Escravos de Jó: através do barroco

“Não é que a gente seja barroco. A gente é através do barroco”

Por Nirton Venâncio

A fala é da personagem professora Carolina (Silvia Buarque), em uma cena do filme “Os Escravos de Jó”, de Rosemberg Cariry (2020), a um grupo de estudantes que trabalham com restauração de arte sacra na colonial cidade de Ouro Preto, Minas Gerais. E pode-se dizer que toda a proposta do longa tem, nessa alocução e referência histórica, a concepção e desenvolvimento do enredo.

O filme, que, a partir do título, faz alusão à fábula bíblica de Jó, do Antigo Testamento, vai muito além de um enredo com analogia sobre as violentas provações impostas por Satanás em uma disputa com Deus. Tendo como ponto condutor narrativo o jovem Samuel (Daniel Passi), que estuda cinema e faz um filme que não se realiza, “Os Escravos de Jó” é um mosaico de temas instigantes, dissertando sobre a miséria humana no âmbito da tradição judaico-cristã, a crise civilizatória contemporânea na alusão edipiana, construções identitárias fundamentalistas, personagens com passados memorosos, como os dois velhos judeus de orientações distintas, Elifas Lévi (Everardo Pontes) e Jérèmie Valés (Antonio Pitanga), Hélène (Romi Soares), francesa viúva de um homem bem mais velho “marcado pela guerra e seus segredos”, e personagens com presentes em conflagração nas figuras da imigrante palestina pacifista Yasmina (Daniela Jesus) e seu irmão Kamal (Hadi Bakkour), rebelde defensor radical da intifada. Isso posto, Rosemberg Cariry tem o desafio de contar histórias que se cruzam pelas ruas, praças e ladeiras flexuosas ambientadas na cidade barroca, museu pulsante a céu aberto, vidas que transpassam pela sinuosidade do tempo, da história e dos continentes. Os diálogos podem parecer artificiais, se apressarão em dizer, nada orgânicos entre o emissor e o sentimento, se equivocarão os menos atentos, mas é justamente no distanciamento da câmera com o acontecimento que se extrai do evidente a estranheza como reflexão, o pensamento crítico mais do que contemplativo.

Essa ferramenta narrativa não se poupa, no entanto, do indicativo poético na simbologia que permeia todo o filme:

–  a moça palestina que usa o véu islâmico al-amira, desnuda-se em pedaços e envia fotos pelo celular para o pretenso namorado Samuel: na intimidade, o corpo emigrado e fragmentado de seu território em guerra. Samuel cola os ladrilhos dessas imagens na parede, assim como monta pastilhas de horror dos mortos do holocausto, tentativa angustiada de recuperar e consertar o passado no que não mais pode, e do lado manter a vida na beleza feminina no que ainda é possível. É através dessas parcelas que se faz o todo, a necessária universalidade humana;

– após a noite edipiana de Samuel e Hélène, esta fuma um cigarro emoldurada numa janela, como uma mãe marmórea em uma alameda sacrossanta, enquanto o jovem jaz num sofá, corpo nu, braço direito pendente após o pecado sofocliano (o sonho). É através da ausência da mãe nessa imagem que se traduz a orfandade do personagem e suas origens dilaceradas. A cena é a desconstrução mais ousada de Pietà, transposta da basílica de São Pedro e desfeita em expurgação para alguma igreja em Ouro Preto. Como um Michelangelo desmanchado, atualizado e analiticamente refeito por Aleijadinho. Afinal, como disse a professora Carolina noutra cena, sobre o nosso transbarroco, “eu penso sempre num filho antropofágico que devora o pai europeu”;

– Jérèmie, também dono de uma livraria, não por acaso chamada Utopia, apresenta a Samuel a poesia de Al-Mutamid, bela e avançada para a sua época no tratamento da mulher, ele que foi o terceiro e último dos reis Abádidas que governaram a Taifa de Sevilha no século XI e um dos poetas mais importantes da Península Ibérica, nascido na cidade portuguesa Beja no começo do distante ano 1000. É através da tradução de outro grande poeta, o ensaísta, arabista e historiador lisboeta Adalberto Alves, de 81 anos, que o lirismo dos versos e o destino de um poeta príncipe chega ao coração de um jovem que se enamora por uma mulher igualmente órfã de sua terra, tão congênere como as musas de Al-Mutamid na intensa guerra que opunha os muçulmanos a sul e os cristãos do norte.

A construção descritiva mosaical de “Os Escravos de Jó” se determina do lado de fora para dentro quando Rosemberg recorta as cenas, lapida as sequências, condensa as ações em quadros vertovianos, e não por acaso o cineasta soviético é aludido em “Um Homem com uma Câmera” – nada mais experimentalmente barroco do que esse clássico de 1929 com suas preocupações estéticas e políticas. Na mesma proporção narrativa, do lado de dentro para fora, os personagens rendilham fotos para se inteirarem do ontem no agora, burilam meticulosamente as restaurações para compreenderem o pretérito perfeito do tempo e preservarem a história no futuro do subjuntivo, depuram condutas para se aprimorarem, resistirem e prosseguirem.

Rosemberg Cariry abre o seu filme com uma sequência com os estudantes entrando em uma mina de 1715, onde mais de 1.200 africanos foram escravizados na extração de ouro. Entram como adentram o útero seco do passado. Encontrarão pelas paredes encrustados os selos dos escravos de Jó, jogados na disputa cega entre o bem e o mal? O filme termina com o personagem Samuel também entrando em uma caverna para assim descer aos infernos, apagar o passado de não ter sido judeu pensando que era, mergulhar no útero úmido do presente revelado para renascer, reconstruir-se, ser agora quem ele quiser, como afirmou Jérèmy a ele numa conversa. Nesse círculo onde os pontos se encontram na simetria das duas sequências, o filme tem, em si, o movimento primário e orbicular do próprio cinema como construção artística, que dá vida ao que está estático, fundamento muito bem ilustrado na cena de metalinguagem em que Yasmina ganha de Samuel um praxinoscópio, aparelho inventado pelo francês Émile Reynaud, que projeta imagens de um cavalo desenhadas sobre fitas transparentes. Yasmina gira analogicamente a manivela, e os cavalos galopam. Rosemberg aciona o motor silencioso de sua câmera digital e a reflexão que o cinema provoca, galopa diante nossos olhos a 24 quadros de emoção.

A ideia do projeto de “Os Escravos de Jó” começou em 1999, quando Rosemberg Cariry estava em Estrasburgo, França, e conheceu parte da cultura da Alsácia. Ouviu histórias de tragédias, de judeus perseguidos, de repatriados, de ex-prisioneiros, ciganos, homossexuais e comunistas que foram presos no campo de concentração de Struthof. Viu também a agitação da juventude imigrante, notadamente a árabe, praticamente excluída nos bairros mais pobres e revoltada com a situação. Os primeiros esboços do roteiro nascem nesse contexto. Sua intenção era filmar naquele cenário, o centro histórico, o entorno da catedral gótica, a antiga Universidade, os rios, as sinagogas, a praça Kléber, as periferias. Iniciou as negociações para a produção no ano 2000, prevendo as últimas cenas no final do ano, a passagem do milênio, o início de uma nova era que se configurava tão violenta quando o século anterior. De volta ao Brasil, o projeto não se realizou, e só foi possível em 2017, através da aprovação no edital de baixo orçamento da Ancine. Escolheu como locações a histórica Ouro Preto. Através do barroco, Rosemberg expressa seu sentimento de busca, inquietação, experimentação.

Conversando uma vez com ele sobre o longo processo de concretização do projeto, as mudanças, as dificuldades, os desafios, de como imaginou e do que pode ser feito para ver o filme na tela, disse-me, no seu sempre admirável e lúcido raciocínio: “Cada tempo é para ser compreendido e vivido como tem que ser. Não pode uma coisa, pode outra. A arte se reinventa e se ressignifica. No mais, tudo pertence ao tempo”.

O cinema brasileiro é também através do cinema de Rosemberg Cariry.

 

Nirton Venâncio é licenciado em Letras pela Universidade Estadual do Ceará e professor de Cinema, Narrativas Cinematográficas, História do Cinema e Roteiro. Poeta com vários livros publicados. Crítico de cinema com passagem nos principais jornais do Ceará, blogs e revistas especializadas. Cineasta com vários prêmios conquistados em mostras e festivais.

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