Novo modelo de distribuição

Desde algum tempo, o consumidor pode acessar uma obra audiovisual em várias janelas. Na acepção midiática, janela é um período de exclusividade de um conteúdo em determinada mídia. Por exemplo, a primeira janela dos filmes realizados para estrearem em salas de cinema é a sala de cinema. Eles serão exibidos apenas nessas salas durante um tempo determinado. Cumprido esse primeiro duto de distribuição, o filme será explorado em uma segunda janela, geralmente o VOD, o vídeo por encomenda na TV. Em seguida, TV por assinatura, TV aberta, suporte físico (DVD, Blu-Ray), internet (online pago, streaming). Atualmente, a exclusividade de um filme em salas é de seis a doze meses, com variações que dependem do nível de aceitação da obra no escurinho do cinema (antes do advento do VHS e da TV paga, essa exclusividade era de, no mínimo, 24 meses).

Uma obra realizada para estrear na TV, como telenovelas, séries, documentários e também filmes, segue outra rota nesse sistema de janelas, mas o princípio é o mesmo: uma ordenação de lançamentos que aproveite ao máximo a possibilidade de acessos nos distintos tipos de dutos durante determinado período. Acontece que o avanço tecnológico, a exibição simultânea de obras nas salas e no VOD, a mudança das salas de cinema das ruas para shoppings centers, o surgimento da “mobilidade” (telefonia celular como meio de produção e veiculação de produtos audiovisuais) e a vastidão da pirataria estão conturbando esse desenho negocial e exigindo uma nova estratégia.

Janelas físicas Em 2014, durante a Global Conference do Milken Institute, na Califórnia, reunião anual que estuda e propõe soluções para o mercado financeiro e a indústria, foi apresentada uma reformulação desse sistema de janelas. A ideia, defendida por Jeffrey Katzenberg, ex-diretor da Disney, atual chefe do setor de animação da DreamWorks, foi bem aceita pelas grandes distribuidoras audiovisuais e pelas provedoras de acesso à internet, que estão analisando sua viabilidade de implementação. A proposta é que as janelas deixem de ser “temporais” (períodos determinados para cada uma delas) e passem a ser “físicas”.

O conceito “físico” significa que o conteúdo esteja sempre disponível, que o lançamento de uma obra seja simultâneo em todas as janelas, e o consumidor, o espectador, escolha em qual delas deseja ver a obra que escolheu — na sala de cinema ou nos receptores fixos e móveis da TV e da internet. A definição “janela” deixará de existir, substituída por “formato de tela”, e os distintos tamanhos de tela terão preços diferentes. O mesmo filme será visto em sala de cinema por 15 dólares, em televisor de 75 polegadas, por quatro dólares, em smartphone, por menos de dois dólares e por aí vai. Se adotado (e tudo indica que existe a probabilidade), esse novo modelo de distribuição vai mudar e reorientar a indústria e o comércio audiovisuais, com impactos em toda sua cadeia de produção, incluindo a criação artística.

Dez anos – Os empresários da TV e da internet estão mais entusiasmados com essa “revolução na distribuição de conteúdos” do que os proprietários de salas de cinema. Esses defendem que, apesar de terem as menores receitas da atividade audiovisual (as maiores são do videogame e da TV, nessa ordem), o formato sala de cinema deveria manter sua condição de lançador exclusivo de algumas obras, vale dizer, a sua condição de vitrine privilegiada de filmes que terão mais ou menos sucesso nas outras mídias, a depender do nível de aceitação nas salas. Apesar dessa assertiva já não ser tão verdadeira como era no início do século, a demanda do formato sala de cinema está sendo escutada pelas empresas que estão definindo os novos caminhos da distribuição.

O próprio Katzenberg admite a manutenção de uma janela temporal para lançamentos em salas de cinema, um período de três semanas de exclusividade, antes que o conteúdo seja inserido no sistema de formatos de tela. Apenas três semanas, porque, segundo ele, a grande maioria dos filmes para salas vendem 95% de seus ingressos, da totalidade possível de sua arrecadação em bilheteria, nas três primeiras semanas de exibição. Katzenberg admite esse privilégio das salas apenas na fase de migração de um sistema para outro, na fase de implantação, e calcula que, em dez anos, o novo modelo de distribuição estará em operação plena, abarcando toda a atividade.

Dois gumes – Levando em conta que a junção web/televisão (a e-TV) está em processo, no ritmo acelerado que caracteriza as tecnologias de comunicação contemporâneas, a nova arquitetura de distribuição seria centrada, em pouco tempo, exclusivamente, nesse binômio. Inclusive, no que se refere às salas de cinema, que exibirão filmes emitidos via internet por provedores localizados em qualquer lugar, como já acontece, eventualmente, nos dias que correm. Um aspecto dessa novidade é o acirramento da disputa entre as empresas de telecomunicação e de radiodifusão por espaço e tempo, cada qual buscando maior poder no novo cenário.

Outro aspecto é a crescente e urgente necessidade de regulação adequada dos mercados audiovisuais nacionais e uma legislação internacional condizente com os avanços e mudanças que as novas tecnologias proporcionam. O esquema de distribuição que está sendo proposto pode alimentar a necessidade e o direito das distintas culturas e povos terem suas imagens e vozes distribuídas em âmbito local e universal, mas também pode fortalecer os monopólios, a possibilidade de recrudescimento do domínio cultural através da comunicação. Faca de dois gumes merece cuidado redobrado, como dizia meu avô.

 

Por Orlando Senna, escritor e cineasta

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