“O Grande Circo Místico”, diálogo de Cacá Diegues com a alma barroca do Brasil

Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado

O mais novo filme de Cacá Diegues, “O Grande Circo Místico”, inspirado em poema de Jorge de Lima, abriu a quadragésima-sexta edição do Festival de Gramado, em caráter hors concours, e foi tema de movimentado debate na manhã deste sábado, 18 de agosto.

Antes de qualquer pergunta, a produtora Renata Magalhães avisou que a estreia do filme está adiada para 15 de novembro, ou seja, para o pós-Eleições Presidenciais (a estreia estava prevista para o Sete de Setembro). E justificou: “o momento é muito conturbado, de baixo astral e as bilheterias estão apresentando resultados decepcionantes”.

Dali em diante, o diretor e sua equipe, formada com os atores Jesuíta Barbosa, Mariana Ximenes, Bruna Linzmeyer e Marcos Frota, responderam a diversas questões colocadas pela imprensa especializada e pelo público.

O primeiro tema discutido foi o longo tempo (de três ou quatro anos) consumido na feitura do filme. Diegues esclareceu que, na verdade, foram “13 anos”. E justificou: “quando terminei “O Maior Amor do Mundo” (2005), me vi em crise”. Concluiu, então, que era hora de viabilizar projeto que sempre sonhara realizar: uma adaptação dos 45 versos do poema “O Grande Circo Místico”, de Jorge de Lima, “alagoano como eu”. Muitos anos foram consumidos na criação de dramaturgia que desse materialidade ao filme (o poema é de trama rarefeita).

“Fiz questão”— explicou o realizador — “de fugir do naturalismo” e mergulhar na “alma barroca do Brasil, que é nosso lado mais inventivo, definidor e original”. Com o roteirista George Moura (de “Amores Roubados”), Diegues estruturou a história de cinco gerações de uma família circense, os Knipes, que vai de seu apogeu, no comecinho do século XX, até sua decadência, no século XXI, passando pelos anos 1930, 1960 e 1980.

Para contar cem anos de história ambientada em um circo, Cacá Diegues teve que enfrentar uma série de desafios. O maior deles: filmar com animais, como elefantes, camelos, leões, cavalos e macacos. No Brasil, explicou a produtora Renata Almeida, “tornou-se impossível, pois nossas leis proíbem animais em circos”. Por isto, detalhou, “pensamos em usar animais amestrados que atendem, em especial, às equipes de Publicidade”. Só que, “a diária de um elefante, mais transporte, alimentação etc., custava R$150 mil. Desistimos”. Uma alternativa surgiu: “trabalhar com animais digitais”. Ou seja, lançar mão de modernas tecnologias. Só que, “além de caro”— explicou a produtora — “haveria engessamento da atividade criativa do diretor e dos atores e nos afastava da concepção artística do filme”.

A solução veio com a contratação de um circo em Portugal, país europeu que permite o uso de animais. A reinvenção cinematográfica do poema de Jorge de Lima foi rodada, então, em solo português, num circo cenográfico postado ao lado de um verdadeiro (o Circo Victor Hugo Cardinale), que forneceu animais e profissionais, como treinadores, domadores, além de toda sua expertise. Expertise enriquecida, ainda, com a experiência do ator (e homem de circo) Marcos Frota.

A coprodução lusitana somou-se à francesa e Cacá Diegues pôde mobilizar o mais internacional de seus elencos, sem precisar forçar a barra, pois circos são ambientes internacionais, capazes de arregimentar profissionais de todos os cantos do mundo. Além do elenco brasileiro, há quatro atores portugueses (entre eles, Albano Jerónimo), dois franceses (Vincent Cassel, de “Gauguin”, e Catherine Mouchel, de “Troca de Rainhas”), um polonês, Dawid Ogrodnik, um espanhol (Antonio de la Cruz) e acrobatas centro-americanos (da Guatemala).

Diegues lembrou que Dawid Ogrodnik entrou no filme “por meu desejo de trabalhar com ele”. Depois de vê-lo em “Ida”, premiado com o Oscar de melhor produção estrangeira, fez questão de agregá-lo à equipe. “Gostei muito do premiado filme polonês e vi que seria perfeito tê-lo como o vigoroso trapezista do nosso circo”. Mariana Ximenes, que também interpreta uma trapezista, partner do personagem do ator polonês, contou que “foi maravilhoso trabalhar com ele e assistirmos juntos, toda equipe do nosso filme, à transmissão do Oscar, quando o belíssimo ‘Ida’ sagrou-se o vencedor”.

Jesuíta Barbosa, que interpreta Celaví (corruptela de C’est la vie), é o mestre de cerimônia do circo, que amarra todas as histórias. Ele nunca envelhece e tem aspecto camaleônico. Aparece de cabelos louríssimos ou pretos, lisos ou black-power, curtos ou muito longos. Acompanha todas as fases da família que comanda o Grande Circo Knipes, dos grandes tempos de glória à decadência. O ator confessou-se fascinado pelo filme, que o atraiu do roteiro até sua projeção” (em Cannes, e, agora, em Gramado). “Eu não conhecia o poema do Jorge de Lima. Ao ser convidado para o filme, fui lê-lo. Adorei o roteiro e estou muito feliz com o resultado. Acho que fizemos um belo filme, ousado, muito criativo”.

Bruna Linzmeyer, que interpreta uma bailarina, Charlotte, e materializa na tela um verdadeiro kama-sutra (na verdade um sexualizado bailado de corpos) com o ator Rafael Losano, garantiu que “foi algo maravilhoso de se fazer”, pois “nós dois ensaiamos infinitas vezes as diversas posições a ponto de criarmos imensa e generosa familiaridade”.

Cacá Diegues relembrou que sonhava realizar a recriação cinematográfica de “O Grande Circo Místico” há muito tempo, mas que seu desejo aguçou-se quando ouviu o disco de mesmo nome, criação de Chico Buarque e Edu Lobo. Ele gostava (gosta) tanto das canções da dupla, que até usou “Beatriz” em outro de seus filmes (“Dias Melhores Virão”). Ela volta, agora (na poderosa voz de Milton Nascimento), tal qual aparece no elepê transformado em espetáculo dramático-musical por Naum Alves de Souza.

“Não vi a montagem do Naum”— garantiu Diegues — “pois ela foi pouco difundidada”. E acrescentou: “fiz questão de usar, além de “Beatriz”, tal qual ela aparece no disco, a gravação original da canção que finaliza o filme”. Outras composições de Chico e Edu aparecem em regravações feitas especialmente para o filme, seja por cantores profissionais, seja por atores (caso de Júlia Mariani, que interpreta “Lili Brawn”) .

O cineasta alagoano-carioca, de 78 anos, não concorda com a percepção de quem acha que ele fez um filme triste, embora arrematado por final esperançoso. “Meu filme é melancólico, não triste”, pondera, para finalizar: “o desfecho, protagonizado pelas gêmeas (quinta geração da Família Knipes), é o mesmo do poema de Jorge de Lima. George Moura e eu buscamos a atmosfera daqueles 45 versos para conceber tramas que não estão explicitadas neles. Mas os versos finais de ‘O Grande Circo Místico’ estão, estes sim, explícitos em nosso filme”.

Um registro final: quem vê em Federico Fellini uma das fontes de inspiração de “O Grande Circo Místico” não está enganado, conforme admitiu o realizador, que se define como um cinéfilo apaixonado (“se tivesse que escolher entre fazer ou ver filmes, escolheria ver”). Mas suas principais referências foram “La Carrosse d’Or”, de Jean Renoir, “Lola Montez”, de Max Ophuls, e “Viridiana”, de Luis Buñuel”.

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