na plataforma Canais Globo, para assinantes, durante todo o festival)