Caetano de batom e bustiê em encontro com Lupicínio Rodrigues regado a muitos sambas-canção
Cantor dá depoimento inédito à Revista de CINEMA sobre encontro com Lupicínio em Porto Alegre
Por Maria do Rosário Caetano
Quem assistiu ao filme “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”, de Alfredo Manevy, em suas exibições na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no Festival Aruanda e na Mostra de Tiradentes, sabe que cinco baianos (os “Doces Bárbaros” Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa e Maria Bethânia e, também, João Gilberto) são importantíssimos na narrativa.
Em especial Caetano Veloso, que gravou “Felicidade”, de Lupe, no álbum “Temporada de Verão – Ao Vivo na Bahia”, editado em 1974. Num tempo, portanto, em que o artista gaúcho vivia esquecido pelas emissoras de rádio e TV, o baiano de Santo Amaro o recolocava nas paradas de sucesso.
“Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor” chegará a novos festivais, depois aos cinemas e, por fim, à TV por assinatura (Canal Curta!) nos próximos meses. Por sua ótima recepção junto ao público, a relação de Caetano com o autor de “Vingança” vem movimentando as redes sociais.
A mais curiosa das intervenções digitais apareceu no Facebook e veio de Claúdio Renato Passavante. Ele narrou história tão motivadora, que nos leva a adotar a máxima de personagem de John Ford em “O Homem que Matou o Facínora” (1962): “quando a lenda é maior que o fato, imprima-se a lenda”.
O relato de Passavante: “Um dia, 1969, talvez, a ditadura espumava ódio, Gil e Caetano se apresentavam em Porto Alegre e perceberam, na primeira fila, a presença engravatada e elegante de Lupicínio Rodrigues. Ficaram tensos, tietes que eram do compositor gaúcho. Assim que acabou o espetáculo, os baianos foram avisados que Lupicínio os esperava na mesa. Queria vê-los imediatamente. Gil e Caetano de batom. Sentaram tímidos e envergonhados. Mestre Lupicínio elogiou o show. Os baianos riram sem graça, Lupicínio encorajou a música e a performance tropicalistas. Gil e Caetano agradeceram encabulados e mal acreditavam na existência real e gentil de Lupicínio. O mestre gaúcho estava de terno e gravata. Gil e Caetano com a boca pintada de batom. Quando percebeu o constrangimento dos baianos, Lupicínio pediu a bolsa da mulher e foi ao banheiro. Voltou com a boca lambuzada de batom. Gil e Caetano se entreolharam. As bocas coloridas de batom tremeram e as lágrimas fizeram dos rostos baianos tobogãs”.
Estamos diante de história lendária, que ao passar de boca em boca, contada e recontada, transformou-se no delicioso relato de Passavante? Ou de uma história real? Antes de procurarmos o relato de Caetano Veloso, personagem central do encontro, sobre o que realmente acontecera em Porto Alegre, naquela noite distante, a Revista de CINEMA procurou o cineasta Alfredo Manevy, para saber se, em sua pesquisas para o documentário “Confissões de um Sofredor”, ele encontrara relatos do episódio. Ou seja, daquela noite em que Caetano e Gil estariam de lábios pintados e Lupicínio, para entrar no clima, também pintara os seus.
Manevy contou que falara com o biógrafo de Lupicínio, que o ajudara bastante na fase de pesquisas do filme. Ele lhe confirmara que houvera, sim, um encontro de Caetano com Lupe, num bar em Porto Alegre e que eles cantaram noite adentro. Tanto que, no filme, a jornalista, ex-apresentadora de TV e do Festival de Cinema de Gramado, Tânia Carvalho, evoca o acontecido.
Caetano mantinha elo de amizade com Tânia. Ela era casada com amigo do compositor, o grande ator baiano Geraldo del Rey (1930-1993), o vaqueiro Manoel de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Por isso, a jornalista encarregou-se de levar Caetano ao encontro de Lupe, depois do show. Sinal, portanto, que a história narrada por Passavante podia trazer imprecisões, mas tinha base no real.
Sem querer aumentar o suspense, registremos, primeiro, a presença dos cinco baianos em “Lupicínio Rodrigues – Confissões de um Sofredor”. Alfredo Manevy destaca os momentos mais importantes de tal participação na construção narrativa de seu primeiro longa-metragem:
— Caetano aparece no filme pelo depoimento de Tânia Carvalho, que o levou em seu fusquinha ao bar para encontrar-se com Lupicínio. Aparece, também, em depoimento do próprio Lupe, gravado em audio inédito até que o colocássemos em “Confissões de um Sofredor”. O artista gaúcho comenta a gravação de “Felicidade”, por Caetano.
“Já Gilberto Gil”, prossegue o cineasta, “aparece em depoimento gravado para o filme, no qual relembra a amizade que o uniu a Lupicínio e destaca a voz suave, baixa, o ‘cantar dizendo’ do gaúcho.
“Maria Bethânia aparece cantando ‘Loucura’, composição que Lupe compôs como resposta a alguns detratores”, adiciona Manevy.
“Gal Costa interpreta ‘Volta’, que é deixa para falarmos de um dos amores dele, ou seja, a mulher a quem dedicara a canção”. Por fim, o documentarista registra “a incrível ligação de João Gilberto com Lupicínio”:
— Creio que provocado pelo poeta Augusto de Campos, João Gilberto fez questão de trazer Caetano para cantar em especial que ele, João, gravou para a TV Tupi. E a gravação foi de “Quem Há de Dizer”, registro belíssimo e inédito até que o recuperássemos no nosso documentário. Essa gravação nunca foi editada, nem colocada em disco. Mas o significado dela é imenso. O cantor que fez a revolução da voz, João Gilberto, estava ali, com aquele registro, reconhecendo outro gigante, que era o Lupe.
Alfredo Manevy vê na gravação de “Quem Há de Dizer”, uma espécie de “fio da meada, retomado no filme, um fio importantíssimo pois, essa geração da Bossa Nova, que em parte destronou a Geração do Lupe, o reverencia naquele momento, começo da década de 1970. O reverencia destacando sua enorme contribuição para a musicalidade e o modo de cantar, suave, o cantar dizendo”.
Como Caetano Veloso está de férias na Bahia, a Revista de CINEMA recorreu à atriz e produtora Paula Lavigne, pedindo que ela submetesse o texto de Cláudio Renato Passavante à analise do artista baiano, autor de obra memorialístico-ensaística de grande significação – “Verdade Tropical” (Companhia das Letras, 1997).
A resposta, via e-mail, de Caetano Veloso estabelece a “Verdade Tropical” do que se passou naquela noite portalegrense, quando ele estava mesmo com os lábios pintados, “com blusa franzida, de alça, e tamancos holandeses vermelhos”.
Com a palavra, o artista baiano, que primeiro situa o tempo histórico do encontro:
“Foi depois que vim de Londres. Entre dezembro de 68 e fevereiro de 69, Gil e eu estávamos presos. Dali fomos levados pra Salvador, onde ficamos 6 meses confinados. Não nos libertaram: decidiram nos mandar para a Europa. Ficamos cerca de um mês entre Portugal, França e Inglaterra. Daí nos assentamos em Londres, de onde só voltamos para ficar no final de 1971 ou começo de 72. Creio que foi nesse ano que cantei em Porto Alegre de batom, blusa franzida, de alça, e tamancos holandeses vermelhos”.
E mais: “Lupicínio (que não estava na plateia) mandou recado por alguém, dizendo que estava num determinado bar/restaurante, aonde fui sem tirar o batom. Meu cabelo estava grande e todo de cachos pretos. Lupicínio me recebeu sem surpresa ou espanto. Cantou várias canções dele, sempre ficando de pé para cantar. Fiquei maravilhado com a delicadeza dele, tanto como homem quanto como cantor. Eu não fiquei envergonhado. Apenas pensava como era bonito ver aquele gênio da canção olhar sem susto para um cara de batom e ‘bustiê’. Embora ele e a mulher dele tivessem um casamento para ir pela manhã, os dois terminaram ficando até o dia nascer ao meu lado e ao lado de alguns amigos gaúchos. Gil não estava lá. O curioso é que, a cada um daqueles sambas-canções extraordinários, a mulher dele dizia ‘Tudo mentira’. Exceto quando ele cantou a canção ‘Exemplo’, ao fim da qual ela disse: ‘Essa é a única que diz a verdade’”.
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