Cinema brasileiro dá adeus a Vladimir Carvalho, o “Vertov da caatinga, o Rossellini do sertão”

Foto © Mariana Alves/Iphan

Por Maria do Rosário Caetano

Vladimir Carvalho, o cineasta paribano-candango, que Glauber Rocha definiu como “o Dziga Vertov da caatinga, o Rossellini do sertão”, morreu em Brasília, vítima de infarto, três meses antes de completar 90 anos.

O documentarista, nascido em Itabaiana, na Paraíba, em 31 de janeiro de 1935, e radicado em Brasília desde o final da década de 1960, dedicou a maioria absoluta de seus quase 90 anos ao Brasil. E quase 70 deles ao cinema brasileiro. Em especial, ao documentário, sua razão de viver.

Por sorte – ou militância política – estava no lugar certo, na hora certa. Ou seja, nas equipes de dois filmes seminais: “Aruanda”, de Linduarte Noronha (1960), e “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho (1964-1984), iniciado nos primeiros meses de 1964 e só concluído vinte anos depois. O golpe militar de 1964 desmantelara a equipe que filmava no Nordeste. Vladimir foi, também, assistente de Arnaldo Jabor no longa documental “Opinião Pública” (1967).

Repórter que cobriu as Ligas Camponesas, o jovem conheceu de perto a tragédia agrária brasileira, a terra mal dividida. Conheceu, também, as periferias pobres das grandes metrópoles, para onde se mudaram muitos camponeses expulsos pelo latifúndio. Sua Paraíba natal foi fonte permanente de inspiração. Viveu na Bahia e no Rio de Janeiro, mas espaço igual ao da Paraíba, só Brasília ocupou em sua vida de documentarista e professor.

O Nordeste e a capital federal foram, como não poderia deixar de ser, os principais cenários de seus filmes. A UnB, instituição à qual dedicou-se com paixão missionária, permitiu que ele transmitisse a centenas e centenas de alunos aprendizado que somaria amor ao Brasil, ao cinema e à nossa gente.

Nos anos 1970, eu que fui sua aluna, vi muitas sessões de seus curtas reunidos em mostra de nome inesquecível: “Pantasma”. Sim, com “p”. Fôra assim que ele ouvira a pronúncia de homem do povo, por ele filmado. Para aquele cidadão de um Brasil esquecido, a imagem impressa no celuloide era um “pantasma”.

Vladimir assinou, com suas pequenas produtoras, uma delas a Vertovisão (era apaixonado pelo cinema soviético e por Dziga Vertov), dezenas de curtas e médias, e apenas nove de seus longas-metragens.

Entre eles, há obras fundamentais como “Conterrâneos Velhos de Guerra”, “Vestibular 70”, parceria com Fernando Duarte, “A Pedra da Riqueza”, “Paisagem Natural”, deliciosamente conhecido como “Goyanikatsi, e “O Engenho de Zé Lins”. Neste filme, sobre o escritor José Lins do Rego, Vladimir registrou relato inesquecível do escritor Thiago de Mello. O amazônida contou que ele e Zé Lins, já muito doente, examinavam as fezes do romancista. Nelas, os dois buscavam sinais de que o ficcionista estaria melhorando. Maior prova de amizade, difícil encontrar.

Outros grandes nomes do Nordeste — o escritor e político paraibano José Américo de Almeida e o pintor pernambucano Cícero Dias — estiveram no centro das atenções do cineasta e cidadão Vladimir Carvalho. A eles dedicou dois importantes longas-metragens, ambos de títulos inesquecíveis: “O Homem de Areia” (ao autor de “A Bagaceira”) e “O Compadre de Picasso” (ao artista visual). O paraibano-candango sabia dar títulos criativos aos seus documentários. Ele que nunca, nunca mesmo!, quisera fazer cinema ficcional.

FLASHES DE UMA VIDA

. Dona Elizabeth Teixeira — Vladimir era um impetuoso jornalista e jovem aspirante a cineasta (codirigira, com João Ramiro Melo, o curta-metragem “Romeiros da Guia”/1962). Caberia a Coutinho integrá-lo à sua equipe, tão logo chegasse à Paraíba. O que foi feito. Vladimir tornou-se assistente de direção do “Cabra Marcado para Morrer”. Os trabalhos começaram em um engenho pernambucano (o clima em Sapé estava tenso demais) e se desenvolviam bem. Todos estavam animadíssimos com o projeto. Mas veio o golpe militar de 1964 e a equipe do filme, acusada de estar a soldo de Cuba e do comunismo internacional, teve que esconder o material filmado (poucas sequências) onde fosse possível. A missão que coube a Vladimir foi das mais curiosas: esconder, para impedir que ela fosse presa, a protagonista feminina do filme, Elizabeth Teixeira. O documentarista relembra o que fez naquele alvorecer de abril de 1964: “arrumamos roupas, batom, rouge e outros itens de vistosa maquiagem para transformar Elizabeth numa ‘mulher da vida’. Ou seja, numa prostituta. Foi assim que ela chegou a uma cidadezinha do Rio Grande do Norte, onde, com nome falso, viveu de lavar roupa e dar aulas particulares para meninos da vizinhança. Ela só voltaria a assumir seu nome civil (e real) quando Coutinho a procurou, no começo dos anos 1980, para a segunda fase de “Cabra Marcado para Morrer” (já transformado em projeto documental).

. Rio-Brasília – Vladimir Carvalho viveu por um período curto em Salvador. Estudou Filosofia e foi colega, entre outros, de Caetano Veloso. Foi assistente de direção de Olney São Paulo, no filme “O Grito da Terra” (1964). Antes de chegar a Brasília, cidade que adotou no final dos anos 1960, passou pelo Rio de Janeiro. Trabalhou com Arnaldo Jabor em “Opinião Pública” e se virou em pequenos empregos. Até que surgiu a oportunidade de trabalhar, a convite de Fernando Duarte (fotógrafo da primeira fase de “Cabra Marcado para Morrer”), na UnB. Realizaram juntos um belo (e premiado) ensaio poético sobre as angústias dos que tentavam ingressar no ensino superior: “Vestibular 70”.

. No País de São Saruê — A carreira cinematográfica de Vladimir engrenou e ele voltou ao Nordeste para realizar seu primeiro longa-metragem: “O País de São Saruê”. O filme foi selecionado para o Festival de Brasília, mas acabou interditado pela Censura. Só foi liberado em 1979, quase dez anos depois. Na UnB, tornou-se professor muito estimado por seus alunos, futuros jornalistas (ou cineastas). O mais famoso de seus filmes — “Conterrâneos Velhos de Guerra” (1991) — soma duas regiões amadas (o Nordeste e o Centro-Oeste). Neste filme, de mais de três horas de duração, ele narra uma “epópera” (soma de epopeia e ópera popular) para falar dos nordestinos (os candangos) que chegaram ao Planalto Central com a missão de construir uma “Tebas moderna”. Ou seja, Brasília, a nova capital da República.

. O filme da UnB invadida — Vladimir gostava de dizer que “Barra 68” tinha (tem) um herói (Darcy Ribeiro), um mártir (Honestino Guimarães) e um coro grego (as múltiplas vozes dos que dão seus testemunhos sobre a invasão militar ao campus da Universidade, em 1968. Em debate digital, um dos convidados, Dermeval Netto, acrescentou: e “um vilão: José Carlos Azevedo”, o vice (e depois) reitor da UnB . Vladimir lembrou a origem do filme: recebera um rolinho em película, de apenas três minutos (com imagens da invasão) das mãos do cineasta Miguel Freire (filmagens feitas por Hermano Penna). E que outras imagens do filme (Jean-Pierre Léaud participando de palestra na UnB, no momento em que filmava “Os Herdeiros”, de Cacá Diegues) estavam em algum lugar na mesma Universidade de Brasília. Ele supunha que o registro de Léaud fosse de autoria do saudoso professor e diretor de fotografia germano-brasileiro Heinz Forthman.

. “Rock Brasília”, o vencedor de Paulínia — Vladimir lembrava o evento: “o Festival de Paulínia foi em rápido período o objeto de desejo de todo cineasta brasileiro e no meu caso sair vencedor valeu como uma injeção de ânimo, um alento enorme para continuar filmando. Pena que o projeto do festival e todo o complexo que o abrigava, o teatrão construído e os estúdios foram pro vinagre por problemas de ordem administrativa”. Com relação ao “Rock Brasília” dizia: “o filme fez razoável bilheteria, com o apoio de boa crítica, para minha alegria, que tenho por ele especial carinho. Alguns cobraram mais música para o seu entrecho, porém a linha que adotei foi contar a história da rapaziada e não me arrependo. Foi uma experiência inesquecível e eu jamais cogitei de realizar um “musical”.

. Eterno sertanejo nordestino — Sertanejo miúdo e pleno de energia, militante político da vida toda, Vladimir somou 16 curtas-metragens, um média (“Aula-Espetáculo de Ariano Suassuna”) e nove longas. Aos amigos que o convocavam para novas homenagens, quando completou 80 anos, ele só fazia um pedido: que sua estada fosse breve. Afinal, necessitava colocar termo nas filmagens da trajetória brasileira (nordestina) e europeia (parisiense) do pintor Cícero Dias (1907-2003). O Nordeste não saía de dentro de Vladimir. Foi parte constitutiva de suas carnes e pensamentos.

 

FILMOGRAFIA

LONGA-METRAGEM

1979 – O País de São Saruê
1981 – O Homem de Areia
1984 – O Evangelho Segundo Teotônio
1991 – Conterrâneos Velhos de Guerra
2000 – Barra 68 – Sem Perder a Ternura
2006 – O Engenho de Zé Lins
2011 – Rock Brasília, A Era de Ouro
2017 – O Compadre de Picasso
2019 – Giocondo Dias – Ilustre Clandestino
2020 – Águas do São Francisco (nome de trabalho inacabado)

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