“Eduardo e Mônica” chega ao circuito em busca de uma 2ª “Retomada” do cinema brasileiro
Por Maria do Rosário Caetano
“Eduardo e Mônica”, segundo longa solo de René Sampaio, chega aos cinemas nessa quinta-feira, 20 de janeiro, com missão quase impossível: repetir feito de “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil”, de Carla Camurati. Ou seja, mobilizar mais de um milhão de espectadores, num momento em que o market share da produção nacional – por causa da pandemia e da falta de políticas públicas do governo Bolsonaro – cai a índices alarmantes (de média de 15% nos últimos anos para menos de 3%).
Quem expõe este ambicioso propósito é Bianca De Felippes, produtora de “Eduardo e Mônica” e, também, de “Carlota Joaquina”. Em conversa com a imprensa paulista, no Cine Petra Belas Artes, ao lado de René Sampaio e dos atores Alice Braga (Mônica), Gabriel Leone (Eduardo) e Bruna Spínola (Karina), Bianca explicitou sua crença no potencial do filme, definido como “uma história de amor, solar, com humor e muita música, baseada em canção bastante conhecida de Renato Russo”. Enfim, um bálsamo num tempo de pandemia, de governo arredio à cultura e à vacinação.
“Eduardo e Mônica” tem potencial para dar resposta positiva a tamanho desafio? Conseguirá repetir o milagre de “Carlota Joaquina”, que vendeu quase 1,5 milhão de ingressos na hecatombe provocada pelo desmonte da era Collor?
O próprio René, com “Faroeste Caboclo”, drama escorado em amor interracial, na violência e no tráfico de drogas, conseguiu bilheteria invejável (1,4 milhão de espectadores). Mas os tempos eram bem outros.
A recriação cinematográfica da história de um boyzinho, apreciador de novelas, que jogava futebol de botão com o avô (militar), e de moça mais velha, que gostava de Godard, de meditação e estudava Medicina na UnB, atingiu, há que se registrar, resultado surpreendente.
Vinte e dois anos atrás, quem participou do Festival de Brasília e assistiu ao curta “Sinistro”, do jovem René, percebeu que nascia ali um cultor da narrativa clássica, bem construída, vertiginosa, eletrizante. Um artesão de talento. O filme somou dezenas dos principais prêmios em muitos dos mais importantes festivais do país. Bianca De Felippes, na condição de jurada do pequeno Festival de Paraty, percebeu que o rapaz, um dos concorrentes, era um talento talhado para o cinema narrativo de qualidade. Aproximaram-se e, mais tarde, ela produziria “Faroeste Caboclo”.
Sete anos atrás, os dois abraçaram o projeto “Eduardo e Mônica”. As filmagens aconteceriam em meados de 2018. Concluída, a saga dos dois namorados brasilienses iniciaria sua trajetória por festivais abertos a filmes voltados à busca de diálogo com o público. O plano era lançá-lo em janeiro de 2020. Não deu certo. 2021, com a pandemia destroçando o circuito exibidor, menos ainda. Marcou-se, então, para 6 de janeiro de 2022. Mas aí o “Homem Aranha” ocupou 80% do circuito exibidor. O jeito foi adiar por 15 dias. O filme estará, finalmente, disponível a partir dessa quinta-feira, em 500 salas. A sorte está, pois, lançada.
E, afinal, o que faz de “Eduardo e Mônica” um bom filme? Primeiro, a consistência de seu roteiro, bem contextualizado, nuançado, contruído com bons diálogos. Segundo, sua segura mise-en-scène, apoiada na ótima fotografia de Gustavo Hadba. Terceiro, a trilha sonora, que consumiu (em direitos autorais), boa parte do orçamento do filme. Em quarto, a qualidade do elenco, no qual brilham os protagonistas, Alice Braga, de 38 anos, com experiência no Brasil, desde “Cidade de Deus”, e nos EUA, e o jovem e talentoso Gabriel Leone, de 28. E, em papéis coadjuvantes, craques como Otávio Augusto, na pele de militar retrógrado, linha dura, e Juliana Carneiro da Cunha (a médica Lara, mãe de Mônica). E os jovens Victor Lamoglia (Inácio, amigo de Eduardo, personagem que tem muito do próprio Renato Russo) e Bruna Spínola (Karina, irmã de Mônica). Em participação especial, Fabrício Boliveira (que protagonizara “Faroeste Caboclo”).
Claro que a canção de Renato Russo, embora construída com letra quilométrica, jamais resultaria em filme de 100 minutos, se as lacunas entre seus 68 versos não fossem preenchidas pela imaginação de seus artífices cinematográficos.
René Sampaio, que é roteirista e conhece Brasília como a palma da mão –, pois lá nasceu (em 1974), cresceu, frequentou a UnB e curtiu todo o frenesi do Aborto Elétrico, Legião Urbana, Plebe Rude, Capital Inicial e bandas da mesma geração – queria que Domingos Oliveira (1936-2019), diretor da mais famosa das comédias românticas do país (“Todas as Mulheres do Mundo”, 1966), transformasse a canção em roteiro cinematográfico. Ele e Bianca De Felippes chegaram a procurar o cineasta, mas ele já estava com a saúde abalada.
“Se Domingos não podia abraçar nosso roteiro” – contou René –, “quem poderia fazê-lo?” Ele mesmo responde e justifica: “o Domingos Oliveira da nossa geração, que se chama Matheus Souza”. O cineasta-roteirista, discípulo confesso do diretor de “Amores” e “Carreiras”, assina sozinho a empreitada “Eduardo e Mônica”.
René Sampaio confessa que deu palpites na trama. Os atores e alguns colaboradores também. “Demos nossa contribuição, mas quem construiu a história foi o Matheus. Por isso, fiz questão absoluta de não pedir coautoria. Sei trabalhar em equipe e reconhecer o trabalho dos colegas. E nós que fazemos cinema sabemos que todo roteiro, quando chega ao set de filmagem, à interpretação do ator, sofre alterações, o que é ótimo e saudável. Um filme é fruto de um processo colaborativo”.
Renato Russo estabeleceu, em sua canção, dicotomia entre o adolescente Eduardo, estudante colegial, que se prepara para fazer vestibular, curte telenovelas e jogo de botão, enquanto Mônica, formanda no curso de Medicina, se expressa em alemão e aprecia Rimbaud, Caetano, Mutantes, Van Gogh e Bauhaus.
René Sampaio confessou-se, na conversa com os jornalistas, um “noveleiro”, assim como o Eduardo do legionário Russo. “Eu não perdia uma novela da Malu Mader, ela era meu crush”. Olha para a esposa, a atriz Bruna Spínola, e pede que ela conte o nome da filhinha de ambos. Bruna, que também atua em telenovelas, sorri, compreensiva, e revela: “Maria Luísa, Malu”. Na parede do quarto de Eduardo (Gabriel Leone) há uma foto do Fluminense, time pelo qual torce o ator, campeão brasileiro em 1984 (a história se passa em meados da década de 1980) e outra, claro, de Malu Mader.
E que os fãs de Leone saibam: ele quase ficou de fora do filme. Ele mesmo contou na conversa com os jornalistas, no Belas Artes. “Quando fiquei sabendo do projeto, fiquei fissurado, queria, porque queria fazer o Eduardo. Me inscrevi para o teste, mas fui reprovado. Voltei para casa arrasado”. Só que o ator não se deu por vencido. Pediu para fazer novo teste. René Sampaio viu naquele gesto sinal de dedicação rara e aceitou testá-lo novamente. “Aí ele brilhou no segundo teste, arrasou, não estava nervoso como da primeira vez. Ganhamos todos”.
“Eduardo e Mõnica” é um filme que opta pela leveza e pelo romantismo, mas não foge de assuntos sérios – os desafios profissionais, os conflitos familiares, a descoberta da sexualidade (e da homoafetividade), a intolerância política, muito bem representada pelo avô fardado de Eduardo. Numa de suas melhores sequências, o apaixonado Eduardo leva a namorada para a ceia de Natal na casa onde vive com o avô. O diálogo travado entre a jovem e militar foi escrito anos atrás, bem antes da eleição de Jair Bolsonaro. Mas parece escrito hoje. A narrativa ganhou exasperante atualidade.
Embora chegue a concluir o curso de Medicina, Mônica ama as Artes Plásticas, paixão herdada do pai. Por isso, a trama romântica ganhará desfecho – que não se revelará aqui – focado em peixe vermelho inserido no universo das instalações visuais.
Duas cidades – Brasília e Rio de Janeiro – e um paraíso ecológico (Chapada dos Veadeiros) ambientaram as filmagens. René Sampaio e sua trupe foram fieis ao espírito presente nos versos que registram os bons (e os difíceis) momentos vividos pelo casal de namorados criado pelo trovador legionário. Aqueles que passaram aperto quando os gêmeos nasceram e que não puderam tirar férias, porque um dos filhos ficou de recuperação (na escola).
Quem sabe o novo filme de Bianca De Felippes consegue repetir o milagre de “Carlota Joaquina”?
Eduardo e Mônica
Brasil, 100 minutos, 2018-2022
Direção: René Sampaio
Roteiro: Matheus Souza, com colaboração de Claudia Souto, Jessica Candal e Michele Frantz
Fotografia: Gustavo Hadba
Produção: Bianca de Felippes
Produtoras: Gávea Filmes, Barry Company e Fogo Cerrado Filmes
Coprodução: Globo Filmes
Trilha sonora: Lucas Marcier, Fabiano Krieger e Pedro Guedes
Elenco: Alice Braga, Gabriel Leone, Juliana Carneiro da Cunha, Otávio Augusto, Victor Lamoglia, Bruna Spínola Fabrício Boliveira
Distribuição: Downtown e Paris Filmes
FILMOGRAFIA
René Sampaio (Brasília, 26 de novembro de 1974)
2021 – “Eduardo e Mônica” (longa-metragem)
2016 – “Amor ao Quadrado” (telefilme)
2014 – “Dupla Identidade, o Filme” (parceria com Mauro Mendonça Filho)
2013 – “Faroeste Caboclo” (longa)
2000 – “Sinistro” (melhor curta do Festival de Brasília)
2000 – “Contatos” (curta)
1997 – “Antes do Fim” (curta)