Cinema brasileiro despede-se de Silvio Tendler, o documentarista que registrou a trajetória dos que tiveram seus “sonhos interrompidos”
Maria do Rosário Caetano
Silvio Tendler, o documentarista, ativista político e professor da PUC carioca, que transformou sua existência em “plataforma de defesa dos vencidos”, morreu nessa sexta-feira, 5 de setembro, em sua cidade natal, o Rio de Janeiro. Há anos, ele enfrentava, com fúria e insolência, uma série de males complicados pelo diabetes. Vivia numa cadeira de rodas, enfrentava longas internações, mas se negava a morrer. Voltava para casa disposto a assumir o comando de seu pequeno “exército de Brancaleone” e realizar novos documentários. Sempre com a filha, a produtora Ana Tendler, na retaguarda. Amava sua missão autooutorgada: ser o porta-voz daqueles que “tiveram seus sonhos interrompidos”.
Tendler completara 75 anos em março último. Iniciou-se no audiovisual pelo cineclubismo. Uniu seus destinos à esquerda. Interessou-se pelas revoluções Cubana, do Vietnã (fruto de guerra sangrenta), do Chile de Salvador Allende (por via eleitoral) e pelas lutas de emancipação dos povos africanos. Sem, há que se lembrar, esquecer o que se passava no Brasil.
O cineasta voltou sua câmara ao registro da trajetória de muitos de nossos líderes progressistas. Começou com Juscelino Kubitscheck (“Os Anos JK”) e prosseguiu com João Goulart (“Jango”), Glauber Rocha (“Labirinto do Brasil”), Castro Alves (“Retrato Falado do Poeta”), Milton Santos (“O Mundo Global Visto de Cá”), Josué de Castro (“ Cidadão do Mundo”), Carlos Marighella, Chico Mário, músico e irmão do Henfil (“Melodia da Liberdade”) e a Leonel Brizola. Dedicou, também, um longa-metragem ao conciliador Tancredo Neves.
O documentarista moveu mundos para entrevistar o centenário General Nguyen Giap (1911-2013), braço direito de Ho Chi Min na guerra do Vietnã. Conseguiu. Só não conseguiu realizar dois de seus múltiplos sonhos — um filme sobre João Cândido (1880-1969), o “Almirante Negro”, e outro sobre a dupla de documentaristas da Alemanha Oriental, Walter Heynowski e Gerhard Scheumann, que, entre outros feitos cinematográficos, documentou o bombardeio do Palácio de la Moneda, em Santiago do Chile, no trágico onze de setembro de 1973.
Sobre “o mestre sala dos mares” cantado por João Bosco e Aldir Blanc, Tendler contava história singular. Nos tempos de cineclubista, em 1968, tomara o rumo de um subúrbio do Rio e, numa casa modesta, teria colhido imagens do octogenário marinheiro negro, líder da Revolta da Chibata. Mas acabou perdendo tudo. Do encontro sobraria apenas uma foto. João Cândido morreria no ano seguinte. E Tendler lamentaria até o último de seus dias, ele que era um arquivista obsessivo, não ter salvo as imagens do marujo rebelde.
Como sempre quis dialogar com o grande público, Tendler aceitou realizar, por encomenda da produtora de Renato Aragão, um longa-metragem sobre Os Trapalhões. Aceitou a empreitada quando muitos viravam a cara para o humor televisivo do quarteto. Conseguiu depoimento generoso de Carlos Drummond de Andrade sobre a trupe circense. Quando lançado, “O Mundo Mágico dos Trapalhões” vendeu quase 2 milhões de ingressos. Antes, ele já conhecera o sucesso com “Os Anos JK” (400 mil espectadores) e com “Jango” (mais de 800 mil). Mas, nos últimos anos, enfrentava grandes dificuldades para lançar seus muitos filmes. Fosse nas salas de cinema, nas emissoras de TV ou no streaming.
Um fato cinematográfico marcou a trajetória do historiador Silvio Tendler. Ele foi ampliar seus estudos de pós-graduação em Paris e lá, jovem aprendiz, acabou sendo convidado a integrar a equipe de “La Spirale”, de Cris Marker (1921-2012). O importantíssimo diretor de “La Jetée” seria, dali em diante e junto com Joris Ivens, o holandês voador, e o cubano Santiago Álvarez, um de seus decisivos mestres formadores.
Depois de assistir ao monumental filme-testamento de Marker (“Le Fond de l’Air est Rouge”, 1977, remontado em 1993), Tendler começou a engendrar o ambicioso “Utopia e Bárbarie”, concluído em 2009. Este longa-metragem pode ser definido, também, como o esboço de testamento histórico-estético do documentarista brasileiro. Sem dúvida, a mais vertiginosa e ambiciosa de todas as produções de sua longa carreira. Tendler ainda assinaria muitos filmes (e séries) depois de “Utopia…”, mas em nenhum deles condensaria tantas de suas paixões e pulsões artístico-políticas.
Outro documentário essencial a quem quiser mergulhar no universo de Tendler é “Nas Asas da Pan Am” (2020), seu testamento assumido. Trata-se de sua irresistível autobiografia. Com poderosas imagens de arquivo — e muito humor, o que não era comum em seus filmes anteriores —, ele nos contará que foi um menino judeu-carioca, gorducho e muito desajeitado. Não despertava nenhum interesse nas meninas, pois estava distante do tipo galã da classe. O jeito foi nutrir-se de boas doses de humor e dedicar-se aos estudos. E ao cineclubismo, caminho que um dia o levaria ao cinema.
Hoje, sua produtora, a Caliban, soma acervo de 80 filmes de curta, média e longa-metragem, feitos para cinema ou TV. Alma aventureira, o jovem Tendler pôde correr mundos e conviver com personalidades como Joris Ivens, Santiago Álvarez, a quem dedicou o vibrante “Santiago de las Américas ou O Olho do Terceiro Mundo”, o argentino Fernando Birri, seu colega na Fundação do Novo Cinema Latino-Americano e na Escola de San Antonio de los Baños, o italiano Gillo Pontecorvo, o chileno Patrício Guzmán e uma infinidade de nomes dedicados, em especial, ao cinema documental. Muitos deles estão em “Nas Asas da Pan Am”. Um filme, registre-se, obrigatório, principalmente para quem é devoto de Nossa Senhora do Contexto, a padroeira do saudoso Verissimo.
Em sua apaixonante autobiografia, Tendler recorre aos conhecimentos de José Carlos Sebe Bom Meihy, professor da USP e estudioso das Brigadas Internacionais, aquelas que lutaram na Guerra Civil espanhola (1936-1939). Com o parceiro, historiador como ele, o documentarista constrói sua sólida (e subjetiva) narrativa, ao longo de aliciantes 112 minutos. E nos encanta com imagens raras, sejam fixas ou em movimento. O filme só perde seu rigor (e vigor) quando, em festa comemorativa de seus 70 anos, Tendler e seus eufóricos amigos resolvem cultivar a prática da “brodagem”. Prática que pouco acrescentará a seu obrigatório inventário autobiográfico.
PRINCIPAIS FILMES
. 1980 – “Os Anos JK – Uma Trajetória Política”
. 1981 – “O Mundo Mágico dos Trapalhões”
. 1984 – “Jango”
. 1999 – “Castro Alves – Retrato Falado do Poeta”
. 2003 – “Glauber, o Labirinto do Brasil”
. 2006 – “Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto de Cá”
. 2009 – “Utopia e Barbárie”
. 2018 – “Dedo na Ferida”
. 2011 – “Tancredo, A Travessia”
. 2020 – “Santiago de las Américas ou O Olho do Terceiro Mundo”
. 2020 – “Nas Asas da Pan Am”
. 2025 – “Brizola”

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