A ficção nos tempos de incerteza

Quem tem medo de mentiras?

Por Caio Tseng

Ao final de um filme de terror, os créditos começam a subir, você respira aliviado, o medo se dissipando, a cabeça aos poucos saindo da atmosfera hermética da sala de cinema, imaginando o caminho para casa, voltando a pensar nos demais compromissos e pessoas que te ocupavam antes da sessão começar. Até que você vê, estático no centro da tela, uma mensagem final: “baseado em fatos reais”, e, de uma hora para a outra, como se ressignificando tudo o que se assistiu, aquele assassino passa a ser mais letal, a assombração mais assustadora, ou o monstro mais terrível.

O apelo aos fatos, tanto no cinema quanto na literatura, nunca deixou de ser atraente. Esse medo a mais que sentimos no final do filme — ou, pelo menos, eu sinto —, é efeito dessa etiqueta de “aconteceu de verdade com alguém”, que implica em um acréscimo de valor à narrativa, como se esta fosse superior à ficcional; mais assustadora, mais emocionante. De fato, somos atravessados por essas histórias de um outro lugar; nos aproximamos daquela experiência como se pensássemos: “se aconteceu com alguém é porque poderia ter acontecido comigo”. Mas não apenas somos impactados pelo rótulo dos fatos, como cada vez mais procuramos narrativas ancoradas na realidade, e estas têm ganhado destaque nas telas e no meio literário.

É interessante pensar que, por trás desse apelo, possa existir uma desconfiança em relação à ficção; uma necessidade de se procurar na narrativa laços de realidade que dão um sentido de verdade maior, como se ela por si não se bastasse, e o que foi narrado não se sustentasse sozinho.

Não é estranho, considerando o momento em que vivemos, que se anseie por relatos pessoais; desde as fake news, aos cada vez mais surpreendentes conteúdos produzidos por Inteligência Artificial — o constante sentimento de dúvida ao rolar o feed nas redes sociais. Na dúvida entre o real e o inventado, tudo é posto em cheque. É condizente, portanto, que realmente exista uma desconfiança crescente em relação ao ficcional. Encarando a dúvida diariamente, o que parece é que se prefira ler aquilo que tenha passado pelo crivo dos fatos.

Numa época onde se lê cada vez menos — e o que é lido tem majoritariamente um caráter utilitário —, a literatura, ou melhor, a ficção vem perdendo espaço. Curto de tempo, na era da pressa, é preferível que se tenha um retorno do seu tempo gasto, isto é, que se leia livros que prometam melhorar suas relações interpessoais, sua performance no trabalho, ou que se aprenda novas curiosidades sobre o mundo. Neste cenário, onde se encaixam as mais de 1300 páginas do “Conde de Monte Cristo”? E, mais infelizmente, hoje, para quê se debruçar sobre tantas e tantas páginas de pura ficção novelesca?

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Há pouco menos de um ano, quando o New York Times divulgava a lista dos cem melhores livros do século XXI, podia-se encontrar uma pequena, mas compreensível gafe. Lá estava a “Trilogia de Copenhagen”, de Tove Dilsen, obra publicada nos anos sessenta, e que foi ganhar uma primeira tradução para o inglês depois de mais de cinquenta anos da sua publicação. No Brasil, as memórias da escritora dinamarquesa foram publicadas no final de 2023. O que explicaria, para além do mérito literário da autora, esse resgate tão forte da literatura autoficcional, a ponto do livro ser incluído erroneamente neste século?

Algo parecido foi acontecendo com a escritora francesa Annie Ernaux (foto), premiada com o Nobel em 2022, reconhecida pelo seu projeto literário bem característico, quase “antificcional”, ao se propor trabalhar em cima das suas memórias com uma precisão jornalística. Em especial, a França parece ter sido o epicentro desse boom das narrativas autobiográficas; tanto Ernaux, como Marguerite Duras, tem sido alvo de enorme investimento nos últimos anos — “O acontecimento”, de Annie teve até uma adaptação para as telas em 2021 —, tendo as obras publicadas uma atrás da outra, de maneira periódica; é possível preencher uma estante inteira apenas com títulos superfaturados da Fósforo.

E, se os livros continuam sendo publicados com vigor, é porque existem leitores ávidos por mais tais narrativas. O rótulo de facticidade em grande parte do que anda sendo publicado pelas grandes editoras é um sinal de que, para ser digno de leitura, um romance tem que vir carregado de um testemunho — “olhe, isso não é fruto da imaginação, aconteceu de verdade!”

Édouard Louis, convidado da edição do ano passado na Flip, vem se tornando uma das maiores celebridades no mundo literário atualmente. Nos seus livros, Louis narra a si mesmo e a sua família; esmiuça sua infância, expõe as violências da qual sofreu e denuncia a barbaridade do estado e políticos franceses. Com apenas 32 anos, Louis alcançou um status de grande prestígio no Brasil — nos calçadões de Paraty, o escritor foi constantemente abordado por fãs, como um astro de Hollywood.

Não por acaso, foi na França que pela primeira vez se usou o famigerado termo autoficção, que vem cada vez mais sendo empregado para rotular romances desta natureza. Curiosamente, o termo cunhado por Serge Doubrovsky, que condensa palavras aparentemente contraditórias — a ficção e a autobiografia —, nos leva a pensar que a “narrativa autobiográfica” já não seria mais o suficiente para abarcar algumas obras. Qual seria, então, o sentido da criação desse novo rótulo, que tem ganhado cada vez mais espaço no meio literário? O aparecimento da palavra ficção, no lugar de biografia, nos leva ao entendimento que existe, apesar da proposta de se narrar os fatos, uma margem para a invenção. Assim, ainda que se pretenda ater-se aos acontecimentos tal como se deram, parece que existe algo intrínseco à escrita que insiste em caminhar em direção ao ficcional.

Se de um lado existem aqueles que se propõem a contar algum episódio da sua biografia, outros se veem agarrados ao mais antigo dos instrumentos de quem escreve: a fantasia. As irmãs Brontë são um exemplo sólido da potência do devaneio. Tendo vivido a maior parte da suas vidas reclusas em casa, numa época onde a escrita feminina ainda era impensável, puderam produzir clássicos memoráveis, como “Jane Eyre” e “O morro dos ventos uivantes”; páginas e páginas de personagens profundos e tramas arrasadoras. A literatura não se resumiria, portanto, a ter ou não vivido uma história para contar. É sabido que a ficção não conhece regras. Basta uma conversa pescada na mesa ao lado no bar, ou uma curta cena vista da varanda de um apartamento; uma fagulha é o suficiente para atiçar a imaginação e, quem sabe, dar origem a um fio narrativo. Essa é a sina do escritor: clandestinamente tomar notas silenciosas das mais diversas situações.

Ainda sim, embora Roland Barthes tenha proclamado a morte do autor, é inegável que em qualquer escrita, este inevitavelmente se coloque — a psicanálise já nos mostrou que não há como escapar de nós mesmos. Nesse sentido, cabe pensar que toda escrita é uma escrita de si, que se escreve sobre aquilo que se viveu, direta ou indiretamente. Não é incomum, especialmente quando lemos um texto narrado em primeira pessoa, que se procure rastros do autor. Ainda mais quando se trata de jovens escritores — a partir de onde, além da sua própria biografia, poderia ter surgido uma história? Nessa perspectiva, os personagens não seriam nada além de retalhos e pedaços dele e daqueles que conhece, ou que minimamente ouviu falar, naquela mesa de bar.

Acontece que a questão não é assim dicotômica como parece — verdade ou mentira, vivido ou inventado. Isso porque o próprio ato de narrar é dúbio; sempre se conta a partir do passado, ou seja, naturalmente já distanciado do fato. Quando você pergunta à sua amiga como foi o encontro da noite passada, e ela passa a te contar, em todos os detalhes, com todas as digressões, clímax e arcos, seu relato já é ficção. Não é só uma questão de memória, mas uma característica própria da linguagem — naturalmente se completa as lacunas dos acontecimentos com a fabulação.

O livro “Nós: O Atlântico em solitário”, da Tamara Klink — escritora, velejadora, e outra recente estrela midiática —, é um bom exemplo disso. Ainda que seja, sem dúvida alguma, um diário de uma viagem marítima, com datas, pessoas e lugares precisamente concretos, o relato, por assim dizer, “se perde”. Como a própria autora diz, detalhes são escolhidos à dedo, outros são omitidos. Nesse caso, o que narrar, como narrar? Como dizer o indizível de um horizonte, de um reflexo no oceano?

Enquanto leio seus diários, tenho em mente a seguinte frase de Oswald de Andrade: “A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”. Existe um ficcionista em todo escritor; até nos relatos, por mais próximos da experiência que se proponham a ser.

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Ao discutirmos a desconfiança ou a crise da ficção, há de se levar em conta o que é atribuído ao ficcional. É infeliz, ainda que comum, posicionar o fictício ao lado do falso, do enganoso, quando alguns escritores já tiveram o empenho em desmontar a oposição entre ficção e verdade. Tal relação também é muito cara à psicanálise. Um dos principais conceitos da teoria psicanalítica, a fantasia, se liga intimamente à concepção de ficção. A fantasia é, grosso modo, a história singular de cada sujeito, o modo como se constroi o seu jeito de se relacionar, de viver — em suma, a sua narrativa.

Uma outra acepção desse conceito remete à seguinte máxima de Jacques Lacan: “toda Verdade tem uma estrutura de ficção”. A fantasia também pode ser definida como um enquadramento da realidade, a lente particular pela qual um sujeito vê o mundo. Não haveria apreensão pura e objetiva da realidade, mas, desde o início, o que se tem é sempre uma realidade psíquica. Não faria sentido, portanto, falar numa realidade pré-discursiva, isto é, que não seja mediada pela linguagem. Dessa forma, a ficção estaria longe de algo do falso, ou do enganoso. O fictício, na verdade, seria justamente o que se chama de simbólico.

Tendo isso em vista, a conhecida frase do escritor argentino Ricardo Piglia, “a realidade é tecida de ficções”, corrobora para a ideia de que, em certo sentido, tudo é uma grande ficção, e esta não se oporia à realidade justamente por fazer parte dela — o que imaginamos tem tanto peso às nossas experiências quanto os fatos em si.

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Em um dos seus últimos livros, o francês Emmanuel Carrère diz logo nas primeiras páginas que a literatura é o lugar onde não se mente. Em “Ioga”, Carrère se propõe a narrar uma experiência pessoal, desde a entrada num retiro de silêncio no interior da França, até o declínio e a sucessão de infortúnios que o levaram a uma crise depressiva. Ao longo da narrativa, ele introduz uma série de pessoas que cruzaram seu caminho, intercalando o relato com eventos históricos precisos, como o atentado ao jornal Charlie Hebdo em 2015. A atmosfera do livro — que tem cara e cheiro de não-ficção — nos envolve a ponto de não se questionar absolutamente nada do que está sendo dito.

Embora Carrère não assuma uma postura explicitamente autobiográfica, o contrato é estabelecido, desde o começo, quando autor e narrador coincidem, nos pressupondo um pacto de veracidade: aqui se encontra um relato sobre uma série de acontecimentos que ele — o autor — viveu. Acontece que, nas últimas páginas, para a surpresa do leitor, Carrère faz uma confissão: algumas das principais figuras que fazem parte da história, na verdade nunca existiram, são fruto da sua imaginação. Essa reviravolta, depois de um minuto ou outro de indignação, me abriu um horizonte que nenhum livro tinha me oferecido até então — ao final, realmente pouco importava se aquelas pessoas existiram mesmo. Ainda que, nas primeiras páginas do miolo do livro, abaixo do ISBN, se leia Ficção francesa, “Ioga” é um livro que perturba os limites do gênero literário: seria um romance ou um relato autobiográfico? É, penso eu, uma boa mistura, como toda escrita, situada nessa zona cinzenta de indefinição.

Mas, alguém poderia contestar, ele não disse com todas as palavras que “a literatura é o lugar onde não se mente”? O que seria esse livro, uma grande pegadinha? E o que isso faz do autor, um mentiroso? Em certo sentido, sim. Mas está aí um crime pequeníssimo. É, melhor dizendo, um crime posto, declarado, uma vez que é próprio da escrita de ficção o fazer convencer, puxar o leitor para dentro do livro. Não é justamente essa a magia da literatura? O pacto pressuposto em todo e qualquer romance, entre escritor e leitor, onde quem lê dá um voto de confiança à quem escreve, se deixa levar pelas páginas, comprando cada frase, cada parágrafo. O bom escritor, portanto, seria aquele que consegue enganar suficientemente bem o leitor, fazê-lo crer em todas as suas palavras.

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Há mais ou menos um ano atrás, à época da publicação do meu primeiro livro, eu escutava as impressões de leitura de uma amiga. Um dos contos se passa no Butantã, na Zona Oeste de São Paulo, em um café fictício, entre duas das principais ruas do bairro. A certo ponto da conversa, ela diz: “Caio, eu passo por ali quase todo dia, sabia que eu nunca reparei naquele café?”. Frente àquilo, lembro de sentir algo próximo à uma onipotência infantil; a sensação que uma criança tem ao inventar suas próprias fantasias, porque, assim como, através da brincadeira, ela reordena e cria o mundo à sua maneira, o escritor de ficção nada faz além de brincar com a realidade, por meio das palavras. Era como se, pela escrita, eu tivesse meios de realizar algo concreto; erguer de uma hora para a outra um prédio.

Fato é que eu poderia ter me aproveitado da ingenuidade da minha amiga, deixado a acreditar, pelo menos por algum tempo, que sim, existe ali naquela rua um café, como você nunca viu?, na esquina da Corifeu com a Vital, do lado daquele estúdio de pilates, em frente ao McDonald’s, vê se repara da próxima vez.

O que fiz, no entanto, entre risadas — não consegui segurar nem dois segundos —, foi confessar o meu crime.

Piglia também dizia que a escrita de ficção se passa sempre no futuro, ou seja, trabalha com aquilo que ainda não é. Quando se fabula, misturando elementos da realidade — ruas, espaços comuns e compartilhados por milhares de pessoas —, está se brincando, como num laboratório, com o que o presente poderia ser.

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Natalia Ginzburg abre sua mais importante obra com uma advertência: “Neste livro, lugares, fatos e pessoas são reais. Não inventei nada.” Em “Léxico familiar”, a escritora retrata de maneira romanesca a vida da sua família a partir dos anos 30, na Itália. E ainda que se trate de um livro extremamente verídico, isto é, os acontecimentos, fatos, lugares e pessoas se mostram condizentes com a realidade, como ela mesmo fez questão de dizer, Ginzburg termina o seu prelúdio com uma virada curiosa: “Embora extraído da realidade, acho que deva ser lido como um romance: ou seja, sem exigir dele nada a mais, ou a menos, do que um romance pode oferecer”.

Mas o que um romance pode oferecer?, caberia a pergunta. Se o romance por si não tem essência, e o autor está morto — assassinado por Barthes —, ele pode oferecer absolutamente tudo, só depende de quem o lê. Qual seria, portanto, a intenção da autora ao abrir o livro dessa maneira? Nas suas palavras, há um reconhecimento do que foi escrito ser tão ficcional quanto qualquer outro romance. Ler como se fosse um, apesar dos fatos, é aceitar o caráter ficcional da escrita, o movimento involuntário da mão que escreve em direção à invenção.

Ler, como se lê um romance; com a guarda baixa, sem questionar, querer cobrar dele um compromisso com os fatos. Ao menos na literatura — veja, ainda é preciso se atentar ao rolar o feed —, talvez seja isso que deveríamos pôr em prática. Afinal, pouco importa se o que lemos aconteceu de fato com alguém ou não. Está acontecendo, é fato. E acontece na medida em que os olhos percorrem as linhas. Interrogar, questionar em excesso, seria, citando Compagnon, como “deter-se nos erros de língua de uma carta de amor”.

 

Caio Tseng (1998) é escritor e psicólogo, formado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É autor de Lá, onde os tigres amam, livro de contos publicado pela Editora Patuá em 2024.

 

Referências:

Antoine Compagnon, O demônio da teoria. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão, Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010

Emmanuel Carrère, Ioga. Trad. Mariana Delfini. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2023 Jacques Lacan, O Seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

Natalia Ginzburg, Léxico familiar. Trad. Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018

Ricardo Piglia, O laboratório do escritor. Trad. Josely Vianna Baptista. São Paulo: Iluminuras, 1994.

Tamara Klink, Nós: O Atlântico em solitário. São Paulo: Companhia das Letras, 2023

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