Sensação do Olhar de Cinema
Por Maria do Rosário Caetano, de Curitiba
Mothiba Grace Bapela caminha pelos ambientes do Olhar de Cinema, o Festival Internacional de Curitiba, distribuindo sorrisos largos e imensa alegria. Ela tem perto de 50 anos, corpo roliço, pele negra e um olhar muito vivo. Lembra uma mistura de Dona Ivone Lara com Jovelina Pérola Negra, ambas quando mais jovens. Sua vida, singularizada pelo filme “Grace Tomada Única”, de Lindiwe Matshikiza, recebeu prêmio de “Contribuição Artística” no IDFA, o Festival de Amsterdã, meca do cinema documentário mundial. E com razão. Nada tem de cinebiografia convencional.
Ao longos dez anos, a diretora e sua atriz, que é também doméstica dedicada a infindáveis faxinas em mansões alheias, documentaram juntas a vida de Mothiba, ou Grace, ou a Senhora Bapela. A cineasta, com câmeras tradicionais. Grace, com minúscula câmara acoplada ao pescoço enquanto faxinava banheiros e pias de cozinha.
Juntas, evocaram situações vividas pela protagonista na infância e adolescência muito pobres, as oportunidades, raras mas instigantes, na publicidade (em divertido comercial de tempero culinário) e no cinema (como atriz coadjuvante). E o “trampo” pesado na faxina de casas alheias. Incluindo um caso macabro. E dolorosa experiência da juventude. Relações familiares não poderiam faltar. Os cinco filhos (dois morreram cedo, os outros três foram criados pela avó, enquanto Grace trabalhava na cidade). O dinheiro ganho na publicidade, no cinema e nas faxinas foi investido numa boa casa em bairro empoeirado, onde os filhos e netos cresceram com liberdade.
A diretora Lindiwe, também atriz e performer, registra sua personagem com imensa paixão. Sabe que ela é uma grande contadora de histórias, uma narradora privilegiada e carismática, que tem domínio do corpo e da voz, que enfrenta os assuntos mais difíceis. Daí não haver necessidade de ilustrar o que já está tragicamente dito. Basta a riqueza de imagens sugestivas, o rico diálogo com a experimentação visual.
Grace, que nasceu na África do Sul na época do apartheid, conhecia o lugar reservado a uma criança negra e pobre. Quando saiu de seu povoado de origem, rumo a Joanesburgo, em busca de vida melhor e de um emprego, nunca vira uma torrada, nunca dormira em uma boa cama. Sabia que um único lugar a esperava: o bairro negro de Soweto. Lá se fixou. Lá provou o sabor doce da geleia espalhada numa “toast”. Lá ganharia, em tempos futuros, o aposto de “Grace Take Um” (Tomada Única). Ou seja, com ela, diretor não desperdiçaria tempo e película. Ela acertava de primeira.
Como doméstica, foi parar os EUA. Conhecedora de línguas faladas em seu país, a África do Sul, traduziu-as para o inglês, mas a falta do green card a colocou no fundo de um avião, como “indesejada”. Foi devolvida como imigrante ilegal a seu país de origem. Para começar tudo de novo.
Não há tempo para lamentos no filme. Nem doença grave há de quebrar o ânimo de Grace Take Um. Ela promete fazer do limão uma limonada. Promete buscar nos EUA, nação que a expulsou, recursos para instituir, em empoeirado terreno ao lado de sua casa, organização sanitária capaz de atender a quem passar pelo que ela passou. Grace não é fraca não.
Da África do Sul, tomemos o rumo do Congo. Ao invés do inglês, o idioma será o francês. O Congo, na verdade, são dois, um bem grande, colonizado pela França. O outro, menor, pela Bélgica. Este, sob o reinado do monarca Leopoldo, conseguiu cometer atrocidades capazes de superar as do país de Napoleão. Para contar com as quantidades de látex que desejava obter em suas fazendas, a família real belga mandava decepar as mãos dos trabalhadores incapazes de cumprir a cota. Atrocidades que, registradas em fotos, correram mundo.
O filme “7 Cortes de Cabelo no Congo”, dos brasileiros Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi, traz os dois Congos para o Rio de Janeiro. É que em solo fluminense, pelas cercanias de Brás de Pina, vive significativa comunidade congolesa. Em torno do salão de Fernando “Pablo” Mupapa, um mix de Ailton Graça com Bukassa “Pacificado” Kabengele, gravitam os que deixaram seu país fugindo de guerras ou da miséria.
Luciana Bezerra é atriz, diretora e alma do grupo Nós do Morro, no Vidigal. Participou do processo de preparação de atores para o longa “Cidade de Deus”, dirigiu “Mina de Fé”, curta premiado no Festival de Brasília e o melhor episódio de “5 X Favela – Agora por Nós Mesmos”. Ela divide a direção de “Congo” com o colega do Nós do Morro Gustavo Melo, autor de vários curtas, e com Pedro Rossi, parceiro de Isabel Joffily e do veterano José Joffily em filmes produzidos pela Coevos. Que aliás, assina a produção deste longa carioca-congolês. Por que congolês?
Porque um desavisado pode sair do cinema pensando que assistiu a um longa-metragem “made in Congo”. Lá estão a ginga, os falares, as vestimentas, a camisa da seleção, os cantos, os penteados, os sonhos de quem nasceu naquela parte da África Central. Claro que há marcas essencialmente brasileiras, como a discussão teimosa entre Pablo, vascaíno (“time aberto aos negros”) e um cliente, flamenguista até a medula (agremiação acusada de “não ter dado atenção aos negros”). E a língua portuguesa aparece, de vez em quando, entre o francês e línguas africanas.
O título deste longa documental carioca nos induz a esperar por refinados cortes de cabelo, aqueles elaboradíssimos, com desenhos geométricos, que criam verdadeiras obras de arte nas cabeças afros. Mas não, o forte de Pablo, mais que malabarismos com fios, é “fazer cabeças políticas”. Ele é um pregador de ideias. Articulado, conversa com seus clientes e amigos sobre seu país, seu povo (que define como “os judeus da África, pois vivem sendo perseguidos, espalhados pelo mundo”), as misérias do continente negro, que (ao contrário da Europa UNIDA, dos Estados UNIDOS da América, do Ocidente UNIDO) segue desunida, explorada, com nações lutando entre si. Um Ocidente branco que usa riquezas — seja o diamante, o ouro, o cobalto, qualquer matéria-prima necessária — para tornar-se cada vez mais rico enquanto a África torna-se cada vez mais miserável.
“7 Cortes de Cabelo no Congo” tem roteiro de Isabel Joffily (também produtora) e Pedro Rossi (também montador) e compõe um todo bem-estruturado. Os três diretores atuam coletivamente. Não dirigem trechos ou episódios documentais. Realizaram trabalho composto com ótimas imagens e capaz de revelar um Brasil que desconhecemos. Um Brasil africano, que vai amalgamando-se ao nosso tecido social de forma tão orgânica, que nem percebemos.
Há algo mais carioca que ver dois congoleses, um vascaíno e um flamenguista, discutindo suas paixões boleiras, em salão suburbano de Brás de Pina? Claro que não. Só que o filme mostra que atrás daqueles dois homens há histórias de vida profundamente marcadas por guerras (e tragédias ocultas) ocorridas na fronteira entre o Congo, Angola e outras nações ensanguentadas da África, matriz constitutiva essencial do povo brasileiro.