Cine Ceará tem noite mobilizadora com poema palestino, “Fenda”, “Maputo” e “Teorema feminino” da Argentina
Por Maria do Rosário Caetano, de Fortaleza (CE)
O longa argentino “Linda” (foto), de Mariana Wainstein, aguardado como um “Teorema feminino”, não decepcionou os espectadores da mostra competitiva, de alcance ibero-americano, do Cine Ceará.
A história de bela e sensual empregada doméstica, que chega para abalar os alicerces eróticos de família burguesa portenha, motivou aplausos calorosos na quinta noite do festival sediado em Fortaleza.
A mesma recepção, muito calorosa, já fôra destinada aos três curtas brasileiros exibidos antes de “Linda” — os paulistas “Os Mortos Resistirão para Sempre”, do inventivo e inquieto Carlos Adriano, e “Maputo”, de Lucas Abrahão, e o cearense, em fina sintonia com a Bahia, “Fenda”, de Lis Paim.
Alunos e professores da Unifor (Universidade de Fortaleza) foram prestigiar “Fenda”, curta que estreou em alto estilo no Festival de Gramado. E lá conquistou reconhecimento do público e o Prêmio da Crítica. E o Kikito de melhor atriz para Edvana Carvalho, intérprete afro-brasileira que vem brilhando em telenovelas da Globo.
Baiana radicada no Ceará, Lis Paim subiu ao palco do Cineteatro São Luiz com uma dezena de integrantes de sua equipe, liderada pela atriz baiana Noélia Montanhas e pela cearense Monique Cardoso.
O público se encantou com o acerto de contas entre mãe e filha, esta interpretada pela também baiana Edvana Carvalho. Diná, a mãe (papel de Noélia) chega a Fortaleza para visitar a filha Marta (papel de Edvana), cientista botânica que vive apartada de suas raízes. Professora universitária, ela aceita receber, com a secura de um deserto, a senhora idosa, que traz na bagagem um aparelho de respiração artificial. O encontro se dá numa casa aprazível, repleta de plantas viçosas e muito verdes. Uma “fenda” profunda separa as vidas afetivas dessas duas mulheres.
O filme, de 23 minutos, soma à sua trinca de ótimas atrizes, belos figurinos, refinada direção de arte e eficiente e poderosa direção de fotografia de Petrus Cariry. Muitos integrantes de sua equipe devem subir ao palco do Cineteatro São Luiz, nessa sexta-feira, para receber seus troféus Mucuripe.
“Os Mortos Resistirão para Sempre”, vigésimo-quinto curta-metragem de Carlos Adriano, recebeu aplausos efusivos quando, no palco, o cineasta defendeu “o fim do genocídio do povo palestino”. Ele lembrou os sofrimentos da população civil da região, “vítima da fúria vingadora do governo de extrema-direita de Israel”, comandado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.
O discurso sintético e corajoso de Adriano poderia cair no vazio se ele apresentasse, em seguida, um filme apelativo ou panfletário. Quem conhece os curtas-metragens do cineasta, a maioria feita apenas com materiais de arquivo, sabe que ele é um cultor do cinema de poesia.
Carlos Adriano define seu “Os Mortos Resistirão para Sempre” como um “cinepoema sobre a atual tragédia Palestina”, construído com filmes brasileiros de 1922 e 1932 (para representar a catástrofe indígena), documentais recentes (vindos de emissoras de TV, como a Al Jazeera e Islam TV), ensaios de Jean-Luc Godard, Hani Jawharieh e Mustafa Abu Ali, declarações de Edgar Morin e Noam Chomsky, e um poema de Mahmud Darwich.
Aliás, são os versos do poeta palestino (Mahmud Darwich – 19 -2008), dedicados aos povos originários dos EUA, que permitem a Adriano estabelecer relações com o extermínio dos indígenas no Brasil, ao longo dos séculos. Ele o faz com imagens reveladoras de filmes de Silvino Santos e do Major Reis.
Em diálogo com Godard, citado no curta brasileiro (de 25 minutos) por dois de seus filmensaios (“Aqui e Acolá”, parceria com Miéville e Gorin, e “Nossa Música) o curta-metragista faz sua profissão de fé no cinema de invenção e dá as costas aos que se preocupam com a ausência de seus filmes nas telas dos cinemas, da TV e do streaming. Isso acontece porque o cineasta brasileiro não se preocupa em adquirir direitos de uso de imagens ou músicas, por seguir a máxima godardiana: “o verdadeiro artista não tem direitos, só tem deveres”.
O diretor paulistano foi além, no debate do Cine Ceará, ao lembrar seus 35 anos de cinema, 29 deles dedicados a filmes construídos só com material de arquivo: “o conceito de apropriação não se aplica aos meus filmes, pois o que eu faço é expropriação”. Afinal, ela renova, reinventa, os sentidos dos materiais usados.
“Meus filmes não estão nos cinemas e nas TVs” — pondera — “mas estão nos festivais e são exibidos no MoMa, em NY, e em grandes museus espalhados pelo mundo”. Quem assistir a “Os Mortos Resistirão para Sempre” ficará tocado pela força das imagens e das palavras proferidas, em especial, por Edgar Morin, filósofo, sociólogo e cineasta francês, de mais de cem anos, que revela sua “perplexidade ao ver filhos dos judeus, vítimas da terrível experiência do genocídio promovido pelos nazistas, se responsabilizarem, hoje, com ajuda plena dos EUA, pelo extermínio do povo palestino”.
“Maputo”, de Lucas Abrahão, é uma ficção de 15 minutos, protagonizada por crianças. Uma delas, de apelido Tatu, é levada por três colegas mais velhos (dois meninos e uma menina) a acreditar que, superando certos desafios, há de tornar-se um “maputo”. Ou seja, “alguém com habilidade de controlar o vento”. Tatu vai desempenhar as mais desafiadoras (e cruéis) exigências do pequeno grupo, em busca de reconhecimento e aceitação.
Abrahão causa espécie com sua trama, que foge da imagem costumeira que temos da infância. Ao invés de inocência, nos deparamos com a violência dos moleques. Mas ao final, a trama assume tom de fábula e, em certa medida, de redenção. Os protagonistas (ainda infantes) desempenham com total entrega seus papéis. E as qualidades técnicas da encenação se fazem notar por sua eficiência narrativa.
O debate de “Linda”, estreia no longa-metragem de Mariana Wainstein, foi dos mais produtivos. Roteirista experiente, com passagens por diversas séries de TV, entre elas a vigorosa “Barrabrava” (Amazon), a realizadora viu seu filme comparado a “Teorema”, de Pasolini, “Parasita”, do coreano Bong Joon-ho , “A Regra do Jogo”, de Jean Renoir e, até, aos filmes protagonizados por Tom Ripley, o recorrente personagem de Patrícia Highsmith.
A diretora argentina não negou as “proximidades temáticas” com os filmes citados. Mas, para ela, o diálogo se dá, em especial, com o ‘cinema noir’ francês. E citou nominalmente o diretor François Ozon.
Ao longo de substantivos e sofisticados 100 minutos, Mariana Wainstein mostra a chegada de Deolinda, a “Linda” do título, a uma bela e confortável mansão portenha. Nela vivem o casal Luísa e Camilo, que prepara festa de Bodas de Prata, e seus filhos Cefi e Nat, na faixa dos 20 anos. Nat namora Blas, rapaz muito estimado pelos futuros sogros.
Caberá a Linda, uma jovem muito bonita, vinda província de San Juan, substituir a empregada-titular, que está doente. Com grandes olhos negros, longos cabelos e seios fartos, estes realçados por blusinhas decotadas, a cativante doméstica vai seduzir a todos os moradores da mansão. E, aos poucos, revelar segredos e fantasias eróticas de cada um deles.
A pegada do filme é feminina. E, com a sutileza dos dramas argentinos, até feminista. É entre as três mulheres (a doméstica-substituta, a mãe e a filha) que atos amorosos ganharão relevo.
Com igual sutileza, serão registradas as relações de poder entre os patrões e a empregada. Eles bebem os melhores vinhos (ela colheu uvas numa plantação san-juanense), eles habitam casa high-técnica embalada ao som de jazz (ela mora num distante e diminuto apartamento e frequenta festas pop), eles andam em carros do último tipo (ela de ônibus), eles vestem roupas de grife (ela, figurinos singelos). E, o principal, os filhos dos patrões viajam pelo mundo (o rapaz tem fixação no Japão). Ela restringe-se ao trajeto Buenos Aires-San Juan, “província lejana”, onde uma parente cuida de sua filha pequena.
A atração que essa moça pobre, mas muito bonita, despertará em cada membro da família a levará a exercer algum tipo de poder sobre eles. Mas o desfecho da história nada terá de banal ou previsível. Se a doméstica consegue desvelar as zonas de sombra daquela família feliz, pelo menos no plano das aparências, o espectador perceberá que os sentimentos e a forças eróticas ali represadas são muito mais complexos do que se possa pensar.
Nenhum personagem será desenhado de forma maniqueísta. Até Linda, a femme fatale, será vista como uma mulher ardilosa, que joga com seu poder de sedução. E os patrões, embora cientes de seus poderes, são mostrados como pessoas simpáticas, estimadas pelos muitos amigos.
O elenco do filme é comandado por Eugenia “China” Suárez, a Deolinda. Julieta Cardinali e Rafael Spregelburd interpretam Luísa e Camilo. A jovem Minerva Casero dá vida a Nat, e Felipe Otaño, a seu irmão Cefi. Agustín Della Corte é Blas, o futuro genro.
Nenhum dos atores de “Linda” será reconhecido pelos cinéfilos brasileiros, frequentadores de sessões dos mais badalados filmes vindos da Argentina. Aqueles (poucos) exibidos no nosso cada vez mais restrito circuito de arte. Eles não estiveram no elenco do filme-coral “Relatos Selvagens”. Ou seja, não figuram na reduzida lista de astros portenhos, liderada por Ricardo Darín e composta com Cecília Roth, Dario Grandinetti, Leonardo Sbaraglia, Guillermo Francela e Gastón Pauls.
Mariana Wainstein contou no debate que os intérpretes de seus filmes “são bem conhecidos na Argentina”. Em especial Eugenia “China” Suárez, atriz de telenovelas, de perfil pop e expansivo. “Tanto que tive que pedir a ela um registro discreto, um caminhar e um gestual nada espalhafatoso”.
Os intérpretes dos patrões “são atores de filmes independentes e de teatro, ambos muito respeitados”. Minerva Casero, atriz e cantora vinda de família de artistas, teve destaque na série “Iosi, o Espião Arrependido”. Ela é tão bonita — comentou a diretora — “que tivemos que neutralizar sua beleza com lentes nos olhos e outros procedimentos”. Felipe Otaño se destacaria no elenco do badalado longa espanhol, “A Sociedade da Neve”. Mas, por tratar-se de filme-coral, seu rosto não ficou marcado na retina do espectador brasileiro.
Nos créditos de “Linda”, aparecem os nomes de seis ou sete roteiristas. O que nos leva a pensar num filme excessivamente construído e, até, genérico. Mariana Wainstein, roteirista de longa carreira, faz questão de deixar claro que os nomes masculinos listados na ficha técnica deram “valiosa colaboração à construção dos personagens masculinos”. Mas que o roteiro filmado foi escrito por ela e duas colegas, portanto, por três mulheres.
O filme já foi lançado na Argentina, recebeu boas críticas e vendeu 30 mil ingressos. Um número que Mariana considera significativo, “já que estamos vivendo um período muito difícil de nossa história cinematográfica”. Claro que a diretora se refere aos tempos de Javier Milei, o presidente neo-liberal que quer cortar, o mais que puder, os subsídios à cinematografia detentora de dois ‘Oscar’ de filme internacional (“A História Oficial” e “O Segredo dos Seus Olhos”).
O Boletim Filme B, editado por Paulo Sérgio Almeida, traz, na edição dessa semana (a segunda de novembro), estatísticas citadas pelos novos comandantes do INCAA (o Instituto de Cinema Argentino), empenhado em mudar os mecanismos de fomento audiovisual.
As regras anunciadas pelo Governo Milei estabelecem que só poderão acessar recursos públicos os produtores de filmes que venderem, no mínimo, 10 mil ingressos. Para tais autoridades, “236 produções receberam, no último ano, subsídios estatais”. Mas “somente 4 deles superam os 100 mil espectadores (caso de “O Jóquei”, o indicado do país ao Oscar), 13 foram além dos 10 mil (caso de “Linda”), 100 ficaram abaixo de 10 mil”, etc, etc.
Mariana Wainstein conta que cineastas e associações profissionais desmoralizaram os números apresentados pelos burocratas de Milei. “Fazemos parte de uma indústria que alimenta centenas de famílias e projeta nosso país no exterior. Esses dados são falsos, são assacados para justificar o triste desastre e abandono que estamos vivendo”.
Testemunho de quem integra equipes de séries exibidas pela Netflix e Amazon. E estreou com um filme que vendeu 30 mil ingressos. Portanto, ela está no segmento que será favorecido pelas novas regras do INCAA. Mas que vê o audiovisual argentino como um projeto de Nação. Não como uma uma forma de “inchar pelotas” (atormentar, ou na gíria portenha, “encher o saco”) de quem quer ver o cinema Argentina brilhando em seu próprio território e fora dele.