Grande Otelo, que morreria no Aeroporto de Paris, teve no Festival de Brasília seu último palco
Foto: Grande Otelo com Lucélia Santos
Por Maria do Rosário Caetano
A Revista de CINEMA prossegue em sua série de relatos, contendo lembranças cinematográficas ambientadas em festivais ou mostras brasileiros (ou internacionais).
A vigésima dessas lembranças tem o 29º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro como cenário e último palco de uma das mais brilhantes estrelas de nosso audiovisual, o mineiro Grande Otelo.
Em novembro de 1993, Sebastião Bernardes de Souza Prata, o Pratinha de Uberlândia, desembarcava em Brasília para receber homenagem do festival candango. Naquele momento, a capital brasileira sediava o Polo de Cinema e Vídeo Grande Otelo, que ajudava, na medida do possível, a produção nacional a enfrentar crise profunda, vivida desde que o Governo Collor extinguira a Embrafilme e o Concine.
Otelo desembarcou na cidade sorridente. E assim continuou na abertura do festival. Trajando smoking (e um bonezinho branco, para proteger a cabeça, já com fios ralos), posou para dezenas de fotos, e prestou declarações breves às emissoras de TV. Assistiu, no camarote da Sala Villa-Lobos do Teatro Nacional, ao filme “No País das Amazonas” (Silvino Santos, 1922), com música ao vivo, que unia Wagner Tiso à Orquestra Sinfônica Cláudio Santoro. Naquele tempo, o comando do Festival de Brasília dava imenso destaque a filmes históricos, que abriam ou fechavam suas competições. E com acompanhamento sinfônico, caso fossem do tempo em que o cinema não falava.
Sebastião Prata exalava confiança num futuro promissor para o cinema brasileiro, pois passara o vendaval Collor, que tanto desemprego trouxera ao setor. Ninguém imaginaria que, por trás daquela alegria, estava um ator que vivia seus últimos momentos. Inclusive eu, que fiz aquela que parece ser sua última entrevista.
Antes de relembrar as últimas declarações de Otelo a uma repórter, lembremos as circunstâncias de seu encontro com a indesejada das gentes. O cidadão Sebastião Bernardes de Souza Prata deixou o Festival de Brasília em pleno acontecer. Tomou, com seu passaporte em dia, um avião da Varig rumo a Paris. De lá, partiria, em outra aeronave, para Nantes, seu destino europeu (200 km da capital francesa), onde receberia nova homenagem. Seria festejado pelo Festival dos Três Continentes. E assistiria ao clássico “Rio Zona Norte” (Nelson Pereira dos Santos, 1958), escolhido, entre tantos outros de seus trabalhos, pelo comando do festival francês. E com apoio total dele. Otelo tinha o compositor Espírito da Luz, integrante da Escola de Samba Unidos da Laguna, como um de seus maiores papéis, senão o maior (por sinal inspirado na vida de Zé Kéti, amigo e compadre do cineasta).
Só que a morte, no aeroporto parisiense, impediu a homenagem internacional a Grande Otelo. Ele passou mal no avião. Foi socorrido, mas em vão. Morreu 15 minutos depois. Seu corpo foi trasladado para o Rio de Janeiro, cidade que adotou e na qual viveu a maior parte de sua vida. E na qual trabalhou em cassinos, teatros e inúmeros sets, atuando nos dramas da Atlântida pioneira, na conturbada equipe do Orson Welles de “It’s All True”, nas chanchadas da Atlântida de Severiano Ribeiro, passando por produções do Cinema Novo, do Cinema Marginal (ou de “Invenção”, como preferia Jairo Ferreira) e pelas produções embrafílmicas ou independentes.
A entrevista de Grande Otelo ao Jornal de Brasília, que suponho tenha sido a última dele, fundamentava-se em pauta mais que justificável. O festival candango ia girar em torno do pequeno Grande Otelo, sua figura estampava o cartaz da edição número 29 e, no dia da premiação, antes da distribuição dos troféus, o público assistiria ao documentário “It’s All True”, de Bill Krohn e Myron Meisel, responsáveis pela montagem do que sobrara do projeto boicotado e dilacerado de Orson Welles. A empreitada chegou a termo 50 anos depois. E com a fundamental colaboração de Richard Wilson.
A conversa com Grande Otelo se processou tranquila. Ele não era de muitas complicações. Respondia a tudo com objetividade e alguns sonhos. Em momento algum referiu-se a problemas de saúde.
Quando perguntei quais eram seus melhores filmes, aqueles em que pudera desempenhar seus melhores papéis, ele foi sintético. Escolheu “Moleque Tião” (filme desaparecido de José Carlos Burle, 1943), “Assalto ao Trem Pagador” (Roberto Farias, 1962), “Macunaíma” (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e, claro, com entusiasmo único, “Rio Zona Norte”.
Pensei que ele citaria o ladrão intoxicado por gás de “Amei um Bicheiro” (Jorge Ilelli e Paulo Wanderley, 1952), papel coadjuvante, mas daqueles que roubam a cena. Como fazia Otelo, em outro filme — “Assalto ao Trem Pagador”. Como esquecer sua personagem, Cachaça, embriagado claro, que, ao ver passar o enterro de uma criança, diz dolorosas verdades sobre a vida no morro.
Ele deixou “Amei um Bicheiro” de fora e preferiu citar o filme que o revelara e inspirara-se em sua própria vida (Alinor Azevedo escreveu o roteiro de “Moleque Tião”) somando-o ao protagonista do filme de Nelson Pereira e a “Macunaíma”. E justificou seu imenso respeito por dois deles: “Os filmes do Nelson e Joaquim Pedro me deram projeção internacional. ‘Rio Zona Norte’ foi exibido, com imenso sucesso, em Paris, e ‘Macunaíma’ foi mostrado em dezenas de países”.
Apesar da resposta convicta de Grande Otelo, insisti: E “Carnaval no Fogo” (Watson Macedo, 1949), com aquela sequência – também de antologia – do Balcão, na qual você interpreta a bela Julieta, com longas tranças louras, e Oscarito, o impetuoso Romeu?
Otelo contou que gostava muito das chanchadas e filmusicais que fizera com Oscarito, Eliane Macedo, José Lewgoy e tantos outros. Mas, naquela altura de sua vida, aos 78 anos, fazia questão de valorizar os filmes que citara. Especialmente “Rio Zona Norte”, de 1958, escolhido pelo Festival dos Três Continentes para exibição em sua presença.
O ator me contou que estava lançando um livro de poemas, “Bom Dia, Manhã” (TopBooks), e que acompanhava com entusiasmo livros que começavam a contar, com muitas fotos (dele, inclusive), a história do cinema brasileiro. E prometeu que, em breve, ditaria suas memórias a um jornalista.
O assunto que mais o empolgou foi seu “novo filme”, que encontrava-se “em fase de pré-produção”. Um longa-metragem ficcional “sobre Gafieira”, nascido de argumento de sua lavra e que recebera roteirização inicial de Ismar Porto. “Serei produtor e protagonista”, anunciou. “A direção e o novo roteiro, já bem avançado, são de Roberto Moura”. E adiantou algo bem sintético sobre a trama: “trata-se de uma homenagem ao samba, às nossas tradições e à gafieira Estudantina”.
Grande Otelo confessou ter enfrentado dificuldades para levantar fundos, que financiassem seu novo longa-metragem. Mas avisou que tinha uma boa notícia a dar. Estivera, no Hotel Glória carioca, com o ex-governador do Distrito Federal e ex-ministro da Cultura, José Aparecido de Oliveira, e que este, pronto para embarcar rumo a Lisboa, para comandar a Embaixada do Brasil, prometeu tudo fazer para transformar o filme em realidade. Animado, contou que “Aparecido ficara empolgadíssimo com o roteiro” e fizera questão de colocá-lo “nas mãos do presidente Itamar Franco, também hospedado no Hotel Glória”.
Sobre os últimos trabalhos no cinema e na TV, Grande Otelo, que causara sensação na telenovela “Feijão Maravilha” (Bráulio Pedroso, 1979) lembrou-se de um filme e um folhetim. “Creio que meu último filme foi ‘Jardim de Alah’, de David Neves (1988, ou seja, cinco anos antes)”. Depois – recordou: “Ah, uns meninos da Bahia me convidaram para um curta-metragem, do qual me lembro o nome – “Troca de Cabeça” (Sérgio Machado, 1993).
“Na TV Globo” – lembrou – “fiz um pequeno papel, pequeno mas muito bom, em ‘Renascer’ (Benedito Ruy Barbosa, 1993)”. E acrescentou: “por enquanto estou afastado da ‘Escolinha do Professor Raimundo’, mas pretendo voltar a frequentar suas aulas em breve”. Não voltaria. Nem a filmar sua história ambientada na Gafieira Estudantina, nem aos bancos da hilária escolinha de Chico Anysio. Não teve tempo nem para ditar suas memórias a um amigo jornalista.
O Festival de Brasília encerrou sua edição dedicada a Grande Otelo vendo-o jovem (aos 27 anos) e maduro (aos 77) no “It’s All True” wellesiano. E nunca é demais lembrar: o diretor de “Cidadão Kane” ficara fascinado com a ginga, malemolência e talento do “Pequeno Othelo”. O ator, por infelicidade, não pôde assistir à primeira exibição pública em solo brasileiro do documentário, fruto da Política da Boa Vizinhança, que uniria três histórias – uma mexicana (“Meu Amigo Bonito”) e duas brasileiras (a carioca, carnavalesca, e a cearense, sobre jangadeiros). Quando o filme foi exibido, Grande Otelo já habitava sua última morada.