Gyuri
Por Maria do Rosário Caetano
O cinema documental brasileiro vai, aos poucos, documentando a trajetória de nossos grandes fotógrafos. E enriquecendo nossa cinematografia e bancos de imagens. Nesta quinta-feira, 7 de julho, chega ao circuito exibidor o filme “Gyuri”, primeiro longa-metragem da pernambucana Mariana Lacerda, que tem como foco a profunda relação que a suíça, naturalizada brasileira, Claudia Andujar, estabeleceu com o povo Yanomami. “Gyuri”, projeto gerado pelo conceituado Rumos, do Itaú Cultural, participou da Mostra Estado das Coisas, do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade e revelou aos amantes da fotografia e das lutas indígenas o papel desempenhado por Claudia Andujar, hoje com 91 anos, ao longo das décadas que viveu em fina sintonia com a Amazônia dos povos originários.
O filme começa, para nosso estranhamento, com duas pessoas falando em húngaro: a quase-nonagenária Claudia e um homem muito culto, em quem só os mais familiarizados com o mundo acadêmico reconhecerão, o filósofo Peter Pál Pelbart, professor da PUC paulistana. O estranhamento se dá, primeiro, porque sempre ouvimos dizer que Claudia Andujar era suíça, quem sabe suíço-francesa. Sim, ela nasceu na Europa Ocidental, mas no seio de família judia, que logo se transferiu para região na Hungria, próximo à Transilvânia romena. Quando estourou a Segunda Guerra Mundial e a barbárie nazista se espalhou, vieram perdas e fugas. Sua família paterna foi exterminada em campo de concentração. A jovem regressou à Europa Ocidental, passou por Viena, imigrou para os EUA.
Em 1955, Claudia Andujar chegou ao Brasil, que escolheu como sua nova e definitiva pátria. Aqui, dedicou seus melhores anos à salvaguarda dos povos Yanomami. Produzir valioso acervo iconográfico sobre a etnia que habita o extremo norte do Brasil (Amazonas e Roraima) e cerrou fileiras ao lado de militantes em luta permanente pela demarcação da Terra Indígena Yanomami, reconhecida pelo governo brasileiro em 1992.
Depois do prólogo em húngaro, com Peter Pál Pelbart, a história da luta empreendida junto aos Yanomami será narrada em tranquilas conversas com o xamã Davi Kopenawa (parceiro de Luiz Bolognesi em “A Última Floresta”) e com o ativista e missionário Carlo Zacquini. A fotógrafa já não tem a agilidade de outrora. Desloca-se em cadeira de rodas. Quando caminha, o faz com dificuldades. Mesmo assim, parece feliz em estar na aldeia Urihi-A, território Yanomami em plena Amazônia.
Estar de volta à grande floresta permite a ela e ao filme registrar imagens, sensações, costumes e valores de um povo que, se hoje luta contra a invasão de garimpeiros, madeireiros e posseiros, pode esperar por dias melhores, quando seu território voltar a ser defendido, como exige a Constituição Brasileira, por governos democráticos e não-hostis como o atual.
Embora mais de dois terços do documentário se passem em território Yanomami, Mariana Lacerda escolheu uma palavra húngara, “Gyuri”, ligada à primeira parte da narrativa, para nominá-lo. Trata-se do nome de um menino judeu, que deu um único beijo na pré-adolescente Claudia e presenteou-a com uma foto minúscula, que ela guarda ainda hoje, passadas muitas décadas de andanças pelo mundo. O retrato de proporções muito reduzidas convive com foto igualmente reduzida do pai de trágico destino. Ambos morreram em campos de extermínio. Ela, que se tornou fotógrafa, guardou os retratos impressos numa espécie de escapulário afetivo. São as fotos de estimação da fotógrafa que fez da fotografia sua razão de viver.
Gyuri
Brasil, 88 minutos, 2015-2022
Longa documental sobre a fotógrafa Claudia Andujar
Direção: Mariana Lacerda
Fotografia: Marcelo Lacerda e Pio Figueroa
Montagem: Mariana Lacerda e Paula Mercedes
Som e finalização de som: Gustavo Fioravante e O Grivo
Distribuição: Descoloniza Filmes
FOTÓGRAFOS NO CINEMA BRASILEIRO:
1997 – “Dib” (sobre Dib Lutfi), de Márcia Derraik e Simplício Neto (45 minutos)
2000 – “Pierre Fatumbi Vergé: Mensageiro Entre Dois Mundos”, de Lula Buarque (82 minutos)
2007 – “Iluminados”, de Cristina Leal (98 minutos)
2014 – “O Sal da Terra”, de Wim Wenders e Juliano Salgado (109 minutos)
2019 – “Barretão”, de Marcelo Santiago (85 minutos)
2019 – “Fotografação”, de Lauro Escorel (76 minutos)
2019 – “Equivalências – Aprender Vivendo”, de Maureen Bisilliat (96 minutos)
2020 – “A Luz de Mário Carneiro”, de Betse de Paula (73 minutos)
2021- “Não Nasci para Deixar meus Olhos Perderem Tempo” (sobre Orlando Brito), de Claudio Moraes (72 minutos)
2021- “Cravos”, de Marco del Fiol (109 minutos)
2022 – “Gyuri” (Claudia Andujar e os Yanomami), de Mariana Lacerda (88 minutos)
2015/2018 – “Luz e Sombra – Fotógrafos do Cinema Brasileiro” – Série de Betse de Paula e Jacques Cheuiche para o Canal Curta! (26 episódios)