Restauração de “Corisco & Dadá” renova a imaginação do sertão nordestino

Por Arthur Gadelha

“A memória é muitas vezes um fogo queimando a alma da gente. Tem coisa que a gente vê e não esquece nunca”, declama sem esconder o olhar padecido enquanto a luz dormente do sol toca um lado do seu rosto. Ela está cercada de jangadeiros que, à beira da praia, escutam atentamente suas últimas palavras sobre uma história tão carregada de coragem e tragédia. Mesmo tão simples, essa sua imagem encarando a câmera e nos fazendo de cúmplice num fim de tarde, é também impossível de esquecer.

Reassistir ao clássico “Corisco & Dadá” quase 30 anos depois da sua estreia, agora em cópia restaurada 4K e num Brasil distante daquele que vivia o entusiasmo da retomada mesmo ainda tão perto do autoritarismo, é uma experiência que emociona justamente quando se olha para o tempo e percebe que essa história, seus sons e imagens ainda parecem não terem dito tudo.

À disposição desse sentimento, a restauração só evidencia a sofisticação da linguagem que nos anos 1990 já era impressionante – a decupagem dos planos, os enquadramentos, a música, a narração, o ritmo da montagem, a cenografia e até a atuação num “filme de cangaço” que não tentava copiar qualquer outro, apesar das referências indesviáveis, elaborando uma originalidade que ainda se mantém influente.

Perambulando pelo sertão do Ceará e Pernambuco, esse grupo de anti-heróis marcha na direção contrária da polícia enquanto estabelece seu poder, contraditoriamente, escondendo-se por entre os galhos secos, o chão rachado e o sol a pino. Embora seja do costume dos personagens, aquele ambiente parece ainda mais sufocante na fotografia do Ronaldo Nunes nesta nova cópia. Além da dimensão de um sertão “sem fim como o mar”, o verde raro das folhas que brilha em meio à seca e o céu azul que pesa de tão limpo, sem nuvem ou centelha de chuva. No rosto de Chico Diaz, o suor da fúria. Em Dira Paes, a lágrima de uma despedida. Essas imagens não podem se perder nunca.

Agora, o tempo não passa

Com uma trajetória estabelecida no Cinema Brasileiro, Rosemberg Cariry não é um autor que ficou parado onde começou. Os rodopios de Corisco na sua dança de espadas saltaram para a alegria de “Os Pobres Diabos” (2013) ou até mesmo para a fúria revoltosa do catártico “Notícias do Fim do Mundo” (2019), filmes de volumes completamente distintos que ele continuou fazendo do seu jeito.

O Cine Ceará, hoje um festival ibero-americano, mas que na época tinha recorte brasileiro e recebeu o filme em 1996, neste ano, estampa no cartaz uma foto do seu filme “Siri-Ará” (2008) na celebração dos 100 anos do Cinema Cearense. A escolha de um filme deste século para a homenagem se deu “como forma de celebrar também os autores que permanecem, que atravessam o tempo, ficam, e continuam influenciando os rumos da arte que ajudaram a consolidar”.

Essa declaração também denota um certo mal-estar do cinema brasileiro no pensamento coletivo de distribuição, preservação e restauração que enfrenta seus limites, especialmente num país ainda tão colonizado por culturas estrangeiras. Além de ser visto, como ser lembrado? Desde que retomada após o descaso sem precedentes de um governo inerte que resultou num trágico incêndio, a Cinemateca Brasileira vem se reapropriando dessa missão. Outras organizações também vêm fazendo parte dessa conversa, como o Museu da Imagem e do Som Chico Albuquerque (MIS Ceará) e a Cinemateca do MAM (Rio de Janeiro), que é inclusive apoiadora desta edição de “Corisco & Dadá”.

Numa metalinguagem que invade a discussão desse próprio texto, o filme também reforça o seu manifesto sobre imagens insistentes nos estudos sobre memória e representação. Em dado momento, o personagem de Benjamin Abrahão surge com uma carta de Padre Cícero pedindo autorização para que ele possa filmar o grupo como forma de eternizá-los. Esses negativos foram resgatados, preservados e rodaram tanto, especialmente aquele segundo fascinante em que Lampião baila com Maria Bonita, e aparecem até colorizados no filme “Os Últimos Cangaceiros” (2011), de Wolney Oliveira.

O Futuro Fica

Viajando no tempo, essa oportunidade de rever o filme na tela do cinema e dentro de uma programação comercial encontra suas principais figuras ainda muito presentes nos rumos do Cinema Brasileiro. Neste ano, Chico Diaz esteve em cartaz no circuito alternativo e até mesmo nas salas de shoppings com o acreano “Noites Alienígenas” (2022), de Sérgio Carvalho, e no cearense “Vermelho Monet” (2022), de Halder Gomes.

Dira Paes, depois de também ter marcado a história da televisão na década passada, está chegando aos 40 anos de carreira estreando na direção do seu próprio longa-metragem. Quando esteve em Gramado neste ano, no mesmo festival em que “Corisco & Dadá” foi exibido, ela também falou sobre a ansiedade pelo relançamento, destacando a emoção de olhar para esse passado do lugar em que ela está hoje. Dadá é uma personagem espinhosa, vítima de várias crueldades e que é obrigada não só a aceitar a violência, mas a fazer parte dela.

Até mesmo Rodger Rogério, que faz uma participação pequena no filme, está em evidência pela vitória de Melhor Ator Coadjuvante na mesma edição de Gramado com “Oeste Outra Vez”, de Érico Rassi, um filme sobre a decadência do mundo masculino no interior de Goiás que parece até espelhar a onipresença da violência machista e misógina nesse sertão cearense dos anos 1940. Alceu Valença, que chegou a ser escalado para interpretar Corisco, dirigiu o seu próprio filme sobre Lampião e Maria Bonita, “A Luneta do Tempo” (2014), uma versão naturalmente mais musicalizada.

Imaginar o Sertão: admiração e revanche

O olhar de Rosemberg Cariry para a cultura do interior nordestino, atravessando símbolos e crenças de um povo com a revolta pela escassez da própria terra e de seu governo, ainda permanece tão sincero e visceral neste nosso tempo. A reza do credo ao contrário ou o bode sendo cortado em primeiro plano, por exemplo, parece algo que já não seria feito no cinema de hoje – e está lá, rimando cruelmente com o sangue derramado de si e dos outros.

O fato desse filme ter nascido de depoimentos que a própria Dadá deu a Rosemberg nos faz refletir sobre a autenticidade do gesto em torno de uma “beleza trágica”, como o diretor nomeou. Não se olha para Corisco e Dadá – da realidade e da ficção – com apenas um sentimento. Há admiração e ódio, há deslumbre e tristeza. Mesmo com a avalanche de filmes e séries que tem nos tomado nos últimos anos sob o rótulo popular de “True Crime”, esse filme continua tendo uma aspereza particular sobre o medo e a maldade. “Corisco & Dadá”, seja em 1996, 2024 ou em qualquer tempo, é um filme que arde, que a gente vê… “e não esquece nunca”.

 

Arthur Gadelha é ex-presidente da Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine) e membro da Abraccine, foi curador de festivais como Cine Ceará (CE) e Guarnicê (MA), e integrou júris de eventos como For Rainbow, Noia, Cine Jardim e Cine PE. É autor do site Ensaio Crítico, onde publica críticas, entrevistas e artigos, cobrindo também festivais brasileiros e internacionais. É graduado em Comunicação com pesquisa sobre jornalismo, crítica e cinema brasileiro, tendo também formação em Cinema pelas escolas públicas Porto Iracema das Artes e Casa Amarela Eusélio Oliveira (UFC).

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