Trágica vida de Lima Barreto chega aos cinemas no ano do centenário de sua morte

Por Maria do Rosário Caetano

Afonso Henriques de Lima Barreto é um dos mais importantes escritores brasileiros. Alguns de seus romances – “O Triste Fim de Policarpo Quaresma”, “Recordações do Escrivão Isaías Caminha” e “Clara do Anjos” – e de seus contos – “A Nova Califórnia” e “O Homem que Falava Javanês” – inseminaram nossas vidas e a criação artística brasileira.

Antunes Filho e seu CPT (Centro de Pesquisa Teatral) transformaram “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” em espetáculo inesquecível. Paulo Thiago transformou o mesmo romance num longa-metragem que teve, pelo menos, um grande intérprete, Paulo José. “A Nova Califórnia” deu origem ao filme “Osso, Amor e Papagaio” (Mêmolo e Barros, 1957) e serviu de matéria-prima a uma novela da Rede Globo (“Fera Ferida”, Aguinaldo Silva, 1993). Jorge Furtado recriou “O Homem que Falava Javanês” em especial da mesma Rede Globo.

Agora chegou a vez do cineasta carioca Luiz Antônio Pilar, de 61 anos, transformar a peça teatral “Lima Barreto, ao Terceiro Dia”, de Luiz Alberto de Abreu, em filme. O longa ficcional, protagonizado por Luis Miranda e Sidney Santiago Kuanza, estreia nos cinemas nesta quinta-feira, 29 de setembro. Não se trata de uma cinebiografia convencional, daquelas que contam a história do artista, do berço ao túmulo. Abreu, que coassina, com o diretor, o roteiro (premiado com o troféu Calunga no Cine PE), preferiu recorte sintético  – os três últimos dias em que o criador de “Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá” permaneceu em sua derradeira internação hospitalar no manicômio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, após forte crise alucinatória. Corria o ano de 1919. Em novembro de 1922, portanto, oito meses depois da Semana de Arte Moderna, ambientada na Paulicéia, que ele espinafraria, Afonso Henriques de Lima Barreto, jornalista, romancista, contista, cronista e rebelde até não mais poder, morria aos 41 anos.

O criador do ultranacionalista “Policarpo Quaresma”, neto de uma escrava, nasceu no subúrbio carioca, no dia 13 de maio de 1881, portanto, sete anos antes que a Princesa Isabel assinasse a Lei Áurea. Morreria em dia que a Igreja consagrara a Todos os Santos (primeiro de novembro), véspera de Finados. Alcóolatra, brigado com muitos amigos, vítima de alucinações e males físicos, com passagens por instituições psiquiátricas (perdera a mãe aos seis anos e o pai, tipógrafo, também tivera problemas mentais). Enfim, sua existência somaria um rosário de males. Deixaria, felizmente, obra farta e admiradores fieis como Francisco de Assis Barbosa (1914-1991), seu mais dedicado estudioso e defensor, o contista João Antônio (1937-1996), autor do obrigatório “Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques Lima Barreto”, 1977), e a biógrafa Lilia Schwarcz (“Lima Barreto – Triste Visionário”, 2017). Mesmo assim, o centenário de sua morte está passando quase em branco.

Se existe alguém que pode ser evocado como vítima de racismo cultural explícito no Brasil, este alguém se chama Afonso Henriques de Lima Barreto. Ele candidatou-se três vezes à Academia Brasileira de Letras. Não foi aceito em nenhuma delas. Tinha obra mais respeitável que a de muitos (muitos!!!) portadores do fardão verde-amarelo. Mas tinha “um defeito de cor”. E mais, um defeito de origem: era pobre. E um defeito político: professava ideias anarquistas e dizia muito do que pensava. Ou seja, tinha tudo que a ABL abomina até hoje – era preto, pobre e sincericida.

O longa-metragem “Lima Barreto, ao Terceiro Dia” não agradará aos críticos. Não está à altura de seu personagem, embora a peça teatral de Abreu (autor de textos notáveis como “Bella Ciao” e corroteirista de “Narradores de Javé”) pareça construída com grandes ideias (mesmo que sua montagem nos palcos não tenha causado o frisson de outros textos de Abreu, incluindo sua parceria televisiva com Luiz Fernando Carvalho).

Como o dramaturgo escolheu três dias de alucinação do escritor (interpretado na maturidade por Luis Miranda), internado num manicômio, ele tem liberdade para dar asas à imaginação. E é o que ele faz. Reduz o número de pacientes da instituição ao velho Felipe (Eduardo Silva), interlocutor de Lima Barreto. Um médico branco e jovem (Ronny Kriwat) tem seus embates com o paciente culto e rebelde.

O romancista relembra o processo de escritura de “O Triste Fim de Policarpo Quaresma” (o personagem é encarnado por Orã Figueiredo), publicado em 1915 (mais novo, Afonso Henriques é representado por Sidnei Santiago). Só aparecem personagens femininas (no filme) nas evocações dos trechos de “Policarpo”: a irmã do nacionalista extremado, Adelaide (Gisele Fróes), a frágil Ismênia (Maria Clara Vicente), sua mãe (Cristiane Amorim), esposa do General Albernaz (Camilo Belivacqua). O ator e cantor mineiro Maurício Tizumba faz participação especial e divertida na pele do roceiro Felizardo.

Na segunda parte do filme, os embates entre o jovem Lima Barreto, idealista e sonhador, e o “velho” Lima (como chamar de velho um homem que morreu com 41 anos?!), desiludido e com a saúde abalada, constituem bons momentos. Mesmo que o filme deixe a desejar, assisti-lo é um dever cívico. Afinal, nos reaproxima da obra de um de nossos escritores essenciais, justo no ano do centenário de seu prematuro falecimento.

Ao final da sessão, vale correr até uma boa livraria para adquirir a volumosa biografia de Lilia Schwarcz e procurar num sebo digital “Calvário e Porres do Pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”. João Antônio, também alcóolatra e igualmente apaixonado pelos ocupantes dos baixos extratos da pirâmide social, morreu sozinho, num apartamento carioca, abraçado ao próprio rancor. Tinha em Lima Barreto, um de seus mestres.

 

Lima Barreto, ao Terceiro Dia
Brasil, 104 minutos, 2022
Direção: Luiz Antônio Pilar
Elenco: Luis Miranda, Sidney Santiago Kuanza, Orã Figueiredo, Maria Clara Vicente, Gisele Fróes, Cristiane Amorim, Camilo Bevilacqua, Mauricio Tizumba, Eduardo Silva, Fernando Santana, Ronny Kriwat, Tiago Cosmo, Mariah da Penha , Gefferson Pereira, Murilo Dias e Glauco dos Santos. Roteiro: Luiz Antonio Pilar e Luiz Alberto de Abreu
Fotografia: Daniel Leite
Direção de arte e cenografia: Dóris Rollemberg
Producão: LaPilar
Coprodução: José Alvarenga Júnior, GloboFilmes, Canal Brasil e Telecine
Distribuição: Pipa Pictures

 

FILMOGRAFIA
Luiz Antônio Pilar (Rio de Janeiro, RJ – 29/10/1960)
Ator, cineasta e diretor de telenovelas e séries

2009 – “Em Quadro – A História de 4 Negros nas Telas” (doc)
2013 – “Remoção” (parceria com Anderson Quack) – (doc)
2018 – “Candeia” (documentário)
2022 – “Lima Barreto, ao Terceiro Dia” (ficção)

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