Acqua Movie
Por Maria do Rosário Caetano
O recifense Lírio Ferreira, de 56 anos, é o mais ardente defensor das ideias conceituais que embasaram o Árido Movie, força renovadora do cinema pernambucano nos anos 1990. Afinal, é dele o filme-símbolo do período, “Baile Perfumado”, que dirigiu com Paulo Caldas. A dupla inseriu alta dosagem de invenção no nordestern, nossos western movies cangaceiros.
Nessa quinta-feira, 10 de junho, Lírio Ferreira lança seu sexto longa-metragem, “Acqua Movie”, nas salas de cinema. O filme, protagonizado por Alessandra Negrini e pelo pré-adolescente Antonio Haddad, tem roteiro do próprio Lírio, em parceria com dois nomes da linha de frente do Árido Movie – Paulo Caldas e Marcelo Gomes, ambos pernambucanos e diretores de filmes de alta potência criativa.
Quinze anos atrás, Lírio usou, para nomear seu segundo longa (“Árido Movie”, 2005), o movimento artístico que teve em Amin Stepple (já falecido) seu articulador intelectual, e que contou com a colaboração do fotógrafo Feijão (Paulo Jacinto, morto precocemente), com os grupos do Mangue Beat (Chico Science, Mundo Livre S.A., Mestre Ambrósio) nas sonoridades trilheiras e com os cineastas Paulo Caldas, Marcelo Gomes, Adelina Pontual, Cláudio Assis (e Lírio, claro), seus praticantes-oficiantes. Mas ninguém é mais devoto ao Árido Movie que o diretor de “Acqua Movie”.
Lírio faz questão de abordar temas caros aos princípios articulados por Amin Stepple e pelo inovador coletivo artístico pernambucano: mostrar um Nordeste moderno e, ao mesmo tempo, arcaico; terras secas, mas também molhadas (caso das áreas férteis banhadas pelo Rio São Francisco); o sertão e as imensas metrópoles nordestinas, sendo Recife (junto com Salvador e Fortaleza) a maior e mais complexa delas.
No “Baile Perfumado”, um cangaceiro, Lampião, sua Maria Bonita e bando eram vistos por um cineasta, o aventureiro Benjamin Abrahão. No “Árido Movie”, um filme de estrada, jovens do centro-sul iam buscar maconha da boa nas entranhas do poderoso estado nordestino, enquanto um repórter de TV regressava às suas origens para enterrar o pai e acabava se envolvendo com uma cineasta ocupada com a realização de um filme sobre a água (faltante ou abundante) na região.
Em “Ácqua Movie”, há mais uma cineasta na linha de frente da narrativa. Ela é Duda (Alessandra Negrini), mãe de Cícero (Antonio Haddad), de 12 anos, que vivia mais com o pai que com ela. Afinal, documentarista engajada na documentação e defesa de povos indígenas e suas terras, Duda tinha pouco tempo para estar com o filho pré-adolescente.
A morte prematura do pai, Jonas (Guilherme Weber, repórter de TV), estimula Cícero a empreender, com a mãe ao volante, viagem até Rocha (ou melhor, Nova Rocha), terra paterna. Ele quer espalhar as cinzas do pai no lugar onde este nascera.
Com a transposição das águas do São Francisco, Rocha foi inundada. Nasceu, então, uma Nova Rocha, comandada pelo prefeito Múcio (Augusto Madeira), um dos integrantes da família paterna de Cícero. Praticante de ideias retrógradas, Múcio não quer saber de direitos indígenas e age como um “novo coronel”, às vezes sedutor, pois quer atrair o menino para o campo de suas ideias. Ideias em tudo contrárias às de Duda, de corte progressista.
Para reafirmar seus vínculos com o “Árido Movie”, Lírio Ferreira dá ao amigo Cláudio Assis um pequeno, mas significativo, papel em “Acqua Movie”. Marcélia Cartaxo, grande atriz paraibana, tem participação especial (e divertida). A fotografia, de Gustavo Hadba, é de imensa beleza. Aliás, todos os filmes de Lírio, sozinho ou com parceiros, registram a beleza convulsiva da paisagem urbana ou sertaneja do Nordeste. Apaixonado por Orson Welles (a quem homenageou, com ajuda de Amin Stepple, em “That’s a Lero-Lero”) e por Glauber Rocha, o recifense faz questão de fugir do miserabilismo, do sofrimento de gente esquecida pelos poderes públicos. Seu Nordeste é contemporâneo e está em sintonia fina com o mundo. Antenado.
Ver (ou rever) “Acqua Movie” é fruir de ideias e imagens fertilizadoras, da lavra de um cineasta que gosta de planos elaborados, ousados. O filme pode frustrar aos que se colocarem à espera de uma profunda e explícita reflexão sobre as contradições do Nordeste (e do Brasil) contemporâneo. Tal reflexão não está na epiderme da narrativa. Está, isso sim, em suas camadas “escondidas”. O próprio Lírio, que encontrou o mote de “Acqua Movie” em viagem por seu estado natal (de Recife a Triunfo), lembra que, dessa vez, construiu uma história de amor materno e filial. Uma mãe ausente que tenta aproximar-se do filho, abalado pela perda recente do pai.
Sobre a transposição das águas do São Francisco, o cineasta não receita vereditos definitivos. Admite, na voz de um personagem, que o assunto é “cabuloso”. Zé Caboclo, em interpretação impecável de Aury Porto, vê o represamento (e desvio) das águas como uma agressão à natureza. E pondera, em conversa com Duda, “rio que corre é água viva, represa é água morta”. A documentarista pontua que há pessoas que necessitam daquela água desviada de seu curso natural.
Lírio Ferreira deixa a questão em aberto. Afinal, seu cinema não existe para dizer o que é certo ou errado, mas sim para semear ideias, sensações e imagens de um país marcado por profundas contradições. Um país que tem muito de moderno, mas teima em ser arcaico, retrógrado e injusto na distribuição das riquezas nele produzidas.
No campo da metalinguagem nada exibicionista, vale registrar: além de dar a Cláudio Assis o papel de governador de Pernambuco, promovendo o amigo desbocado a posto de mando, Lírio presta homenagem a outro espírito inquieto – o baiano Edgard Navarro. O diretor de “SuperOutro” interpreta um quase-eremita, um homem que conhece os caminhos, e – de quebra – homenageia o “cinema peba”. Peba é um tipo de tatu. É também a sigla de Pernambuco-Bahia, territórios de dois dos mais férteis cinemas do país. E se fôra pouco, Lírio presta homenagem também ao cinema bucólico (pastoril) de Humberto Mauro. Em momento decisivo de “Acqua Movie”, é sob frondosa árvore que mãe e filho buscam o entendimento. Primeiro, nervosamente, de pé. Depois, sentados em grossa raiz, sob a intensa folhagem de árvore centenária. Foi sob generoso e semelhante arbusto, que o diretor de “Ganga Bruta” posou para a mais famosa de suas imagens. E, constatemos, o nome da cidade pernambucana é Rocha, como Glauber Rocha, ele mesmo um sertanejo-citadino de Vitória da Conquista.
Lírio é um bicho de cinema. Não que tais homenagens sejam necessárias à fruição de sua complexa viagem-mergulho nas contradições do Brasil. Mas lhe dão frescor (e, no caso de Cláudio Assis, humor). E, por fim, registre-se: concebido e realizado durante os anos Dilma e concluído em plena era Temer, o filme ganhou impressionante atualidade nessa trágica era Bolsonaro. A questão indígena, de imensa importância na narrativa, está na ordem do dia.
Acqua Movie
Brasil, 105 minutos, 2021
Direção: Lírio Ferreira
Roteiro: Lírio Ferreira, Marcelo Gomes e Paulo Caldas
Fotografia: Gustavo Hadba
Trilha sonora: Antônio Pinto
Elenco: Alessandra Negrini, Antonio Haddad, Aury Porto, Augusto Madeira, Marcélia Cartaxo, Zezita Mattos, Edgard Navarro, Guilherme Webber, Sérgio Mamberti, Cristiane Triceri e Cláudio Assis
FILMOGRAFIA
Lírio Ferreira (Recife, 01/03/1965)
1996 – “Baile Perfumado”, com Paulo Caldas
2005 – “Árido Movie”
2007 – “Cartola, Música para os Olhos”, com Hilton Lacerda
2009 – “O Homem que Engarrafava Nuvens”
2014 – “Sange Azul”
2021 – “Acqua Movie”
Curtas, séries e telefilmes:
1994 – “O Crime da Imagem” (curta)
1995 – “That’s a Lero-Lero”, com Amin Stepple (curta)
2000 – “Assombrações do Recife Velho” (curta)
2011 – “A Espiritualidade e a Sinuca” (telefilme)
2016 – “Fim do Mundo” (série para TV)