Tocantins traz delegação de 150 integrantes à Gramado para mostrar “O Barulho da Noite” e o abuso infantil

Foto: “O Barulho da Noite”, de Eva Pereira

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado-RS

Ano passado, um “filme ovni” – “Noites Alienígenas”, de Sérgio de Carvalho, vindo do Acre amazônico – triunfou na badaladíssima quinquagésima edição do Festival de Cinema de Gramado.

Agora, outro estado sem tradição cinematográfica e sem estatuetas acumuladas, o Tocantins, quer fazer bonito no festival gaúcho. Seu trunfo é o filme “O Barulho da Noite”, da estreante na ficção Eva Pereira. Tocantinense raiz, a realizadora cercou-se de mulheres (as produtoras Tarsila Jacob e Vânia Catani e a atriz, voz da canção-tema e coautora da trilha sonora, Emanuelle Araújo) e centrou seu olhar em personagem feminina, Maria Luíza, menininha de apenas sete anos (Alícia Santana), que sofre o assombro traumático do abuso infantil.

Para que o filme cause furor em Gramado, o evento gaúcho receberá a maior delegação de um único estado da Federação reunida numa só noite (no Palácio dos Festivais). Elisângela Dantas, programadora do Cine Cultura de Palmas, capital de Tocantins (1,5 milhão de habitantes) conta que o governador do Estado, Wanderlei Barbosa (do partido Republicanos) e seu secretário de Cultura, Tião Pinheiro, virão em caravana para acompanhar a exibição do filme ao lado da diretora Eva Pereira, seu elenco e equipe técnica. O elenco, aliás, conta com – além da cantriz Emanuelle Araújo – nomes famosos como Marcos Palmeira e Tonico Pereira, este no papel de um mascate.

Ninguém tem bola de cristal para saber se “O Barulho da Noite” vai causar o frisson provocado pelo acriano “Noites Alienígenas”, nem o que se passará pela cabeça do corpo de jurados (os atores Letícia Colin e Fabrício Boliveira, a roteirista Elena Soares, a design de som Catarina Apolonio e o cineasta Cristiano Burlan). O filme, temos que admitir, conta com trunfos que calam fundo em nossos tempos de inclusão e afirmação de minorias. 1. Eva Pereira é a única diretora (atenção para o feminino) no Clube do Bolinha da principal competição do festival. 2. Sua temática (o abuso de crianças) mobiliza sensibilidades em escala planetária. 3. O filme vem de estado sem a tradição cinematográfica do hegemônico eixo Rio-São Paulo e de seus satélites mais brilhantes (Pernambuco, Minas Gerais, Ceará e Bahia).

“O Barulho da Noite” mostra a menina Maria Luíza e sua irmã menor, Ritinha (Anna Alice Dias), envoltas no cotidiano de sua família interiorana. Apesar da pouca idade, Luíza será a primeira a perceber que seu núcleo familiar está por um fio. Afinal, ela entende que algo acontecerá, pois sua mãe, Sônia (Emanuelle Araújo), casada com Agenor (Marcos Palmeira), está apaixonada pelo jovem sobrinho Athayde (Patrick Sampaio). O rapaz ajuda o tio nas lides roceiras.

A cor local, os homens montados a cavalo e as Folias de Reis (festejo religioso dos mais recorrentes nos estados do Brasil interiorano), foram captados pela fotografia de Fabrício Tadeu e realçados pela montagem de André Sampaio.

Eva Pereira vê o olhar de Maria Luíza como “o esconderijo de tudo que ela oculta, calada em sua dor silenciada”. Ela deseja que filme seja “a denúncia, um pedido mudo de socorro da menina contra os abusos que sofre, seus anseios e medos”. Após a trama ficcional avançar três anos no tempo, “Maria Luíza perderá brutalmente sua inocência, sob o olhar de Ritinha, a irmã mais nova e sua cúmplice”.

A ministra da Cultura Margareth Menezes, na abertura oficial do festival © Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

FLORADAS NA SERRA

. DOCUMENTÁRIOS E SÉRIES – Hermes Leal, produtor e diretor tocantinense, como Eva Pereira (e, também, editor da Revista de CINEMA) festeja a chegada da ficção “O Barulho da Noite” à principal competição de Gramado, e lembra que o estado amazônico, criado há 34 anos (pelo desmembramento do território de Goiás), tem sido, além de cenário de produções ficcionais como o brasiliense “O Pastor e o Guerrilheiro” (Belmonte, 2022), celeiro de realizações audiovisuais (documentários e séries) de boa aceitação nas plataformas de streaming. Ele já produziu ou dirigiu várias delas, todas ambientadas em solo tocantinense. Caso de “Amazon Fashion”, já exibida pelo Amazon Prime Video e, atualmente, em cartaz no Arte 1.

. CEARÁ EM DOSE DUPLA – Se Tocantins faz sua estreia no Festival de Gramado, o Ceará chega em clima de regresso e dose dupla. Ou seja, tem “Mais Pesado é o Céu”, de Petrus Cariry, na competição ficcional, e “Memórias da Chuva”, de Wolney Oliveira, na competição de longas documentais. Se vencerem em suas respectivas categorias, Petrus e Wolney não farão história por razão muito simples. Em 2019, um filme 100% cearense (“Pacarrete”, de Allan Deberton) fez barba, cabelo e bigode na Serra Gaúcha. Conquistou os principais prêmios e causou frisson semelhante (ou maior) que o causado pelo acriano “Noites Alienígenas”. Não há notícia de desembarque de caravana de políticos e moradores da “terra do sol”, de Padre Cícero e Belchior na Serra Gaúcha.

. O PESO DA DOWNTOWN — A distribuidora de Bruno Wainer, filho de Danuza Leão e Samuel Wainer, também chega em dose dupla a Gramado. O distribuidor, “inimigo cordial” dos festivais (não atribui a eles função de poderosas vitrines de lançamento de filmes), tem dois pesos-pesados na competição gramadiana de longas ficcionais – “Angela”, de Hugo “Elis” Prata, e “Mussum, o Filmis”, de Silvio Guindane. Bruno Wainer busca, em sua faina diária, ampliar o market share do cinema brasileiro em seu próprio (e quase único) território de exibição. Em parceria com Márcio Fraccaroli, da Paris Filmes, Wainer se orgulha de grandes triunfos comerciais. O maior deles: “Minha Mãe é uma Peça”, trilogia milionária do saudoso Paulo Gustavo. Sem a falante e gesticuladora Dona Hermínia (sepultada pela morte precoce de seu criador, vítima da Covid), as bilheterias brasileiras andam “na chon” (para lembrar a Dona Armênia de Aracy Balabanian). “Angela”, sobre o assassinato da ‘Pantera de Minas’ pelo playboy Doca Street, e “Mussum”, um ‘filme do Cacildis’ – ambos pois filiados ao subgênero ‘cinebiografia’ – pretendem tirar os espectadores de casa. Conseguirão?

. GENTE PRETA BRILHANDO EM GRAMADO – Já foi o tempo em que o festival gaúcho parecia sucursal de um festival europeu. Agora, talentos black ocupam posições de destaque e desfilam pelo tapete vermelho, pelo palco do Palácio dos Festivais, pelos júris e elencos e equipes técnicas dos filmes. E pelas salas de seminários e debate. O caso mais notável é o da ministra da Cultura, Margareth Menezes, que abriu, junto com a Orquestra Sinfônica de Gramado, os trabalhos do mais badalado festival de cinema do país. Ao lado dela, a secretária do Audiovisual, Joelma Gonzaga. Além da ministra, marcam presença na Serra Gaúcha, o ator Fabrício Boliveira, integrante do júri de longas ao lado da afro-brasileira Catarina Apolonio; Silvio Guindane, que dirige, e Ailton Graça, que protagoniza “Mussum, o Filmis”. E mais: o cineasta mineiro André Novais Oliveira e o ator-dramaturgo baiano Aldri Assunção, que brilham no júri de curtas gaúchos, e a realizadora e vice-presidente da APAN (Associação de Profissionais do Audiovisual Negro) Janaína Oliveira, presente no júri de curtas brasileiros. Entre os homenageados do festival estão a estrela Léa Garcia (Troféu Oscarito) e a atriz-autora Vera Lopes (Troféu Sirmar Antunes). O saudoso Sirmar, há que se lembrar sempre, elevou o mais alto que pôde (e pôde muito) a ancestralidade afro-gaúcha nos palcos, telões e telinhas brasileiros. Também serão laureados pelo Iecine-Secretaria de Cultura do Rio Grande do Sul (com a distinção O Futuro Nos Une), a cantriz Valéria Barcelos e o artista Jorge Henrique, o Boca.

. COTA DE TELA NO CONGRESSO – Em seu discurso inaugural, a ministra Margareth Menezes (a baiana faz sua estreia no festival gaúcho, definido por ela como “nossa festa do Oscar”) prometeu apoio total ao audiovisual brasileiro. Depois de lembrar que usou os primeiros meses no cargo para reconstruir o MinC (“o fizemos com 20% a menos de nossos quadros funcionais históricos”), a soteropolitana avisou que a ansiada volta da Cota de Tela (reserva de espaço para exibição de filmes brasileiros) entrará na pauta do Congresso Nacional semana que vem. “O Parlamento brasileiro” – assegurou a ministra – “é sensível ao projeto do senador Randolfe Rodrigues e deverá atender a este importantíssimo anseio do setor audiovisual”.

. LEI PAULO GUSTAVO E O AUDIOVISUAL – A ministra da Cultura lembrou, ainda, que a Lei Paulo Gustavo, criada pelo Congresso Nacional, investirá, esse ano, “valor histórico” no fomento cultural. E que “a produção audiovisual terá espaço nobre nestes investimentos”. Bem-humorada, MM, em sua aparição-relâmpago (dali a instantes regressaria à Brasília), avisou que “estamos com apoio total do presidente Lula, retomando todos os projetos interrompidos pelo governo passado”, aquele que “pôs fim ao MinC” e encarou “a cultura como ‘pum de palhaço’”. Ao citar e saudar a lista de autoridades presentes, a ministra-cantora brincou com os sobrenomes do regente da Orquestra de Gramado (Wainer, “nome de maestro, mesmo!”) e de políticos gaúchos e gramadenses, muitos de difícil pronúncia. “Que beleza, isto é o Brasil em sua diversidade, soma de tantas influências e tecnologias de sobrevivência”. Para acrescentar: “e é isso que nos dá originalidade, nos liberta, não nos oprime”. Por fim, dirigiu afago aos músicos: “chegar a esse palco sob os acordes da Sinfônica constitui alegria imensa para uma cantora. Sonhei conhecer o Festival de Gramado, só que jamais imaginei fazê-lo como ministra de Estado”.

. GRAMADO FILM MARKET – O projeto de fomento a novas produções audiovisuais, mantido pelo Festival de Gramado, tem programação das mais intensas. Curso de Vera Zaverusha sobre os Regulamentos Audiovisuais Brasileiros, “Hub de Universidades”, sob o comando do Forcine Sul Audiovisual (sobre Ecossistemas Criativos), parcerias com poderosos players (caso da Netflix, Amazon, Paramount, Circular Media, Encripta, TV Domashniy, BandPlay e Wooho), negócios com os países dos BRICS (focado, dessa vez, na indústria criativa russa), Streaming e Regulação do VOD, fechando com “Cinema, Televisão e Plataformas” (neste a Globo Filmes marcará presença). Como se vê, o Festival de Gramado não vive apenas do frenesi de seu tapete vermelho.

.  XII EDUCAVÍDEO –Pela primeira vez em sua história, Gramado trouxe convidados de vários estados brasileiros para que assistissem aos filmes produzidos pelo Educavídeo. Trata-se de projeto audiovisual de alcance municipal, realizado com alunos (adolescentes) do ensino fundamental. E, este ano, com representantes da comunidade adulta local. Nós, jornalistas, ouvíamos falar no Educavídeo, criado há mais de uma década, todos esses anos. Mas mal sabíamos do que se tratava. O festival de alcance nacional (e até o ano passado ibero-americano) e estadual (com o Gauchão) mostrou, orgulhosamente, sua face municipal. Foram apresentados – e pela primeira vez premiados com troféus Kikito feitos de madeira, como 51 anos atrás – dez curtas-metragens, de ficção e híbridos documentais. Histórias criadas coletivamente, quatro ou cinco de terror e suspense, sobre jovens e seus desejos, tolerância étnica e tolerância sexual (homoafetividade). E, claro, sobre as atrações turísticas da cidade, o Natal Luz em destaque.

O Palácio dos Festivais estava lotado por parentes e colegas dos “cineastas municipais”. Cada prêmio anunciado era tema de vibração (ovação) digna de uma noite de Oscar.

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