“O Caso Escola Base” revela, no Canal Brasil, caso de linchamento promovido pela Polícia com apoio da mídia

Por Maria do Rosário Caetano

A tragédia que vitimou três famílias brasileiras – e, em certa medida, um cidadão norte-americano – chega nessa sexta-feira, 2 de junho, à programação do Canal Brasil. Trata-se da série “O Caso Escola Base”, em quatro capítulos, dirigida por Paulo Henrique Fontenelle, e produzida por Ariadne Mazzetti.

A Revista de CINEMA assistiu aos quase 180 minutos dessa série documental, como antes assistira ao longa-metragem “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”, de Caio Cavechini e Eliane Scardovelli.

A série, por sua duração, pôde trabalhar ainda com mais profundidade as contradições do rumoroso caso, que arruinou a vida afetiva e profissional de duas famílias – a Shimada (o casal Ishikuro e Maria Aparecida) e Milhin Alvarenga (Paula e Maurício).

Duas outras famílias também acabaram envolvidas em inquérito conturbado, cuja investigação, em nome da Polícia de São Paulo, foi comandada pelo delegado Edélsio Lemos. Mara e Saulo (cujas assinaturas e rostos são poupados na série do Canal Brasil), e o norte-americano Richard Pedisini foram envolvidos na trama e encarcerados.

O casal Mara e Saulo, pais de um aluno da Escola Base, acabou preso como supostos donos de apartamento onde crianças de quatro anos teriam sido fotografadas nuas e abusadas sexualmente.

O norte-americano foi detido e encarcerado – segundo acusação do delegado Edélsio –, porque teria transformado sua casa em centro de produção de pornografia infantil, já que havia fotos de crianças e pré-adolescente nadando nus em sua piscina. Com sua prisão preventiva, o delegado esperava comprovar a ligação do estrangeiro com “a rede de abuso sexual” que transformara uma escolinha infantil do bairro da Aclimação paulistana, em “motel”, “antro de pedofilia” e até em “ponto de distribuição de drogas”. O perueiro Maurício Monteiro de Alvarenga, marido da professora Paula e um dos sócios na escola de educação infantil, foi transformado em “estuprador de crianças”.

O delegado Edélsio Lemos, de pouca experiência, encantou-se com as dezenas de microfones de emissoras de rádio e TV e com os gravadores dos jornalistas que o cercavam naqueles dias de março de 1994. Com base em depoimentos das mães de duas crianças (as jovens senhoras Cléa e Lúcia) e em laudo não-conclusivo de que uma delas havia sido molestada, o policial montou um circo.

A população, revoltada, entrou em transe e estava disposta ao linchamento dos acusados. Jogou coquetel molotov na Escola Base, que seria depredada duas outras vezes. A casa de Maurício e Paula foi, também, depredada e dois bonecos tipo Judas em Sábado de Aleluia foram confeccionados, batizados com seus nomes, expostos, espantados e incendiados.

No longa documental de Cavechini e Scardovelli, a imprensa se fez representar por um jornalista em especial – o repórter da TV Globo Valmir Salaro. Ele foi o primeiro a divulgar a história do suposto abuso sexual de crianças na escolinha da Aclimação. Daí a opção pelo título “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”. O que vemos no filme, além da tragédia dos dois casais proprietários da Escola de Educação Infantil Base, é um verdadeiro psicodrama no qual Salaro se penitencia por não ter desconfiado do delegado, que parecia muito seguro e convicto, e do laudo não-conclusivo, apresentado como fonte digna de toda a credibilidade.

Já a série “O Caso Escola Base”, de Fontenelle – diretor dos longas “Loki”, sobre o Arnaldo Baptista e os Mutantes, e “Cássia”, sobre a roqueira brasiliense –, promove verdadeiro e matizado debate sobre o papel da imprensa no episódio. E da Polícia. Mais daquela, do que desta.

Além dos jornalistas que cobriram diretamente o Caso Escola Base, naquelas terríveis semanas de março e abril, a série mobilizou repórteres e comentaristas que, de fora do circo midiático, perceberam que algo estava errado naquele inquérito. Afinal, ele não dava voz aos acusados. Nem apresentava provas consistentes.

Como observará, em sua participação na série, Florestan Fernandes Jr, da TV Cultura, o delegado trabalhava munido de “muitas convicções” e “poucas provas”. Foi o filho do sociólogo e professor da USP Florestan Fernandes o primeiro a entrevistar o casal Shimada e Paula Milhin. O marido desta, o perueiro Maurício Monteiro Alvarenga, estava tão apavorado, que temia aparecer, ser preso e vítima de curra no cárcere. Sim, pois era dado como estuprador de crianças de quatro anos.

Depois de muita negociação e cuidados, Florestan Jr conseguiu entrevistar também o perueiro. Outro jornalista que desempenharia papel importante seria Luís Nassif. Em comentário no Jornal da Band, ele questionou a cobertura que a mídia vinha dando ao caso. Em seu sólido depoimento à série, Nassif lembra que era colunista econômico da TV e rádio Bandeirantes, mas que frente a tudo que assistia, estupefato, pediu licença aos telespectadores, para opinar sobre um caso policial, o da Escola Base. Solicitou mais rigor nas apurações, mais provas e menos convicções.

O secretário de Segurança de São Paulo viu por bem, frente a novas cobranças, trocar o delegado e solicitar inquérito mais consistente, baseado em provas. Entrou em cena o experiente delegado Gerson Carvalho, que começou do zero. E contratou uma psicóloga (Marylin Tatton Alli) para brincar com as crianças, que eram a base das acusações feitas pela mães, ganhar a confiança delas e, quem sabe, ajudar a descobrir o que acontecera. Um dia, numa sessão de ludoterapia, o menininho Felipe disse à “tia” Marylin que não podia desmentir-se, pois a mãe dissera a ele que sempre confirmasse o que sofrera na escolinha.

As novas diligências mostraram que o “laudo pericial que atestava a sevícia sexual” era um mero telex muito pouco conclusivo. Procedimentos legais adotados – como ouvir todos os implicados – começaram a destruir as “convicções” do ex-delegado do caso, o policial Edélsio Lemos.

Os depoimentos captados por Fontenelle para sua série documental são enriquecedores. Em especial os dos jornalistas Marcela Matos, Fátima Souza, Alex Ribeiro (autor do livro “Caso Escola Base – Os Abusos da Imprensa”), de Renato Lombardi, Valmir Salaro (que não foge do tranco e se penitencia no ar), Heródoto Barbeiro, Luis Nassif, Florestan Fernandes Jr e, até, Boris Casoy.

Dois depoimentos enriquecem a série: o do então editor do Diário de São Paulo, Miranda Jordão, e de seu repórter policial Antônio Carlos Silveira. Este chegou à redação, naquela Semana Santa, com uma “bomba”: o Caso Escola Base. O chefe ouviu a história e ordenou: “nada será publicado, pois essa história não se sustenta”.

O repórter ficou frustrado. Como os colegas iam publicar tudo no dia seguinte, ele seria “furado”. Ou seja, seu veículo não conteria a notícia mais quente daqueles dias santificados. Mesmo sendo um jornal popular, que dava espaço nobre a notícias criminais, Miranda Jordão não deixou que se publicasse nada naquele dia, nem nos seguintes. O tempo daria razão a ele.

Até o poeta Fernando Pessoa é evocada na estrutura dramática de “O Caso Escola Base”. Frase de sua lavra – “O público não quer a verdade, mas a mentira que mais lhe agrada” – serve de epígrafe ao segundo episódio: “Até que se Prove o Contrário”. O primeiro intitula-se “Semana Santa”.

O terceiro – “O Bode Expiatório” (no caso, o norte-americano Richard Pedisini) – traz este personagem ausente do documentário de Cavechini e Scardovelli. Aos 36 anos, ele, que fora preso como “agenciador de pornografia infantil”, acabaria solto, pois teve como signatários de abaixo-assinado em sua defesa as muitas mães de suas supostas vítimas. Elas também nadavam na piscina dele e viam seus filhos pular nus na água.

O quarto e último episódio – “Verdade e Consequência” – reflete ainda com mais ênfase sobre o papel da imprensa no trágico episódio. E reencontra os sobreviventes dos maus procedimentos da Polícia e dos Meios de Comunicação.

O casal Shimada (Aparecida e o marido já faleceram) é representado pelo filho Ricardo Shimada. Paula, que viu seu casamento ser destruído no vendaval do Caso Escola Base, e suas duas filhas relembram o pesadelo. Estas contam que o pai sumiu da vida delas, mudou-se para o interior e constituiu nova família. Maurício admite que quis romper com o passado. O que implicou no afastamento definitivo de suas filhas mais velhas.

Em um trecho de seu depoimento, a jornalista (e professora de jornalismo) Marcela Matos conta que, nas universidades, o Caso Escola Base é visto pelos alunos como o exemplo mais aberrante dos abusos da imprensa. Luiz Nassif lamenta que o aprendizado advindo do rumoroso caso da Escolinha da Aclimação se mostre deficiente, já que a Lava-Jato usou em suas investigações métodos muito semelhantes e que as grandes redações endeusaram seus responsáveis.

Com fina ironia, Florestan Fernandes Jr já lembrara que o delegado Edélsio Lemos trabalhava com “muitas convicções” e nunca apresentava as provas que dizia guardar sob segredo de Justiça.

 

O Caso Escola Base (2023)
Série em quatro capítulos (45 minutos cada)
Direção: Paulo Henrique Fontenelle
Produção: Ariadne Mazzetti (Mystica)
Onde: no Canal Brasil (em quatro sextas-feiras, às 22h30). Disponibilizados, também, no streaming Globoplay. Reprises no Canal Brasil: aos sábados, 14h30, e aos domingos 11h

Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado (2022, longa documental de 106 minutos)
Direção: Caio Cavechini e Eliane Scardovelli
Onde: Globoplay

One thought on ““O Caso Escola Base” revela, no Canal Brasil, caso de linchamento promovido pela Polícia com apoio da mídia

  • 25 de setembro de 2023 em 11:53
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    Esse caso da Escola Base é mais uma prova concreta de que a imprensa pode destruir a reputação de pessoas de bem. Lamentavelmente.

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