Papagaios-de-pirata perseguem a fama, mesmo que efêmera, em filme de Douglas Soares, um dos concorrentes ao Kikito de Gramado
Foto: Equipe de “Papagaio” © Cleiton Thiele/Ag.Pressphoto
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado (RS)
O cinema brasileiro continua encontrando em nosso cancioneiro popular matéria-prima de grande nobreza, expressividade e comunicabilidade.
No mais inventivo momento de “Papagaios”, de Douglas Soares — segundo concorrente da mostra de longas ficcionais do Festival de Gramado —, a voz de Nelson Gonçalves entoa os versos de “Naquela Mesa“, que Sergio Bittencourt dedicou ao pai, Jacob do Bandolim (1918-1969).
“Papagaios” mostra a complexa relação entre um veterano “papagaio-de-pirata”, Tunico (Gero Camilo), e seu jovem discípulo, Beto (Ruan Aguiar). Tunico vive para aparecer na TV e nos jornais impressos, como figurante de velórios de gente famosa ou coberturas de catástrofes. Posta-se sempre atrás do repórter ou em posições (carregador de caixão, por exemplo) que lhe permitam aparecer com destaque.
O misterioso Beto entrará na vida do solitário Tunico, disposto a tornar-se, ele também, um papagaio-de-pirata. Tão ou mais famoso que o mestre.
O longa-metragem de Douglas Soares — autor também do roteiro (nascido de argumento engendrado com o ator Humberto Carrão) — começa em um parque de diversões. Vemos um jovem com uma arma na mão. Naquele momento, uma arma que não mata, pois seus tiros atingem alvos que garantem brindes.
Com a entrada em cena do personagem de Gero Camilo, soberbo no papel do mais metódico dos papagaios-de-pirata, pensamos tratar-se de uma comédia suburbana. Afinal, o bairro carioca de Caricica transformou-se no reduto dos “aparícios suburbanos”. Em especial pela proximidade geográfica com os estúdios da poderosa Rede Globo, nossa Vênus Platinada.
A comédia continuará presente, mas não será a tônica dominante de “Papagaios”. Douglas investirá, para valer, no suspense. Isso ficará claro para o espectador à medida que o aprendiz Beto (Ruan Aguiar, também em ótimo desempenho) se infiltra no lar do solitário Tunico. Ele ganha, de saída, um quartinho de fundo na modesta casa do veterano papagaio-de-pirata. E a relação dos dois será marcada pela tensão. O filme adotará ingredientes de thriller sombrio.
A sequência cinematográfico-musical banhada pela melodia e versos de Sergio Bittencourt (1941-1979) é notável. Afinal, soma, com grande inventividade, os ótimos desempenhos de seus protagonistas aos sofridos versos “Eu não sabia que doía tanto/ Uma mesa num canto, uma casa e um jardim/ Se eu soubesse o quanto dói a vida/ Essa dor tão doída não doía assim/ Agora resta uma mesa na sala/ E hoje ninguém mais fala no seu bandolim// Naquela mesa tá faltando ele/ E a saudade dele tá doendo em mim”.
Tunico e Beto são vistos, na referida sequência, como se mirassem um espelho. Eles “dançam”, circularmente, um substituindo o outro no primeiro plano. Momento digno do “Prêmio Panda”, criação de Carlão Reichenbach para destacar momentos luminosos do cinema brasileiro.
Tunico, o mais famoso entre os “papagaios-de-pirata” do Rio de Janeiro, tem orgulho de ser o grande representante de sua “categoria profissional”. Por isso, está sempre procurando chances para emplacar novas aparições na TV. E, com o “prestígio” obtido, sonha, até, com a sindicalização dos aderentes a tão exótica opção de vida.
Depois de aparecer em reportagem sobre grave acidente no parque de diversões, Tunico conhecerá Beto, jovem misterioso, e fará dele seu fiel aprendiz. Mas — mostrará o filme — esse encontro revelará facetas ocultas dessa curiosa busca pela fama (num país plugado em mais de 70 milhões de televisores).
O tempo histórico de “Papagaios” precede a era das celebridades internéticas (os chamados “influencers”). A moradia de Tunico parece um casulo congelado no tempo e decorado com vitrola e outros artefatos do passado. E, claro, paredes cobertas de reportagens que registram seu ofício de papagaio-de-pirata. Sem esquecer as fitas com cópias de suas aparições na TV.
Difícil falar do desenvolvimento narrativo de “Papagaios” sem incorrer em spoiler. Como se trata de um filme de suspense, a necessidade de redobrar cuidados torna-se ainda maior. Faz-se necessário constatar que o primeiro longa ficcional de Douglas carrega um risco. O de tornar o espectador refém, pois seduzido, de um dos personagens, dotado de características desviantes. E, destes desvios, brotam consequências gravíssimas. Embora haja, na narrativa, sequência protagonizada por atenta repórter de TV, que aponta (sutilmente) os rumos de possível (e futura) solução judicial.
Frente a essa questão, Douglas Soares, sereno e reflexivo, garantiu à Revista de CINEMA que não quis que determinado personagem do filme fosse visto “como um vitorioso”. Tanto que veremos a sequência em que a repórter de TV começa a perceber e aglutinar as imagens (e coincidências) contidas em suas reportagens.
“Mostramos o personagem” — pondera Douglas — “como se fosse uma marionete, uma pessoa em busca de celebridade, custe o que custar. Mostramos que existe uma estrutura por trás dele. Ele não é apresentado como um supervilão. A repórter de TV, ao examinar em retrospectiva suas reportagens, fica com a pulga atrás da orelha”.
Vindo do cinema documental, Douglas convocou, para seu elenco, personagens reais. Além de Léo Jaime, que interpreta ele mesmo, aparecem no filme as apresentadoras Babi Xavier e Claudete Troiano. As duas subiram ao palco do Palácio dos Festivais vestidas a caráter. Ou seja, como celebridades televisivas.
Completam o elenco os ótimos Marcello Escorel (Russo), Roney Villela (Borges), Ernesto Piccolo (o motorista Clau), Jorge Maya (Matias), Angela Paz (Livia), Flavio Birman (Batista) e Cristiano Lopes (Clóvis). O filme tem fotografia densa e atmosférica de Guilherme Tostes, minuciosa direção de arte de Elsa Romero e eficiente montagem de Allan Ribeiro (sintetizada em apenas 90 minutos).
Curiosamente, o mais carioca dos filmes suburbanos tem produção paulista, da Glaz Entretenimento. Mayra Lucas, uma das produtoras de “Papagaios”, lembrou no debate, que “a Glaz é — e faz questão de ser — uma produtora nacional”. Por isso, produzimos os filmes cearenses de Halder Gomes, a série “Rensga”, de Goiás etc. etc. Por que não produziríamos esse roteiro maravilhoso, que nos revelou um Rio de Janeiro longe dos cartões postais? Foi motivador conhecer esse gigantesco bairro da Zona Oeste. Nosso filme não poderia acontecer em outro lugar que não fosse Curicica”.

FLASHES
PREPARADORES DE ELENCO 1 — No palco do Palácio dos Festivais, durante a apresentação de “Papagaios”, o ator Ruan Aguiar, de 25 anos, um novato na TV e, principalmente, no cinema, fez questão de agradecer à preparadora de elenco Tati Muniz. Até lamentou que tais profissionais, “importantíssimos”, às vezes nem apareçam nos créditos dos filmes. Durante o debate da manhã seguinte à exibição de gala, a Revista de CINEMA perguntou ao experiente Gero Camilo, como ele vê a figura do “coach”. Seria ele um integrante do time formado por Denise Weinberg e Leonardo Medeiros (entre outros), para quem os preparadores de elenco são figuras dispensáveis e, até, nocivas ao processo criativo do ator? Ou defende os métodos e procedimentos, inclusive da mais famosa das “coach”, Fátima Toledo?
PREPARADORES DE ELENCO 2 — Gero, também poeta, dramaturgo e cineasta (“Aldeotas”), fizera, em sua primeira intervenção no debate, um canto triste à sua situação de ator cinematográfico. Lembrou viver 25 anos em renhida “luta de classes”. No time daqueles aos quais cabem os papéis menos importantes, por não ser um ator branco, sudestino e bonito. Cearense, radicado em São Paulo, o artista estava disposto a não mais atuar em filmes brasileiros. Cansado dos preconceitos e estereótipos, já dava o cinema como página virada. Aí apareceu o convite de Douglas, para que interpretasse um protagonista nuançado, complexo. Aceitou o papel e tomou o rumo de Curicica, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Aceitou submeter-se a uma preparadora de elenco, porque sabia que o diretor estaria ao lado dela, nos ensaios.
PREPARADORES DE ELENCO 3 – Gero Camilo contou que, tão logo concluiu a leitura do roteiro, já escolhera o tom que imprimiria ao papagaio-de-pirata Tunico: “eu o concebi em torno das neuroses de Woody Allen. Levei a proposta para Douglas, que a aceitou”. O ator submeteu-se à preparação de elenco, mas sem que métodos invasivos se fizessem presentes. Ao refletir sobre a figura do “preparador de atores”, Gero fez questão de não citar o nome de nenhum “coach” e lembrou a natureza “extremamente delicada” do assunto. “Há tantos jornalistas aqui (no debate), não sei o que será publicado”. Com sua fala articulada e reflexiva, o ator confessou: “já fui submetido a ‘educadores’ (preferiu usar esta palavra no lugar de ‘coach’) dos quais desejo passar a léguas de distância. Defino o trabalho deles como bruto, abusivo, violento e castrador”. Capaz de “trazer mais traumas que resultados”. Para arrematar: “prefiro estabelecer relação direta com o diretor”.
LÉO JAIME DE VOLTA A GRAMADO — O compositor e cantor Léo Jaime representa “ele mesmo” na trama de “Papagaios”. Ou seja, interpreta um famoso cantor de rock, prestes a receber homenagem da Escola de Samba União do Parque Curicica (de existência real, participante da Série Bronze do carnaval carioca, espécie de Grupo 4). Bem-humorado, Jaime lembrou sua passagem pelo festival gaúcho, quatro décadas atrás, junto à trupe de Ivan Cardoso, pois compusera a trilha sonora de “As Sete Vampiras” (1986). “Também pensei que minha carreira no cinema havia acabado. Afinal, ‘As Sete Vampiras’ está fazendo 40 anos. Mas ao ser convidado para interpretar eu mesmo, fiquei entusiasmado. Eu mereço interpretar um roqueiro que recebe homenagem da Escola de Samba de Curicica, não?” E, pegando carona na história de Gero Camilo (a da “luta de classes” entre atores brancos sudestinos versus os de outras regiões e fora do padrão hegemônico de beleza), Jaime tomou caminho vicinal e evocou história vivida por Dustin Hoffman: “para interpretar certo personagem (de “Perdidos na Noite”?), Hoffman passou dias e noites mergulhado nas ruas nova-iorquinas. Quando Lawrence Olivier, o grande ator britânico, conversou com o colega estadunidense, dirigiu a ele pergunta seca: ‘por que não atua?’”
Para interpretar a si mesmo, Léo Jaime seguiu a deixa de Olivier. Simplesmente atuou. O goiano mais carioca do Rio de Janeiro, de 65 anos, contou que já pintou outro filme no pedaço. Lembremos que ele tem participação das mais vistosas (e inteligentes) em “Cazuza: Boas Novas”, documentário de Nilo Romero e Roberto Moret, lançado semanas atrás.
TALENTO EMERGENTE — Ruan Aguiar causou furor em Gramado. Vindo da “poesia das ruas”, nascido longe dos cartões postais da Zona Sul, ele fez novelas na Globo e série na Netflix (“Os Donos do Jogo”). “Papagaios” é seu primeiro filme. Fez a lição de casa com imensa dedicação. Marcou almoço com o parceiro de cena, Gero Camilo, que deveria durar uma hora. “Durou cinco, conversamos sobre tudo e mais um pouco!”, contou no debate. Falante como ele só, discorreu sobre o desafio de interpretar Beto, visto por ele como um alpinista social. “Vim das telenovelas, que se apoiam nos diálogos. Fala-se muito numa novela. Já em ‘Papagaios’, falo pouquíssimo. Tive umas 17 ou 20 falas, se tanto. E bem enxutas. Minha interpretação foi feita de silêncios e olhares”. No filme, o ator é, também, um rapaz disposto a fazer sexo com quem assim o desejar. Seja a três, num imóvel à venda. Ou com o motorista de Léo Jaime (interpretado por Ernesto Piccolo). Vale trisal, relação homoerótica, o que pintar. Ruan, que lembra o visual do cantor Diogo Nogueira, 20 anos mais moço, recebeu elogios por sua beleza, sensualidade e talento. Fez uma estreia em grande estilo. E deve ter aprendido muito no set.
GAUCHÃO DE CURTAS — A quinquagésima-terceira edição de Gramado já promoveu sua primeira festa de premiação. No último domingo, 17 de agosto, foram entregues aos melhores curtas gaúchos o Troféu Assembleia Legislativa. A festa aconteceu no Palácio dos Festivais, lotado, com transmissão ao vivo por duas emissoras gaúchas (TV Assembleia e TV Educativa) e pelo YouTube do festival. Entregaram prêmios aos laureados os atores Edson Celulari e Polly Marinho, a diretora-geral de Gramado, Rosa Helena Volker, e dois parlamentares, Pepe Vargas, que defendeu a regulação das plataformas de streaming, e Raul Pont, ex-prefeito de Porto Alegre. A grande homenageada da noite foi a atriz Glória Andrade (Troféu Sirmar Antunes).
Na tabela abaixo, a lista de premiados da Mostra Gaúcha de Curtas – Troféu Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul:
. ‘Trapo’, de João Chimendes – melhor filme
. ‘Fuá – O Sonho’, de Viviane Jag Fez Farias e Amallia Branadoeff – melhor direção
. ‘Bom Dia, Maika!’ – melhor atriz (Mikaela Amaral), trilha sonora (Zero)
. ‘O Pintor’ – melhor ator (Igor Costa)
. ‘Imigrante/Habitante’ – melhor roteiro (Cássio Tolpolar), montagem (Alfredo Barros)
. “Gambá’ – Prêmio da Crítica, fotografia (Takeo Ito)
. ‘Mãe da Manhã’ – melhor direção de arte (Clara Trevisan), edição de som/desenho de som (Vini Albernaz)
. ‘A Sinaleira Amarela’ – melhor figurino: (Samy Silva)
. ‘O Jogo’ – melhor produção/produção executiva (Renata Wotter)
