“O Sabor da Vida” celebra culinária francesa e o reencontro de Binoche e Benoît Magimel

Por Maria do Rosário Caetano

Juliette Binoche é a nova presidenta da Academia Europeia de Cinema, organismo responsável pela entrega anual do Prêmio Europa. Substitui a cineasta polonesa Agniezka Holland.

Uma das atrizes mais famosas da França, Binoche levou um “chega pra lá” de seus colegas de outra Academia, a Francesa. Os integrantes da instituição atribuíram a seu novo filme – “O Sabor da Vida” (“La Passion de Dodin Buffant”), que estreia no Brasil no próximo dia 28 – apenas três indicações ao César, o Oscar francês.

Para que se estabeleçam termos de comparação: “O Reino Animal”, de Thomas Cailley, recebeu 12 indicações e venceu em cinco, e “Anatomia de uma Queda”, de Justine Triet, recebeu 11  e venceu em seis (incluindo as categorias mais cobiçadas – melhor filme, direção, atriz e roteiro original). E nenhuma das três indicações de “O Sabor da Vida” foi convertida em prêmio.

A disputa entre “Anatomia de uma Queda” e “La Passion de Dodin Bouffant”, dirigido pelo vietnamita, radicado na França (desde os 13 anos), Tran Ang Hung, começou em Cannes. O filme de Justine Triet ganhou a Palma de Ouro e transformou-se em imenso sucesso nacional e internacional. Ao ‘culinária movie’, temperado com tocante história de amor, protagonizado por Binoche e Benoît Magimel, coube – registremos – prêmio de grande importância (a Palma de Ouro de melhor direção).

O que se seguiu, porém, deixou o filme de Tran Ang Hung sob fogo cerrado. Ele ainda conseguiu, pelo voto de comissão indicada pelo Ministério da Cultura, a vaga para representar o cinema francês junto à Academia de Hollywood (na categoria “melhor filme internacional”). Figurou, até, entre os nove semi-finalistas. Mas, os ânimos na França já estavam exaltados.

O maior sucesso internacional do cinema francês contemporâneo – depois do blockbuster “Intocáveis” (Toledano & Nakache, 2013) – acumulava vitórias. Justine Triet e o marido Arthur Harari ganharam o Globo de Ouro de melhor roteiro original. E o filme triunfou, também, na categoria “melhor filme estrangeiro”. Vieram as cinco indicações ao Oscar (e a premiação do casal Triet-Harari como roteiristas). Mais de um milhão e meio de franceses foram assistir à densa e vigorosa anatomia de uma queda (de marido-escritor, morto por acidente, crime ou suicídio). O filme de Binoche e Magimel vendeu 300 mil ingressos. Menos do que “Anatomia” vendeu só no mercado norte-americano (400 mil).

O filme de Tran Ang Hung fez por merecer este papel de “vilão”?

Um crítico exaltado chegou a defini-lo como “o pior filme francês do ano“ (2023).

“O Sabor da Vida” merecia ser eclipsado, em tamanhas proporções, pelo drama que Justine Triet ambientou num chalé nos Alpes e num tribunal da Justiça Francesa?

Antes de irmos ao que realmente interessa (o sétimo longa-metragem do realizador de origem vietnamita), permaneçamos por mais alguns parágrafos no campo extra-filme. Depois avaliaremos as qualidades (ou falta delas) de “O Sabor da Vida”, título já muito gasto pelo cinema e que foge bastante do original, “Le Pot-au-Feu” (nome de prato dos mais conhecidos da culinária francesa, um cozido de carnes, legumes e ervas aromáticas), que foi substituído por “A Paixão de Dodin Bouffant”.

Uma relação matrimonial está presente no filme – Dodin, um chef de cuisine de meia-idade, considerado o “Napoleão da gastronomia”, ama, com todas as suas forças, sua sofisticadíssima cozinheira, a bela Eugénie (Binoche, linda, aos 60 anos!)

Na vida real, a atriz foi mulher de Benoît Magimel, 49 anos. Além de convivência de cinco anos (1999 a 2003), o casal teve uma filha, Hana.

Em entrevista à imprensa norte-americana, Juliette Binoche, que ganhou o Oscar de coadjuvante com “O Paciente Inglês” (Anthony Minghella, 1996), contou que a filha chorou copiosamente ao ver o filme. Emocionou-se com a história e, principalmente, ao ver a mãe e o pai interpretando os apaixonados Eugénie e Dodin.

Juliette e Magimel se conheceram num set de filmagem (“Os Filhos do Século”, 1999), apaixonaram-se perdidamente e foram viver juntos. Veio a separação e eles passaram a frequentar sets diferentes. A carreira dela estourou mundialmente e a dele, então no auge de suas loucuras (incluindo aditivos químicos), parecia menos brilhante. Mas Magimel ganharia a Palma de melhor ator por “A Professora de Piano” (Michael Haneke, 2001), no qual contracenou com Isabelle Huppert (única atriz francesa a fazer sombra a Binoche, já que Catherine Deneuve é hors concours). O tempo foi passando e o ator confirmou seu talento e prestígio. Recentemente, protagonizou e ganhou o César por “Pacifiction”, o belíssimo filme que Albert Serra realizou na Polinésia.

“O Sabor da Vida” nasceu como recriação cinematográfica de livro do escritor suíço Marcel Rouff (1877-1936), escrito em 1920 e intitulado “La Vie et la Passion de Dodin Bouffant Gourmet”.

O protagonista da obra literária é uma criação ficcional: Dodin Bouffant, considerado um dos maiores, senão o maior, chef de cuisine de seu tempo. Ele vive num chateau nos arredores de D’Anjou, no Pays de La Loire. Corre o ano de 1885. Cercado de verde e de mulheres que o auxiliam em suas tarefas culinárias (em especial, a cozinheira Eugénie, a ajudante Violette e, futuramente, a pré-adolescente Pauline, vocacionada para a fina gastronomia), ele inventa pratos irresistíveis. E os serve a um grupo de quatro amigos, entre eles, o médico Rabaz.

O grupo conversa sobre temas diversos, enquanto Eugénie transforma as receitas de Bouffant em “obras de arte”. Os pratos, além de encherem os olhos, impregnam o olfato e deixam o paladar em estado do mais puro prazer. As refeições são regadas com os melhores vinhos e o ritual gastronômico poder terminar com uma “Alasca Assada”, sobremesa nevada e… flambada.

Para sentir o aroma de um prato, Bouffant e seus amigos cobrem a cabeça, formando uma espécie de tenda arábe com imensos guardanapos de tecido. Um dia, o embaixador do “Príncipe da Eurásia” chega ao chateau de Bouffant, para, em nome de Sua Alteza, convidá-lo para ceia muito especial. O chef de cuisine aceita desde que possa levar os amigos.

Contraproposta aceita, o banquete do Príncipe vai durar oito horas, tamanhas são suas etapas, riqueza e ostentação. Claro que Bouffant fará severos reparos à comilança principesca (que nada tem da “Comilança” de Marco Ferreri, filme subversivo que causou furor em 1973).

Aliás, que ninguém espere subversão no filme de Tran Anh Hung. Quem viu “O Cheiro da Papaia Verde” (1993), que o projetou mundialmente, e mesmo “Ciclo”, segundo filme dele (e dos poucos a chegar aos cinemas brasileiros), sabe que o projeto do vietnamita consiste – a se julgar por esses três filmes – na criação de obras contemplativas, com grandes planos-sequência e dilatação do tempo.

As conversas que os comensais de Bouffant travam à mesa farta (regadas pelos melhores vinhos) podem até soar, aos mais cáusticos, como platitudes pour enchanteur la bourgeoisie. Duas tiradas, anotadas ao longo do filme: “Deus criou a água, o homem (criou) o vinho”; “o homem é o único animal que bebe sem ter sede”. E uma citação: “Santo Agostinho diz que felicidade é continuar desejando o que já temos”.

Em conversa com sua amada Eugénie, que se nega a contrair matrimônio com o parceiro amado, Bouffant comenta: “o casamento é um jantar que começa pela sobremesa”. Registre-se que o erotismo no filme é leve, elíptico, contido. Juliette Binoche será vista nua, mas de costas e em cenas banhadas por luzes difusas e muito elaboradas (pelo esteta Jonathan Ricquebourg, em permanente diálogo com a grande pintura da Europa Ocidental).

Ao realizar seu filme, Tran Ang Hung contou com assessoria plena do chef de cuisine Pierre Gagnaire e todos os pratos foram realmente produzidos. Nada é cenográfico. Do tutano no esturjão, passando por linguados e caças finas, e chegando à famosa e minuciosamente preparada Alasca assada (omelette norvegienne picard, no original).

A trama é simples. Dodin ama Eugénie, que há 20 anos trabalha com ele. A auxiliar dela, Violette, tem uma sobrinha, Paulette, que demonstra vocação para a cozinha. Ela leva a menina ao chateau. Esta se encanta com tudo que vê e reconhece os aromas e temperos de cada prato, com desempenho surpreendente. Um prodígio, a garota.

Para que Paulette seja introduzida na casa, Eugénie e Dodin têm que convencer os pais dela, casal de camponeses dedicado à produção das mais finas ervas. Enquanto a permissão não chega, Dodin desfruta com os amigos de banquetes que deixarão os amantes da mais requintada culinária em estado de êxtase. Eugénie, porém, anda sofrendo de pequenos desfalecimentos. As preocupações de Dodin com a saúde da amada só fazem crescer. Ele resolve cozinhar para ela, enquanto aguarda o “sim” matrimonial.

Nossa Senhora do Contexto não tem vez no filme de Tran Anh Hung. Ninguém sabe de onde brotam tantas garrafas de vinho, tantos ingredientes, tanto requinte, se, pelo que nos é permitido ver, o chateau só é frequentado pelos quatro amigos de Dodin.

A crítica francesa, em parte, foi dura com o filme. Cahiers du Cinéma ainda lhe atribuiu duas estrelas, mas Le Monde e Les Inrock reduziram suas cotações a uma só. Houve, no entanto, veículos importantes que gostaram: Bande à Part, L’Humanité, do Partido Comunista, Le Point, Première e Paris Match. Todos cravaram quatro estrelas. O Libération cravou três.

E bem antes do duelo com o poderoso (e excelente) “Anatomia de uma Queda”, já havia exaltados “causadores” esculhambando o filme, tachando-o de machista (“homens na sala e mulheres na cozinha”), de acadêmico e de aborrecido.

Críticas injustas. O filme não tem nem metade das qualidades do premiadíssimo longa-metragem de Justine Triet. Mas machista ele não é. Primeiro, lembremos que a história se passa no século XIX e que, por amor a Eugénie, Dodin irá cozinhar infinitas vezes para ela e ganhará brilho nos olhos ao vê-la saborear os pratos por ele preparados.

“O Sabor da Vida” é um filme delicado, pudico, bonito (até demais!) e sem maiores pretenções. Quer apenas celebrar a culinária francesa. E o faz com protagonistas que podem sorver garrafas e garrafas de vinho e degustar os mais sofisticados pratos. E, para não soar elitista demais, dá inesperado destaque ao pot-au-feu, que está para a culinária francesa assim como nosso prato nacional, a feijoada (ou o nosso esquecido cozido). Dodin promete fazer dessa receita popular (o pot-au-feu, preparado com carnes de segunda, que exigem horas de cozimento) a peça de resistência do banquete a ser oferecido ao Príncipe da tal Eurásia.

Quem tem paciência e ama a gastronomia, que fez a fama planetária da França, vai deliciar-se com “La Passion de Dodin Bouffant”. E encontrar no desempenho de Binoche e de seu ex-marido Magimel uma dupla com muita química. Os desempenhos dos dois notáveis. O mesmo se deve dizer do elenco de apoio. Em especial dos grandes atores que compõem a trupe de comensais do chef de cuisine. Até a jovem Violette e sua sobrinha Pauline encantam os olhos do espectador. Timaço.

 

O Sabor da Vida | La Passion de Dodin Buffant
(França, 2023, 127 minutos)
Direção: Tran Ang Hung
Elenco: Juliette Binoche, Benoît Magimel, Galateia Dellugi (Violette), Bonnie Chagneu-Ravoir (Pauline), Emmanuel Salinger (Dr. Rabaz), Patrick d’Assumção (Grimaud), Frédéric Fisbach (Beaubois), Jean-Marc Roulot (Augustin), Jan Hammenecker (Magot), Mhamed Arezki (o Príncipe da Eurásia), Yannik Landrei e Sarah Adler (pais de Pauline)
Fotografia: Jonathan Ricquebourg
Distribuicão: Diamond Films

 

FILMOGRAFIA
Tran Ang Hung (Da-Nang, no Vietnã, em 23 de dezembro de 1962, radicando-se na França aos 13 anos)

1993 – “O Cheiro da Papaya Verde” (Prêmio Caméra d’Or, em Cannes, e indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro). Primeiro filme de sua Trilogia Vietnamita
1995 – “Ciclo” (O Ciclista) – Leão de Ouro em Veneza – Segundo filme de sua Trilogia Vietnamita
2000 – “À la Verticale de l’Été” (fecho de sua Trilogia Vietnamita)
2008 – “Je Viens Avec la Pluie” (thriller produzido pela Espanha com elenco internacional, vindo de Hollywood e da Ásia – inédito até na França)
2011 – “La Balade de L’Impossible” (“Como Na Canção dos Beatles: Norvegian Wood”, produção japonesa)
2019 – “Éternité” (com Audrey Tautou, Bérénice Bejo e Mélanie Laurent)
2023 – “O Sabor da Vida” – Melhor direção em Cannes e indicado ao Oscar pela França

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