“O Lodo” de Murilo Rubião e “O Pastor e o Guerrilheiro”, relato de Glênio Sá
Por Maria do Rosário Caetano
O cinema brasileiro continua sua árdua caminhada em busca de diálogo com o público perdido durante os anos marcados pela pandemia e falta de investimentos do governo Bolsonaro. Nos últimos meses, foram lançados mais de vinte filmes no circuito exibidor. Os resultados (ver tabela abaixo) mostraram-se desanimadores tanto para os filmes ditos comerciais quanto para os de empenho cultural e de arte (ou “ensaio”, como dizem os franceses).
Nessa quinta-feira, 13 de abril, mais duas produções nativas chegam aos cinemas – o brasiliense “O Pastor e o Guerrilheiro”, de José Eduardo Belmonte, narrativa de construção clássica, e o mineiro “O Lodo” (foto acima), de Helvécio Ratton. Ambos baseados em matriz literária. O brasiliense, em livro de memórias – “Relato de Um Guerrilheiro”, de Glênio Sá. O segundo, “O Lodo”, encontrou sua matéria-prima na obra de Murilo Rubião (1916-1991), grande ficcionista nascido no Carmo de Minas (e falecido em sua Belo Horizonte adotiva 75 anos depois).
O experiente Helvécio Ratton empreendeu em seu nono longa-metragem, com o sólido apoio dos atores do Grupo Galpão (Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Fernanda Viana, Teuda Bara) mergulho onírico no universo do escritor mineiro. Buscou “atmosfera gótica, com algo de kafkiano e sufocante” como o conto originário.
Já Belmonte e sua equipe, em especial o produtor Nilson Rodrigues, recriaram seu ponto de partida – as memórias de Glênio Sá (1950-1990) – com imensa liberdade, sem temer o diálogo com o folhetim. O ex-guerrilheiro paraibano-potiguar morreu jovem, aos 40 anos, em acidente de carro, quando participava de campanha eleitoral pelo estado do Rio Grande do Norte. Deixou suas memórias, que serviram de argumento aos roteiristas. Além do produtor Nilson Rodrigues, a narrativa foi escrita por José Rezende Jr e Belmonte, mas a assinatura final coube à argentina Josefina Trotta. Dois ex-guerrilheiros (José Genoíno, do PCdoB, e Juca Ferreira, do MR-8) deram suas contribuições.
A trama, épica, se desenvolve em três tempos. No começo da década de 1970, quando quadros do PCdoB estabelecem guerra de guerrilhas nas cercanias do Rio Araguaia. No final do milênio (1999 para 2000), quando todos se preparavam para a chegada de um novo tempo. E em 1968, por breves flashbacks, ano em que a UnB (Universidade de Brasília) foi invadida por forças policiais. Um dos alunos da instituição, João (Johnny Massaro), que adotaria o codinome Miguel, tornou-se guerrilheiro no Araguaia. Preso, ele conheceria o pastor Zaqueu (César Mello). Os dois emprestam suas funções ao nome do filme.
O cenário da Guerrilha do Araguaia, que se processou na zona rural de região correspondente aos estados de Goiás e Pará (Tocantins seria criado bem depois, em 1988) transformou-se no inferno do jovem Miguel. Incumbido de determinada missão, o jovem perdeu-se na mata densa e acabou preso. No cárcere, ele conheceu o pastor Zaqueu, de confissão evangélica, preso por engano. Apesar das diferenças ideológicas (um marxista-ateu, o outro religioso), os dois acabariam por entender-se, estebelecendo relação de amizade e marcarando encontro na Torre de TV, no centro geográfico de Brasília. Encontro que deveria acontecer dali a 27 anos, no Réveillon de 2000.
A trama inspira-se em fatos reais, mas foi inseminada com personagens ficcionais, como Juliana (Júlia Dalávia), que interpreta a filha bastarda de um militar (Ricardo Gelli). Num dia de 1999, o coronel suicida-se. A jovem descobre que ele participara da máquina de repressão e tortura montada pelo regime ditatorial. Um conflito de consciência a atormentará. Deverá a jovem aceitar a herança paterna? Mesmo que sua avó (Cássia Kis) necessite de recursos para tratamento de saúde? O filme não esconde seus componentes folhetinescos.
O filme de Helvécio Ratton navega em outros registros. O cineasta mineiro revela a força de atração do conto de Murilo Rubião: “fui fisgado pela naturalidade com que o ficcionista insere o absurdo na vida de seus personagens”, fazendo-o “à maneira de Kafka”. No filme, “há uma tensão crescente entre a narrativa realista e a sucessão de acontecimentos insólitos na vida do protagonista Manfredo (Eduardo Moreira), funcionário de empresa de seguros, sempre preso a funções burocráticas”. Por um lado, “tudo está em seu lugar, a vida parece seguir seu curso normal”. Mas, “por trás dessa normalidade aparente, irrompe o absurdo, com sua própria lógica, e ele nos desconcerta”.
O burocrata Manfredo, sentindo-se deprimido, busca ajuda de um psiquiatra, o Dr. Pink (Renato Parara). Ratton buscou ajuda de L. G. Bayão para juntos escreverem o roteiro. Os dois lançaram mão de diversos gêneros, combinando realismo e fantasia, por entenderem que “sonho e realidade se misturam no filme”, que “as fronteiras entre eles são fluidas, às vezes, quase imperceptíveis”.
“Nossa intenção” – sintetiza Ratton– “foi misturar, em ‘O Lodo’ suspense, humor e horror, colocar o espectador na mente do protagonista”.
O Pastor e o Guerrilheiro
Brasília-Tocantins, 2023, 115 minutos
Direção: José Eduardo Belmonte
Roteiro: Josefina Trotta
Elenco: Johnny Massaro, Cesar Mello, Julia Dalavia, Gabriela Correa, Ana Hartman, Willian Costa, Sérgio Mamberti, Ricardo Geller, Cassia Kis
Fotografia: Barbara Álvarez
Montagem: Zepedro Gollo, Bruno Lasevicius e Belmonte
Produção: Nilson Rodrigues
Distribuição: A2
O Lodo
Minas Gerais, 2023, 94 minutos
Direção: Helvécio Ratton
Roteiro: Helvécio Ratton e L.G. Bayão
Fotografia: Lauro Escorel
Direção de arte: Adrian Cooper
Montagem: Mair Tavares
Elenco: Eduardo Moreira, Inês Peixoto, Teuda Bara, Renato Parara, Rodolfo Vaz, Fernanda Viana.
Produção: Quimera Filmes
Distribuição: Cineart Filmes
FILMOGRAFIA
Helvécio Ratton (Divinópolis/MG, 14/05/1949)
1986 – A Dança dos Bonecos (ficção, MG)
1995 – Menino Maluquinho – O Filme (fic-MG)
1998 – Amor & Cia (fic-MG)
2002 – Uma Onda no Ar (fic-MG)
2006 – Batismo de Sangue (fic-MG)
2007 – Pequenas Histórias (fic-MG)
2007 – O Mineiro e o Queijo (doc. – MG)
2014 – O Segredo dos Diamantes (fic-MG)
2023 – O Lodo (fic-MG)
José Eduardo Belmonte (São José dos Campos/SP, 27/07/1970)
2003 – “Subterrâneos” (Brasília)
2005 – “A Concepção” (Brasília)
2007 – “Meu Mundo Em Perigo” (Brasília-São Paulo)
2009 – “Se Nada Mais der Certo” (Rio de Janeiro)
2012 – “O Gorila” (Rio de Janeiro-São Paulo)
2012 – “Billi Pig” (Rio de Janeiro)
2014 – “Alemão” (Rio de Janeiro-São Paulo)
2016 – “Entre Idas e Vindas” (Rio de Janeiro-Goiás)
2019 – “Carcereiros” (Rio de Janeiro- São Paulo)
2020 – “Alemão 2” (Rio-São Paulo)
2020 – “Auto da Boa Mentira” (Rio de Janeiro)
2022 – “As Verdades” (Rio de Janeiro-Bahia)
2023 – “O Pastor e o Guerrilheiro” (Brasília-Tocantins)
ALGUMAS BILHETERIAS BRASILEIRAS EM 2023
(*) números aproximados
. Desapega………………….
. Bem-vindo a Quixeramobim…………75 mil
. Nas Ondas da Fé…………………………30 mil
. Perlimps…………………………………….15 mil
. Muco, Contradicão na Tradição……..8 mil
**** Produções abaixo (todas com menos de 8 mil espectadores):
. “Me Chama Que Eu”, “Carvão”, “Medusa”, “Mato Seco em Chamas”, “Eneida”, “Porta ao Lado”, “Rio, Negro”, “Segundo Tempo”, “Coração Neon”, “Biocêntricos”, “Vai, Corinthians”, “Quando Falta o Ar”, “Memória Sufocada”, “Um Samurai em São Paulo”, “La Situación”, “Raquel 1:1”, “Além de Nós”, “Noites Alienígenas”, “O Rio de Desejo”