Geraldo Sarno, diretor de “Viramundo” e “Delmiro Gouveia” morre com o “Sertão Dentro de Mim”
Por Maria do Rosário Caetano
O baiano de Poções, Geraldo Sarno, diretor de “Viramundo”, “Coronel Delmiro Gouveia” e “Iaô” , morreu nessa quarta-feira, 23 de fevereiro, no Hospital Copa d’Or, no Rio de Janeiro, onde estava internado há um mês, vítima de complicações oriundas da Covid-19.
Ele se sentia um eterno sertanejo. Lembrou, em título de um de seus inúmeros curtas-metragens, verdadeiro testamento: “Eu Carrego o Sertão Dentro de Mim”. Tanto era assim, que escolheu para ambientar sua obra derradeira – o nordestern metafísico “Sertânia” – o sertão nordestino.
O longa-metragem, lançado há dois anos, causou espanto. Como um homem octogenário podia realizar filme tão ousado, tão inquieto? Como podia cercar-se de talentos tão jovens, correr tantos riscos?
Sarno, que dirigira tantos documentários e poucas ficções (o infanto-juvenil “Pica-Pau Amarelo”, o épico “Delmiro Gouveia” e os híbridos “Tudo Isso me Parece um Sonho” e “O Último Romance de Balzac”) escolhera uma de suas paixões – o cangaço – para despedir-se do ofício (o cinema) que o animou por seis décadas. Foi uma despedida em grande estilo, consagrada pela crítica, premiada em festivais, festejada por jovens e veteranos nas redes sociais. Algo muito raro.
Em conversa com a Revista de CINEMA, anos atrás, Geraldo Sarno lembrou: “nasci no sertão da Bahia. Fui para Salvador, nos anos 1950, fazer o colegial e a universidade. Isso significava encontrar-se imerso em poderosa e atraente cultura afro, que, por outro lado, também desestimulava no jovem a formação de uma identidade regional ou local”. Em sua rememoração, ele lembraria que “mais tarde o Governo da Bahia adotaria sistema administrativo de divisão do Estado em ‘regiões culturais’ que, com a criação de universidades regionais (federais e estaduais), essa questão (a das identidades regionais e locais) não se colocava mais exatamente da mesma maneira”. Mesmo assim, “quando viajamos pelo sertão, temos a impressão que a referência cultural dos baianos do sudoeste da Bahia é Belo Horizonte, e da região de Paulo Afonso é Recife”.
Era a voz de um sertanejo (como Elomar), olhando a força exuberante da Bahia litorânea. Mas Sarno, em sua imensa e poderosa obra documental, também se interessou pela Bahia de matriz africana. Um de seus filmes mais festejados – “Iaô”, que venceu a competição em 16 milímetros do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – é um mergulho no culto dos orixás. A partir de tese acadêmica de Juana Elbein dos Santos (“Os Nagô e a Morte”), Sarno documentou as tradições religiosas da nação Gegê-Nagô, vendo-as como formas de resistência cultural de comunidade situada à margem do processo econômico e social de um país em acelerado processo de “modernização” excludente.
O documentário significou uma virada na obra do realizador de Poções. Nelson Pereira dos Santos costumava lembrar que, ao realizar “Rio 40 Graus” (1955), ele subia o morro, pisava num despacho e não percebia. Em 1974, quando dirigiu “O Amuleto de Ogum”, sua percepção e respeito pelos cultos afro-brasileiros eram outros. O mesmo aconteceu com Sarno. Quando realizou “Viramundo”, filme que Jean-Claude Bernardet define em seu seminal “Cineasta e Imagens do Povo” (1985) como o paradigma do cinema de fundamento sociológico (o cineasta se apresenta como a voz do outro), Sarno via a religião como instrumento de alienação popular. Mudou de ideia em “Iaô”. E, num longa produzido em parceria com a TV candanense – “Deus é Fogo” (1988) – registraria a importância da ala progressista da Igreja Católica na América Latina.
Como viveu muitos e produtivos anos, Sarno esteve presente em momentos cruciais do cinema brasileiro. Foi nome de primeira grandeza na chamada Caravana Farkas. Aliás, não aceitava tal designação. A tinha como “equivocada e imprecisa”. E explicava porquê: “o projeto de documentar o Brasil pelo cinema não nasceu de uma ideia de Thomaz Farkas, mas sim de propostas que encaminhamos ao IEB-USP (Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo)”.
Desavenças à parte, o que não se pode negar é a importância do húngaro-brasileiro Thomaz Farkas (1924-2011) na trajetória do próprio Sarno. Foi o empresário e fotógrafo Farkas quem reuniu cinco curtas seminais no longa “Brasil Verdade”, lançado nos cinemas, e em “Herança do Nordeste” (que não conseguiu a difusão planejada). E que o ajudaria a realizar a adaptação de “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, de Monteiro Lobato, no início da década de 1970, entre outros projetos.
Depois de “Iaô”, os caminhos de Geraldo Sarno seriam outros. Ele conseguiria bom diálogo com o público com “Coronel Delmiro Gouveia”, ficção encabeçada por Rubens de Falco, na pele de empresário nordestino nacionalista, esmagado pelo capital internacional. Mas o razoável sucesso não bastou para que seguisse na ficção e ele regressaria ao documentário (para cinema e TV). A série “A Linguagem do Cinema” – com episódios sobre Ruy Guerra, Murilo Salles, Carlos Reichenbach, Ana Carolina, Júlio Bressane, a turma do Árido Movie pernambucano e “Aruanda Visto por Linduarte Noronha” – teve boa repercussão nos meios cinéfilos.
O cineasta baiano escreveu, também, livros e ensaios. Um deles estudou as relações de Glauber Rocha com o Cinema Latino-Americano (1965). Aliás, foram profundas as relações do próprio Sarno com a cinema da América Latina, em especial o cubano e o venezuelano. Ele participou de dezenas de edições do Festival del Nuevo Cine Latinoamericano de la Habana e integrou o Comitê de Cineastas da América Latina, um dos responsáveis pela Escuela de Cine y TV de San Antonio de los Baños, inaugurada, em 1986, nos arredores de Havana.
Com a Venezuela, na fase bolivariana de Hugo Chávez, Sarno realizou o híbrido “Tudo me Parece um Sonho” (2008). O país sul-americano tentava erguer em Caracas a sua ‘Bolivarywood’. O baiano escolheu personagem ligado aos dois países (nome de refinaria de petróleo, comoditie cara aos governos Chávez e Lula) – o general pernambucano José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869), para unir as duas nações. Afinal, Abreu e Lima lutara ao lado de Bolívar pela independência da América Hispânica. O resultado foi um filme de quase três horas, que rendeu a Sarno o Candango de melhor direção no Festival de Brasília, mas nunca chegou ao circuito comercial.
Mesmo destino teve “O Último Romance de Balzac” (2010), que participou do Festival de Gramado. Apesar do apelo do nome do romancista francês no título (e de uma de suas obras – o pouco conhecido “A Pele de Onagro” – na narrativa), o público não se entusiamou com o que viu. Sarno tomou os rumos do espiritismo, partindo de romance psicografado por Waldo Vieira, médium que trabalhou com Chico Xavier. Balzac teria ditado, do Além, a este médium, o romance “Cristo Espera por Ti”. A crítica, como o público, também não se animou.
Em 2020, dez anos depois do estranho diálogo com Balzac, e já octogenário (Sarno completaria 84 anos no próximo 6 de março), o baiano surpreenderia os meios cinematográficos com sua volta ao sertão. “Sertânia”, seu nordestern metafísico, é um testamento digno de seus melhores momentos. Para figurar ao lado de “Viramundo”, de muitos de seus curtas injustamente esquecidos em prateleiras, e de “Yaô”.
Durante 17 anos, o baiano sonhou em realizar “Gavião, o Cangaceiro que Perdeu a Cabeça”. As reviravoltas sofridas pelo cinema brasileiro (em especial na Era Collor) o impediram. Ele não queria morrer sem deixar esse filme pronto. O amigo cearense Rosemberg Cariry e sua filha Bárbara uniram forças e assinaram a produção. O fotógrafo Miguel Vassy (um craque) cuidou das belíssimas imagens em preto-e-branco. Atores como Vertin Moura (Antão Gavião), Júlio Adrião (Capitão Jesuíno), Lourinelson Vladmir (Coronel Militão), Kécia Prado (mãe de Gavião), Edgard Navarro, Sara de Carvalho, Igor de Carvalho e sertanejos e mais sertanejos se somavam para realizar um filme único. Com nome novo – “Sertânia” – o Gavião voou, resultando em longa de invenção, cuja fruição (como lhe era de merecimento) a fase mais aguda da Covid impediu, pelo menos por parte dos segmentos culturais mais dinâmicos.
Da geração que fez o melhor cinema baiano só resta Orlando Senna, parceiro de Sarno em muitos projetos. Já se foram Glauber Rocha (1939-1981), Paulo Gil Soares (1935-2000), Luiz Paulino dos Santos (1930-2017), Roberto Pires (1934-2001) e Fernando Coni Campos (1933-1938). Deixam imenso acervo impresso em celulóide ou em suportes digitais. Que o streaming sirva de vitrine às suas criações.
FILMOGRAFIA
Geraldo Sarno (Poções-Bahia, 06/03/1938 – Rio de Janeiro-RJ, 23/02/2022)
Longas-metragens:
1965-1968 – “Brasil Verdade” (episódio: “Viramundo”) – documentário
1970-1972 – “Herança do Nordeste” (episódios: “Casa de Farinha” e “Padre Cicero”) – documentário
1973 – “O Pica-Pau Amarelo” (ficção infantil)
1976 – “Iaô” – documentário
1977 – “Coronel Delmiro Gouveia” (ficção)
1988 – “Deus é Fogo” – documentário
2002/2004 – “A Linguagem do Cinema I” e “A Linguagem do Cinema II” (série para a TV)
2008 – “Tudo Parece um Sonho” (Brasil-Venezuela) – híbrido
2010 – “O Último Romance de Balzac” – híbrido
2020 – “Sertânia” – ficção (nordestern metafísico)
Curtas e Médias-Metragens:
. Além do clássico “Viramundo” (1965), Sarno dirigiu sozinho, ou com parceiros, dezenas de curtas, como: “Mutirão em Novo Sol” (1963), “Auto da Vitória” (1966, com Alfredo Mesquita), “Dramática Popular” e “Vitalino Lampião”, ambos de 1969, “A Cantoria”, “O Engenho”, “Feiras Populares do Nordeste”, “Os Imaginários”, “Machado de Assis”, “Mestres Santeiros”, “Região: Cariri”, “Viva Cariri”, “Monteiro Lobato” (codireção de Ana Carolina), “Casa de Farinha”, “Padre Cícero” (todos de 1970), “Jornal do Sertão” (1971), “Um Mundo Novo”, “Semana de Arte Moderna” (1972), “Casa Grande & Senzala”, “Petroquímica d a Bahia” (codirigido por Lia Mônica), ambos de 1974, “Aratu”, “Espaço Sagrado”, “Segunda-Feira” (todos de 1975), “Plantar nas Estrelas” (1976), “Eu Carrego o Sertão Dentro de Mim” (1980), “Coco do Macalé” (1982) e “A Terra Queima”, baseado no poema “Duas das Festas da Morte”, de João Cabral de Mello Neto, 55 minutos (1984).