Ennio Morricone

Por Maria do Rosário Caetano

“Eu, Ennio Morricone, estou morto”. Foi assim, como um personagem de Machado de Assis, que o compositor de trilhas sonoras antológicas despediu-se do mundo. Ele, que embalou os western spaghetti de Sérgio Leone, o épico “Batalha de Argel”, de Pontecorvo, e o comovente “Cinema Paradiso”, de Tornatore, morreu nesta segunda-feira, 6 de julho, em Roma, sua cidade natal. Tinha 91 anos, dedicados com paixão e imenso talento, ao ofício de trilheiro. Foram 500 trabalhos feitos para cinema e TV. Sem esquecer a música de concerto.

Morricone formou, com Nino Rota (1911-1979) e Nicola Piovani, de 74 anos, a Santíssima Trindade da trilha sonora peninsular. Criou, ao longo de sua larga e produtiva existência, trilhas para alguns de seus mais ilustres conterrâneos. Além de Pontecorvo, destaque para Pier Paolo Pasolini (“Teorema”, “Decameron”, “Saló”) e Bernardo Bertolucci (“Novecento”). Rota conquistou espaço eterno em nossa memória afetiva com sons fellianianos e circenses, capazes de agradar a críticos e ao público. Morricone cativou gerações com suas hipnóticas trilhas para os desprezados western spaghetti. Se, hoje, tais filmes são objeto de culto, houve tempo em que eram considerados cinema de entretenimento massificado. Vide a pejorativa expressão que os batizou (em português, o jocoso faroeste macarronada).

No documentário espanhol “Desenterrando Sad Hill” – sobre a reconstrução de cemitério que ambientou a mais famosa sequência de “Três Homens em Conflito” (Leone, 1966) –, o nonagenário compositor italiano relembra seu trabalho. Discreta e elegantemente, para não ferir a falange de adoradores do western spaghetti, ele pondera que o terceiro filme da trilogia leoneana era bem melhor e mais elaborado que os anteriores. Ou seja, superava “Por um Punhado de Dólares” (1964) e “Por um Punhado de Dólares a Mais” (1965).

A parceria de Morricone com o mais “internacional” dos diretores mediterrâneos seguiria firme em “Era uma Vez no Oeste” (1968) e “Era uma Vez na América” (1984). E o maestro estava escalado para musicar outro projeto de Leone, o épico de guerra “O Cerco de Stalingrado”. A morte prematura, aos 60 anos, impediu que o cineasta levasse adiante o filme que ambientaria na então União Soviética.

No documentário “Desenterrando Sad Hill”, um crítico lamenta que o reconhecimento a Leone (1929-1989) não seja similar ao conquistado por Fellini, Visconti e Antonioni. Atribui tal desvantagem ao fato do criador do Western spaghetti não ter feito filmes sobre a Itália. Busca-se, até, em Alberto Moravia, o escritor que deu origem ao “Desprezo”, de Godard, um defensor de peso. O romancista, que foi também crítico de cinema, defende o conterrâneo lembrando que, cada vez mais, ele impregnava seu filmes de “mediterraneidade”. Um tema para infindáveis e frutíferas discussões.

A favor de Leone, há que se evocar sua fiel parceria com o romano Morricone. E lembremos que, embora seus filmes mais famosos sejam todos “anglo-saxões” (tendo o western e o filme de gângster como matriz), Leone estreou com dois projetos de alma popular e, essencialmente, italiana: os “pepluns” (saiote e sandália) “Os Últimos Dias de Pompeia” (1959) e “O Colosso de Rodes” (1960). Ambos o têm nos créditos de direção.

Ennio Morricone, que ajudou a transformar os western spaghetti de Leone em tótens do cinema (vide, em “Desenterrando Sad Hill”, o fanatismo de espanhóis, canadenses e franceses, sem falar no líder da banda Metallica), será enterrado em discreta cerimônia privada.

Giovanni Morricone, filho do compositor, revelou aos jornais italianos o conteúdo de “mensagem escrita de próprio punho pelo pai” e destinada a generoso agradecimento a seus entes queridos (ver abaixo, na íntegra).

As maiores autoridades e artistas da Itália e do mundo saudaram o maestro, arranjador e compositor que ganhou, da Academia de Artes e Ciências de Hollywood, dois Oscar, um honorário, pelo conjunto da obra, e outro por “Os Oito Odiados”, de Quentin Tarantino.

Tarantino, registre-se, é um fiel devoto das trilhas western spaghetti de Morricone. Gênero, aliás, matriz de seu décimo longa-metragem, realizado em 2015. Quem não se lembra da vibração do diretor norte-americano, quando, na cerimônia da Academia, “Os Oito Odiados” rendeu o segundo Oscar ao gênio peninsular?

Carta aos amigos e parentes

“Eu, Ennio Morricone, estou morto.

Anuncio assim a todos os amigos, que sempre estiveram perto de mim, e também àqueles um pouco distantes, a quem saúdo com grande carinho. Não foi possível nomeá-los todos. Mas uma lembrança especial vai para Peppuccio e Roberta, amigos fraternos muito presentes nestes últimos anos de nossas vidas.

Uma razão que me leva a cumprimentar a todos assim é que desejo ter um funeral de forma privada: não quero incomodar.

Saudações, com muito carinho, para Ines, Laura, Sara, Enzo e Norbert por compartilhar comigo e minha família grande parte da minha vida. Quero lembrar com amor minhas irmãs Adriana, Maria e Franca e seus entes queridos e que eles saibam o quanto eu os amei.

Uma saudação intensa e profunda aos meus filhos, Marco, Alessandra, Andrea e Giovanni, minha nora Monica, e aos meus netos Francesca, Valentina, Francesco e Lucas. Espero que eles entendam o quanto eu os amei.

Por último, Maria (mas não a última). A ela renovo o amor extraordinário que nos manteve juntos e que lamento abandonar. A ela, o mais doloroso adeus”.

Ennio Morricone (Roma, julho de 2020)

 

Desenterrando Sad Hill (Sad Hill Unearthed)
Produção espanhola (2018) dirigida por Guillermo de Oliveira, disponível na Netflix
Com depoimentos de Ennio Morricone, Clint Eastwood, James Hetfield, do Metallica, Alex de la Iglesia, Joe Dante, Daniel Jeffrey Carlo Leva, Sergio Salvanti, entre outros
Duração: 90 minutos

 

PRINCIPAIS FILMES

1964 – “Por um Punhado de Dólares” (Leone)
1965 – “Por um Punhado de Dólares a Mais” (Leone)
1966 – “Três Homens em Conflito” (Leone)
1966 – “A Batalha de Argel” (Pontecorvo)
1968 – “Teorema” (Pasolini)
1968 – “Era uma Vez no Oeste” (Leone)
1970 – “O Pássaro das Plumas de Cristal” (Argento)
1971 – “Quando Explode a Vingança” (Leone)
1971 – “Decameron” (Pasolini)
1971 – “A Classe Operária Vai ao Paraíso” (Elio Petri)
1971 – “Sacco e Vanzetti” (Giuliano Montaldo)
1975 – “Salò ou Os 120 Dias de Gomorra” (Pasolini)
1976 – “Novecento” (Bertolucci)
1978 – “Cinzas no Paraíso” (Terrence Malick)
1981 – “O Profissional” (Lautner)
1984 – “Era uma Vez na América” (Leone)
1987 – “Os Intocáveis” (De Palma)
1987 – “Busca Frenética” (Polanski)
1989 – “Cinema Paradiso” (Tornatore)
1989 – “Ata-me” (Pedro Almodóvar)
2000 – “Vatel, um Banquete para o Rei” (Joffé)
2015 – “Os Oito Odiados” (Tarantino)

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