“Versus” mostra a trajetória de Ken Loach, voz do proletariado britânico, no streaming gratuito do Sesc

Por Maria do Rosário Caetano

Ken Loach, a indomável voz do proletariado britânico no cinema, é visto no documentário “Versus – A Vida e os Filmes de Ken Loach”, como um homem gentil, que fala baixo, ouve os outros e aprecia musicais. O filme pode ser visto, gratuitamente, na plataforma de streaming Sesc Cinema em Casa, até março de 2024.

Por que a cineasta Louise Osmond, autora dessa narrativa adrenalinada e cheia de paixão, batizou seu filme de forma tão convencional? O que a palavra “Versus” revela da obra do cineasta inglês?

Basta assistirmos à explosiva abertura do documentário, produção do BFI (Instituto Britânico de Cinema) e da poderosa BBC, para entendermos o que levou diretora a escolher tal título, anódino apenas na aparência.

Como Ken Loach é um realizador assumidamente de esquerda, a imprensa situada no polo oposto, muito poderosa na terra de Margareth Tatcher, nunca o perdoou. O documentário destaca manchetes que antepõem predicados do realizador a seus “defeitos”: “Mestre do Realismo” x “Louco Marxista”, “Gênio” x “Escória”, “O Grande Viajante” x “Autor de filminhos repulsivos”.

Louise Osmond, diretora de “Deep Water” e “Dark Horse“, realizou seu longa-metragem em 2015, com a intenção de revelar a trajetória de Loach desde sua estreia na TV até a realização de “Eu, Daniel Blake”, que seria lançado em 2016.

O cineasta está presente na narrativa, com sua calma costumeira, sorriso constrangido e modéstia surpreendente. Revelará que, no ginásio, participou de eleição estudantil defendendo programa conservador. Sim, de direita. E que vendeu-se ao deus mercado, quando fez anúncio publicitário para um dos símbolos do capitalismo, a rede de fast food McDonalds.

Sua modéstia realmente causa espanto. Oito anos atrás, quando o documentário foi realizado, ele acumulava uma penca de prêmios na estante, incluindo uma Palma de Ouro em Cannes (com “Ventos da Liberdade”, 2006). Ganharia mais uma com o filme que dirigia naquele exato momento, “Eu, Daniel Blake”. E o prêmio do Júri com “Você Não Estava Aqui” (2019). Mas os prêmios não lhe subiram à cabeça. O cineasta aparece sempre vestido com as mesmas roupas (camisas azuladas e paletós largos), com a cara de gente comum e sorriso sem graça.

Smoking, só em Cannes, que o projetou mundialmente no festival de 1995, ano do centenário do cinema, quando causou furor com “Terra e Liberdade”. Este filme, sobre a Guerra Civil Espanhola, realizado como se fosse um documentário, retirou-o dos contornos territoriais da Ilha, aquela que fôra, tão poderosa, que seus reis não tinham como saber onde o sol se punha. Mesmo “Kes” (1970), hoje seu ‘cult movie’, era um filme de sucesso restrito a seu país de origem.

Ken Loach não precisa se defender (no filme de Louise) das acusações que lhe são imputadas. Para fazê-lo, conta com vozes da grandeza de seu atrevido produtor, Tony Garnet, e dos atores Gabriel Byrne e Cillian Murphy. Este, do elenco do ‘palmaré’ “Ventos da Liberdade”, deve ganhar, ano que vem, o Oscar de melhor interpretação masculina por seu magistral trabalho em “Oppenheimer” (se cuida, DiCaprio!).

O diretor britânico, convenhamos, poderia ter ganho a cobiçada láurea de Cannes com “Terra e Liberdade”, mas trombou com o anárquico e compulsivo “Underground”, de Kusturica. O festival francês pagaria a dívida, com juros e correção monetária, nos anos vindouros.

Tony Garnet, que produziu os primeiros filmes de Loach – muitas vezes driblando o cauteloso comando da BBC –, tem a força de um exército para defender o amigo. Com sua voz firme, ele garante: “Ken Loach é o realizador de esquerda mais subversivo que este país já conheceu”. E, acrescenta, escorado em sua longa convivência com o artista – “ele é um perfeito cavalheiro”, de trato afável, muito calmo.

Byrne e Cillian, este com seus olhos muito azuis, enumeram as qualidades do cineasta com imenso respeito e admiração. O colega geracional, Allan Parker (1944-2020) atesta a dedicação de Loach a seu projeto cinematográfico. “Muitos de nós fomos para os EUA e lá fizemos nossos filmes. Ele continuou aqui, incansável”. Mas o documentário mostrará que Loach quebrou pedras. Passou “12 anos sem filmar”. Boa parte deles, decerto, sob o reinado da primeira ministra Margareth Tatcher, neoliberal contumaz e avessa a tudo que fosse sinônimo de incentivo financeiro do Estado, tanto no terreno econômico, social ou cultural.

Alguém lembrará, em “Versus”, que Ken Loach é amado na França. “Os franceses o festejam, o adoram, o premiam”. E ele corresponde a tanta devoção: segue fazendo filmes críticos, econômicos, solidários com os trabalhadores. E, para encantar o país dos irmãos Lumière, dedicou deliciosa ficção a Eric Cantona, craque boleiro, nascido na mediterrânea Marselha e ídolo da torcida do Manchester (“À Procura de Cantona”, 2010).

O cineasta britânico ama o futebol e tornou-se devoto da Seleção Brasileira, a que venceu o tricampeonato mundial em 1970. A ponto de vestir o proletário Joe (Peter Mullan) com singela imitação da camisa canarinho. O filme (“Meu Nome é Joe”, 1998) se passa num bairro pobre de Glasgow, na Escócia, e tem como protagonistas dois proletários. Foram homens vindos das classes trabalhadoras os personagens notabilizados pelo movimento que, no final dos anos 1950, início dos 60, renovou o cinema britânico. Loach sequenciaria, a seu modo e com persistência (e paciência) de monge tibetano, os “kitchen sink dramas” (filmes “pia de cozinha”).

Historicamente, o cinema britânico dedicava-se a histórias de reis e rainhas. A turma da New Wave britânica e do Free Cinema só queria saber de dramas proletários, de gente vinda dos bairros pobres e esquecidos, de gente com baixos salários e problemas de moradia.

Loach era filho de pais humildes e conservadores. Por sorte, muito estudioso. A ponto de ser aprovado para cursar Direito numa das mais respeitadas universidades da elite inglesa: Oxford. Terminou o curso, mas avisou aos pais: ia seguir carreira de ator. O velho quase teve um colapso. O advogado recém-formado resultaria em um ator sem brilho. E num diretor de teatro que “não dirigia bem, nem se fazia notar”. Mas no cinema – primeiro em dois telefilmes da BBC – encontrou seu caminho. Um caminho notável.

Outra voz importante no documentário de Louise Osmond é a da dramaturga e roteirista Nell Dunn, hoje com 87 anos. Ela era filha da alta classe média londrina, vivia confortavelmente no elegante Chelsea, quando decidiu assumir vida proletária. Mudou-se para bairro pobre e empregou-se numa fábrica. O segundo dos dois primeiros telefilmes de Loach – “Up the Junction”, de 1965, e “Cathy Come Home” (1966) – a teria como fonte literária. Ambos foram protagonizados pela jovem Carol White (1943-1991). A atriz protagonizaria, também e em parceria com Terence Stamp, o primeiro longa-metragem feito para o cinema pelo jovem cineasta: “Poor Cow” (“A Lágrima Secreta”, 1967).

Nestes três filmes, Carol White representava moças pobres, envolvidas com questões familiares, sexualidade, aborto, problema de moradia, violência e sistema carcerário.

Tony Garret, sempre ele, lembrará o triste destino da linda atriz revelada por Loach: ela morreria nos EUA, aos 48 anos, desajustada profissionalmente e envolvida com consumo de drogas pesadas.

Outra voz importante de “Versus” é a de Jim Allen, trabalhador de Manchester, que se tornaria dramaturgo e importante colaborador de Loach. O documentário ficaria incompleto se esquecesse de convocar a participação de outro inseparável parceiro do diretor de “A Parte dos Anjos”, o advogado, ator e roteirista Paul Laverty, de 66 anos. Depois de interpretar um brigadista internacional em “Terra e Liberdade”, a amizade entre o diretor e o jovem britânico, nascido na indiana Calcutá, tornou-se sólida como um carvalho.

Laverty casou-se com uma “brigadista” de “Terra e Liberdade”, a atriz (e depois diretora) espanhola Iciar Bollaín. Estão juntos até hoje. Ele pesquisa histórias de proletários e despossuídos do mundo e escreve densos roteiros para Loach. Ela dedicou importante livro (“Kean Loach, um Observador Solidário”) ao cineasta, destacando as filmagens de “Terra e Liberdade” e “A Canção de Carla”.

Loach prometeu aposentar-se em 2014, quando completou 50 anos de carreira e contava 79 anos. Felizmente, não cumpriu sua promessa. Com novo triunfo do Partido Conservador, ele resolveu continuar no seu ofício. Realizou, em 2019, “Você Não Está Aqui”. Passada a pandemia dirigiu “The Old Oak” (ainda inédito no Brasil), apresentado em Cannes, em maio último. Foi sua décima-sexta participação no festival francês. Tudo indica que o diretor de “Ladybird, Ladybird” pode figurar no Guiness como – caso raro (ou único) – o cineasta que levou metade de suas realizações ao mais importante festival do mundo.

Versus – A Vida e os Filmes de Ken Loach
Inglaterra, 2015, 93 minutos
Direção: Louise Osmand
Participação: Tony Garnet, Nell Dunn, Gabriel Byrne, Cillian Murphy, Jim Allen, Paul Laverty, Allan Parker.
Onde: streaming Sesc Cinema em Casa – acesso gratuito e sem burocracia, até seis de março de 2024

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