“Ó Paí, Ó” traz a turma do Pelô de volta aos cinemas em ritmo de “chanchada moderna”

Por Maria do Rosário Caetano

“Ó Paí, Ó” passou pelos cinemas brasileiros, quinze anos atrás, e causou sensação. Vendeu quase 500 mil ingressos e virou série na Rede Globo. Em sua origem cinematográfica, foi dirigido pela baiano-carioca, hoje radicada em São Paulo, Monique Gardenberg e protagonizado por Roque Bahia (Lázaro Ramos).

O ator, hoje com 45 anos, interpretava aspirante a cantor e construtor artesanal de enfeitados carrinhos de café. Hoje, Lázaro retoma, com entusiasmo militante, o papel nessa trama que serviu para nacionalizar um dos maiores hits do teatro baiano – a peça “Ó Paí, Ó”, do Bando de Teatro Olodum. A expressão, aprendemos, evoca algo como “olhe para isso aí, ó; preste atenção; tome tento!”.

O espetáculo cênico, dirigido por Márcio Meirelles, nasceu coletivamente de vivências e observações das formas de vida cotidiana no coração da velha Salvador, o Pelourinho. Lázaro fôra um dos integrantes do Bando Olodum. Até dedicou à trajetória do grupo seu primeiro longa-metragem – “Bando, um Filme de” – realizado em 2018, em parceria com Thiago Gomes.

Ao firmar-se como astro de telenovelas e do cinema brasileiro, o ator sentiu-se jogando em casa como um dos principais artífices da transformação da peça em filme. E feliz por contracenar com colegas baianos como Luciana Souza, Érico Braz, Tânia Toko, Valdinéia Soriano, somados ao compadre Wagner Moura, a Dira Paes e Stenio Garcia.

Como o primeiro filme deu certo, ele sonhou, sem descanso, com o momento em que reviveria Roque Bahia, sob o comando da mesma Monique Gardenberg. Afinal chegara ao cinema, aos 15 anos, pelas mãos dela, integrando a equipe do primeiro longa de ambos (“Jenipapo”, 1995). A amizade vinha de longe, portanto.

Lázaro e Monique filmaram, juntos, importante sequência para o novo filme (a da Festa de Iemanjá, realizada nas águas atlânticas de Salvador). Mas  “Ó Paí, Ó 2” – estreia dessa quinta-feira, 23 de novembro – tem Monique apenas como produtora (em parceria com Augusto Casé). Quem comanda o filme, como diretora-convidada, é Viviane Ferreira, gestora da Spcine e autora do longa-metragem “Um Dia com Jerusa” (2021).

O novo “Ó Paí, Ó” é um manifesto da negritude. Diretora, atores, roteiristas, músicos, em maioria afro-brasileiros, trabalharam em sintonia fina com a Bahia. As locações do filme foram estabelecidas no Pelourinho e no bairro do Rio Vermelho.

O longa originário, realizado década e meia atrás (a quantidade de anos é evocada no começo de “Ó Paí, Ó 2”) ocupava-se, claro, de temas caros à luta contra o racismo estrutural brasileiro.

Tanto que, em sua sequência mais lembrada, os personagens Roque e “Boca” (este interpretado por Wagner Ramos) se confrontavam na oficina do primeiro, trabalhador honesto e generoso. Já “Boca, explorador de mão-de-obra barata (dos vendedores de cafezinho a “cordeiros” dos blocos de carnaval), estava envolvido em negócios ilícitos. O personagem racista teria, por isso, que ouvir poderoso rebate de Roque, construído como paráfrase do “Solilóquio de Shylock“, um dos grandes momentos de “O Mercador de Veneza” (Shakespeare, 1596).

O próprio Lázaro sabe que “o desabafo” de Roque no primeiro filme transformou-se em um marco. Ele lembra que a paráfrase do Solilóquio de Shylock “virou um verdadeiro ícone”, a ponto de “transformar-se em música de Emicida” e ser “compartilhado em redes sociais até hoje”. Basta conferir na internet.

Vale transcrever o trecho do texto shakespeariano, lembrando que a palavra “judeus” é substituída, na narrativa fílmica, por “negros” e que o texto foi condensado:

— “Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos espetarem, não sangramos? Se nos fizerem cócegas, não rimos? Se nos derem veneno, não morremos? E se nos ofenderem, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vocês, teremos de ser iguais também a esse respeito.”

Em outro momento de grande impacto no “Ó Paí, Ó” original, a evangélica Dona Joana (Luciana Souza), enlouquecida de dor, corria em direção aos corpos assassinados dos filhos pequenos (Cosme e Damião), como Anna Magnani fizera no rosselliniano “Roma Cidade Aberta” (1945). Dessa vez (no novo filme) paráfrases e citações cinematográficas cederam lugar a narrativa mais pop.

Wagner Moura não está no elenco do “O Paí, Ó 2”, mas Luciana Souza, a Dona Joana, sim. E com grande destaque. Ela continua evangélica e responsável pelo cortiço onde vivem muitos dos principais personagens do filme. Sem Cosme e Damião, os filhos assassinados, ela “adota” adolescentes com pequenos desvios de conduta, na esperança de levá-los a bons e justos caminhos.

No novo filme, Roque Bahia está prestes a colocar sua primeira música para circular nos mais modernos mecanismos de difusão sonora. Aliás, o mundo digital e as redes sociais ganham, no filme de Viviane Ferreira, o mesmo (e imenso) relevo conquistado nesses últimos 15 anos. O morador do Pelourinho acredita que chegou sua hora de tornar-se um cantor de sucesso.

Dona Joana segue lidando com o luto pela perda de Cosme e Damião e em convivência conflituosa com seus inquilinos no Pelourinho.  A expansiva Neusão (Tânia Toko) perdeu seu bar, importante espaço do Pelô, para comprador coreano, envolvido em tramoia operada por gente de caráter duvidoso.

A segunda geração do núcleo do Pelourinho cinematográfico cresceu. Já adolescentes, eles abraçam a causa negra. E o fazem de forma bem-humorada, com muita música e poesia (destaque para o slam). A se notar que o moleque que interpretava Cosme no longa original, Vinicius Nascimento, hoje crescido, integra esse núcleo jovem.

“Ó Paí, Ó” resulta em um filme coral, que integrantes de sua equipe definem como “uma chanchada moderna, construída com elementos do teatro de revista”. Ou seja, com humor e música. Vários de seus personagens têm seus momentos de destaque. O Roque de Lázaro Ramos já não é mais o protagonista absoluto. Generosamente, o ator divide a trama com seus pares e dedica-se, como um cruzado, a lutar para que este trabalho, pelo qual tanto batalhou, ajude o cinema brasileiro a superar o afastamento de seu público, verificado nos anos Bolsonaro e agravado pela pandemia.

O roteiro de “Ó Paí, Ó”, inspirado no texto (e personagens) de Márcio Meirelles, uniu Elísio Lopes Jr, seu principal artífice, a Daniel Arcades, Viviane Ferreira, Igor Verde, Luciana Souza, Bando de Teatro Olodum e Rafael Primot. Quase um time de futebol.

 

Ó Paí, Ó
Brasil, 2023, 90 minutos
Direção: Viviane Ferreira
Elenco: Lázaro Ramos, Luciana Souza, Tânia Toko, Érico Braz, Valdinéia Soriano, Dira Paes,  Lyu Árisson, Vinicius Nascimento, Rejane Maia, Jorge Washington, Cássia Valle, Edvana Carvalho
Participações especiais: Luis Miranda, Ricardo Oshiro, Clara Buarque e representantes da cena musical baiana, como  Russo Passapusso (BaianaSystem), Margareth Menezes, Tiganá Santana, Guiguio Shewell (ex-Ilê Aiyê), Pierre Onassis (ex-Olodum), Nininha Problemática, o grupo Attooxxa e a cantora Alana Sarah
Fotografia: Lílis Soares
Montagem: Natara Ney e Guta Pacheco
Produção: Dueto e Casé, com co-produção da Globo Filmes e Canal Brasil
Distribuição: H2O

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