Pixinguinha – Um Homem Carinhoso
Por Maria do Rosário Caetano
Como transformar a trajetória de um homem que era só bondade, capaz de – ao ser assaltado – levar, à própria residência, o ladrão para beber uma branquinha e comer frango assado?
Esse foi o desafio abraçado pelo produtor Carlos Moletta, da Ipê Filmes, desde que, dez anos atrás, impôs-se a apaixonante tarefa de cinebiografar Alfredo da Rocha Vianna Filho, o Pizindin, o Bexiguinha, o genial Pixinguinha (1897-1973).
O negro nascido no subúrbio do Rio de Janeiro, então capital brasileira, tornar-se-ia uma das maiores e mais refinadas expressões de nossa música popular. Flautista, depois saxofonista, maestro, arranjador e compositor, ele se apresentaria na Europa e nas Américas e nos mais importantes palcos brasileiros. Faria arranjos para Carmen Miranda e até para o hino extra-oficial da gente carioca (“Cidade Maravilhosa”, de André Filho). Pixinguinha legaria ao nosso cancioneiro popular sucessos do tamanho de “Carinhoso”, “Rosa”, “Lamento”, “Urubu Malandro”, “Gavião Calçudo”, “Um a Zero”, “Yaô”, “Benguelê” e “Já te Digo”.
Filho de família bem-assentada, pai músico e funcionário dos Correios, Pixinguinha (apelido resultante da soma do ‘Pizindin’ da avó africana com o ‘Bexiguinha’, por causa das marcas no rosto) cresceria em casa de oito quartos e quatro salas (a Pensão Vianna), cercado de mais de uma dezena de irmãos. Alguns deles músicos. Aprenderia a tocar na infância. Lá pelos 12 anos, já tocava flauta como gente grande.
O flautista estudaria música na instituição que precedeu a Universidade Federal do Rio de Janeiro e encontraria em Betí (Albertina Nunes Pereira), estrela da Companhia Negra de Revista, a companheira de toda uma vida. Conheceria o sucesso em proporções consagradoras. Desfrutaria de sua casa suburbana com conforto e quintal florido. Até na hora de morrer, o fez num banco da Igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, enquanto esperava um batizado. Era 17 de fevereiro, em pleno carnaval.
Como transformar tanta bonança em um filme? Onde encontrar temas conflituosos? Será que não havia ‘zonas de sombra’ na vida do “menino bom na sua língua natal”, como cantara a Portela? O samba-enredo da azul-e-branco (“O Mundo Melhor de Pixinguinha”, 1974) lembraria, ainda, que Pizindim “era um poema de ternura e paz”.
As pesquisas que respaldaram o roteiro de “Pixinguinha – Um Homem Carinhoso” – estreia dessa quinta-feira, 11 de novembro, em cinemas de todo o país – revelaram alguns (nada excepcionais) contratempos na vida do artista. Primeiro, ele, que queria ter “uns oito filhos”, pois crescera em família numerosa, se descobriria estéril. Mas o grande músico (interpretado na fase adulta por Seu Jorge) não se amofinou: um dia entrou em casa com um bebê no colo e o entregou à esposa Betí (Taís Araújo).
“Mas ele é branco!”, retrucou a ex-estrela black do Teatro de Revista. Ao que “o poema de ternura e paz” replicou: “não tem problema, a família da Januária (Ana Paula Bouzas) já está muito grande e ela nos deu esse menino, que vai se chamar Alfredo da Rocha Vianna Neto, mesmo nome do avô e do pai”.
Pixinguinha tinha mais uma ‘zona de sombra’: a bebida. Bebeu muito em bares, com amigos, músicos ou não. Bebia em casa, mas Betí tanto pediu, que ele prometeu só beber da porta para fora. Pesadelo recorrente, na maturidade (“beber demais e cair morto na sarjeta, como Ernesto Nazareth”), não se materializaria. Jamais.
Como aprendera com a mãe, Pixinguinha sabia que o certo era estar sempre “bem-vestido, apresentável”. Tanto ele, quanto o pai (Milton Gonçalves), as irmãs e os irmãos, incluindo o violonista e compositor Otávio Vianna, o China (Preto da Serrinha, no filme). Dona Raimunda (Lilian Waleska) era tão ciosa do asseio familiar, que estimulava Pizindin a levar três camisas aos teatros e casas de shows, para trocar, nos intervalos, quando estivessem molhadas de suor. Tocar instrumento de sopro, seja flauta ou saxofone, horas a fio, nunca foi fácil.
Carlos Moletta, alma de “O Homem Carinhoso”, convidou Denise Saraceni, experiente diretora de telenovelas e séries, para assinar a cinebiografia de Pixinguinha. Ela contou com a ajuda de Allan Fiterman, quando necessário, pois as filmagens foram, por razões de orçamento, muito espaçadas. O que vemos na tela está longe de ser um filme autoral. É, e não esconde isso, um filme de produtor. Uma narrativa de fácil compreensão, que reúne muitos personagens e abarca o registro da trajetória de Pizindin dos 14 anos (quando fez sua estreia num palco) até sua morte, aos 75, num templo católico. São 61 anos de vida e música (40 composições, no total, selecionadas por Carlos Moletta). Clássicos de nosso cancioneiro criados ou arranjados por um de nossos maiores chorões.
A estreia de Pixinguinha no mundo artístico se daria quando, ainda de calças curtas (interpretado por Luan Bonitinho), integraria, com adultos, grupo de acompanhamento “ao vivo” de filmes mudos. Na tela do longa-metragem de Moletta-Saraceni-Fiterman, veremos imagens de “Braza Adormecida”, de Humberto Mauro, pioneiro do cinema brasileiro.
Aos 24 anos, Pixinguinha (na pele de seu segundo intérprete, Danilo Ferreira) – depois de carreira nos grupos Caxangá, meio acaipirado, e nos descolados Oito Batutas – chega a Paris. Com ele, Os Batutas. Ou “les batutás”, como dirá a fogosa Gabi (Ágatha Moreira), dançarina com quem o músico terá um affair. Tudo sob o patrocínio do milionário Arnaldo Guinle (Klebber Toledo). Pizindin se encanta com o saxofone. Ganha um de presente (do Senhor Guinle, claro!).
Os Oito Batutas se apresentavam, também, no foyer do Cine Palais, na Avenida Rio Branco carioca. Uma granfina ou outra, ao passar por eles, lamentava a presença, ali, de negros interpretando “música de rua”. Mas o racismo estrutural brasileiro não impedirá Pixinguinha de ser artista dos mais bem-sucedidos de nossa história. Quando Alfredo da Rocha Vianna Filho morreu, de repente, num banco da Igreja de Nossa Senhora da Paz, a Banda de Ipanema, tão logo soube da triste notícia, estacionou seus músicos na porta do templo e tocou “Carinhoso”. Prática que viria a tornar-se sagrada, a cada novo Carnaval.
A imagem fotográfica de Pixinguinha, que ficou guardada nas retinas dos amantes de seus maxixes, valsas, sambas e choros, traz a assinatura de Walter Firmo. O grande fotógrafo realizou sereno e poético retrato do autor de “Rosa”, sentado numa cadeira de balanço, de pijama, com seu saxofone no colo. Como cenário, recanto privilegiado: seu quintal suburbano, onde viveu ao lado de sua amada Betí.
O filme imprime essa imagem (a de Firmo) com seu protagonista, interpretado (em mais de dois terços da narrativa) por Seu Jorge. A direção de fotografia, de Jean Benoit, prefere tons mais claros, luminosos. O filme parece não querer complicações, nem virtuosismos. Só louvar seu genial personagem.
Há boa química entre o casal Taís “Betí” Araújo e Seu “Pixinguinha” Jorge. Nem o envelhecimento dos atores (ambos aparentam bem menos idade do que têm – ela, 42 anos, ele 51) compromete. O filme, que conta sua história pelas vozes de seus protagonistas (o casal da Rocha Vianna) não demonstra grandes pretensões estéticas. Quer apenas louvar a trajetória de um grande artista brasileiro, apresentar seus momentos musicais mais luminosos e dialogar com o público.
Há que se destacar-se pelo menos um momento de grande beleza, no qual vemos a vedete Betí, pendurada em um trapézio, a balançar (de cabeça para baixo) e encontrar o rosto do amado Pizindim.
Na vida real, quando a grana se mostrava curta na casa suburbana, Betí reclamava com o marido. Pixinguinha pedia que a mulher não se apoquentasse, pois “Orlando Silva vai gravar ‘Carinhoso’”. Ouvimos então a suave melodia de Pizindin e os versos aliciantes de João de Barro na voz do poderoso cantor das multidões. Sucesso estrondoso (ainda hoje, uma das cinco canções – um choro – mais amadas e cantadas do país).
A vida do artista não será sempre um chão de estrelas. Haverá momentos em que faltará trabalho e, por isso, pagar as infindáveis prestações da casa devidas ao banco resultará difícil. Mas, graças ao Programa (radiofônico) do Almirante (Tuca Andrada) e a novas gerações de chorões, apaixonados pelo grande melodista, Pixinguinha se reeguerá. Admiradores da grandeza de Vinícius de Moraes, Tom Jobim e Hermínio Bello de Carvalho serão lembrados pelo filme.
Em 1972, para desespero de Betí, Pixinguinha sofrerá um primeiro enfarte. A esposa exigirá que ele pare de beber. Mas sua cadeira cativa no Bar do Gouveia continuará esperando por ele, que logo a reocupará. Betí explicitava as razões de sua cruzada contra a bebida. Afinal, lembrará ao marido: “você ganhou muito dinheiro (com ‘Carinhoso’ e ‘Rosa’), mas quem ficou rico foi o dono do bar”.
Havia momentos complicados na vida do casal. Certo dia, o marido chegara em casa sem o automóvel da família. “Cadê nosso carro”? A resposta seria objetiva: “Vendi”. “Cadê o dinheiro”? “Usei para pagar prestações da casa, saldar outras dívidas e pagar a ‘pendura’ no bar”. Betí, que abandonara a vida de vedete e criava o filho com todo carinho, se desesperava.
“Carinhoso” e “Rosa” foram, realmente, os maiores sucessos de Pixinguinha. Em “Um Homem Carinhoso”, quem canta magistralmente “Rosa” é Caetano Veloso. Sua voz enche de emoção os nossos sentidos. A imensa letra dessa valsa, cuja melodia Pizindin compusera em 1917, ganharia a assinatura de um amigo, o mecânico Otávio de Souza. Marisa Monte também registrou belíssima interpretação da rebuscada (e com um quê de parnasiana) letra otaviana.
A voz de Clementina de Jesus se fará ouvir no velório do Pixinguinha de celulóide. Ela cantará “Benguelê”. Há que se registrar que a cinebiografia de Pizindim conta com algumas inserções documentais. Imagens em movimento do artista nos ajudarão a relembrar o quanto ele imprimiu seu rosto de bondade em nossas memórias. Produtor e diretores não mostraram temor ao colocar o artista verdadeiro em contraste com seu intérprete. Pixinguinha era rechonchudo e de rosto marcado pela bexiga (varíola). Seu Jorge tem corpo longilínio e rosto sem marcas. Nada disso impede a fruição do filme.
As inserções documentais são dignas de todos os elogios. Em especial as que enriquecem dois momentos do filme. Primeiro, aquele que traz imagens de Pixinguinha e Sua Velha Guarda (Donga, João da Bahiana, Almirante, Alfredinho do Flautim, Jacó Palmieri e Benedito Lacerda), realizadas por Thomaz Farkas, em 1954, quando de show comemorativo do Quatro Centenário de São Paulo (décadas depois, resgatadas no curta-metragem “Pixinguinha e a Velha Guarda do Samba”, 2006, que o próprio Farkas realizaria com Ricardo Dias).
Segundo momento: o filme-homenagem ao grande compositor premia o público com trechos de “Saravah”, valiosíssimo documentário que o ator e cineasta francês Pierre Barouh (1934-2016) realizou no Brasil, tendo o violonista e compositor Baden Powell (1937-2000) como mestre de cerimônia. As imagens de Baden com Pixinguinha e a Velha Guarda são de tirar o fôlego.
Pixinguinha – Um Homem Carinhoso
Brasil, 101 minutos, 2021
Direção: Denise Saraceni e Allan Fiterman
Roteiro: Manuela Dias
Um projeto de Carlos Moletta
Fotografia: Jean Benoit
Direção de Arte: Marcos Flaksman
Direção musical: Cristovão Bastos
Figurinos: Luciana Buarque
Montagem: Mair Tavares
Produtoras: Ipê Artes, Globo Filmes, Globoplay, Telecine, Canal Brasil e Riofilme
Elenco: Seu Jorge, Taís Araújo, Milton Gonçalves, Klebber Toledo, Agatha Moreira, Ana Paula Bouzas, Lilian Waleska, Tuca Andrada, Xando Graça, Jorge Aragão, Tadeu Mello, Milton Guedes, Flávio Pardal, Luan Bonitinho (Pixinguinha adolescente), Danilo Ferreira (Pixinguinha jovem)
Distribuição: Downtown