Indígenas querem canal próprio para escoar produção de seus cineastas

Por Maria do Rosário Caetano, de Ouro Preto

Quem pensou que a abertura da décima-sétima edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, seria um território de lamentos indígenas, enganou-se. A Praça Tiradentes, no coração da cidade mineira, estava lotada para ouvir cantos de povos andinos e brasileiros, com suas flautas, queñas e tambores, e para assistir aos filmes “Bicicletas de Nhanderú”, e “Nossos Espíritos Seguem Chegando”, do casal Ariel Ortega e Patrícia Ferreira. Oriundos da nação Guarani, do Rio Grande do Sul, Ariel, cujo nome indígena é Kuaray Poty, e Patrícia (Pará Yxap) receberam o Troféu Vila Rica por sua contribuição ao cinema.

A dupla atua no audiovisual desde que frequentaram oficinas do Coletivo (pernambucano) Vídeo nas Aldeias e, com o passar dos anos, consolidaram o Coletivo (gaúcho) M’Bya Guarani de Cinema.

Depois de cantos, danças e evocações a Pachamana (a mãe Terra), a plateia do festival ouro-pretano deliciou-se com o cult movie “Bicicletas de Nhanderú”, média-metragem que vem fazendo história. Já foi exibido até na TV Cultura, em rede nacional. “E isto aconteceu”, garantiu Vicent Carelli, criador, há mais de três décadas do projeto Vídeo nas Aldeias, “no tempo em que a emissora vivia sua fase áurea”.

Em saborosos 48 minutos, Ariel e Patrícia empreendem imersão na espiritualidade cotidiana dos Mbya-Guarani da aldeia Koenju, em São Miguel, na região dos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. O líder espiritual da aldeia, ao explicar certo acontecimento de natureza espiritual, define-se como “bicicleta de Nhanderú”, ou seja, veículo da divindade. O filme constrói-se, também, como metalinguagem, já que questiona a produção da imagem, sua função e seu uso pelo homem branco. Uma senhora conta que foi filmada e ganhou parca remuneração, porque teria aparecido pouco. Outros, de sua aldeia, não quiseram aparecer, mas quando viram os que apareceram bastante sendo remunerados arrependeram-se.

Quem rouba a cena em “Bicicletas”, presente em listas dos mais importantes filmes de realizadores indígenas brasileiros, são duas crianças: Palermo e Neneco. Antes de realizar “Bicicletas de Nhanderú”, Ariel e Patrícia dedicaram-se a filmes para crianças, um dos temas recorrentes na produção indígena (os outros, segundo o curador do núcleo histórico da CineOP, Cleber Eduardo, são a Terra, a Espiritualidade, os Anciãos e o próprio fazer cinematográfico, implicando o uso, ou apropriação indevida, da imagem indígena). “M’Bya Mirim – Palermo e Neneco”, de 22 minutos, registra brincadeiras das duas crianças Guarani, muitos espertas, ardilosas, donas de gestual de cativante singularidade. O filme causou tamanho impacto, que muitos de seus trechos foram carreados para “Bicicletas de Nhanderú”.

E o que faz a dupla? Vai a uma fazenda dedicada ao cultivo de soja, que sufoca sua pequena aldeia, buscar lenha, sabendo que corre sérios riscos, vai comprar certa mercadoria e aproveita para pedir pão, dança e canta (em língua onomatopéica ininteligível), rola na lama, encanta a plateia. E arranca gargalhadas quando revela a quem imita na dança break-robótica: Michael (Jackson, claro!!). O curta é de 2012.

Em debate de “Bicicletas de Nhanderú”, realizado no dia seguinte à noite inaugural da CineOP, Ariel e Patrícia (e o bebê Dionísio) — acompanhados dos cineastas Ernesto Carvalho e Bruno Huyer — contaram que estão finalizando seu primeiro longa-metragem, “A Transformação de Canuto”. Depois de muitos documentários, agora eles assinam uma ficção. Por que sentiram necessidade de recorrer a narrativa ficcional?

Ernesto contou que Ariel compartilhara com ele, em sucessivas conversas, história que o acompanha desde a infância — a da transformação de um homem em onça. Que isto, na tradição Guarani, é algo problemático, complexo. Ariel confirmou. Quando ouvia a mãe contar tal história, ficava muito tenso. “Os mais velhos nos contavam essa história para nos amedrontar. Para levar tal trama ao cinema, ele e Ernesto Carvalho mobilizaram equipe de várias regiões do país. “Filmamos, com Camila Freitas na fotografia, na região missioneira, entre Argentina e Brasil”.

Outro debate marcou o primeiro dia da parte reflexiva da CineOP e teve os cineastas Divino Tserewahú e Vicent Carelli como estrelas. Divino é considerado um dos pioneiros do cinema indígena no Brasil. Xavante, ele foi um dos primeiros alunos das oficinas do Coletivo Vídeo nas Aldeias. Além de ter se tornado realizador, foi o coprotagonista do longa-metragem documental “O Mestre e o Divino” (2013), de Tiago Campos Torres. O mestre, no caso, era o excêntrico missionário salesiano, de origem alemã, Adalbert Heide, e Divino, o próprio cineasta Xavante.

Vincent Carelli contou que há mais de 30 anos, quando nasceu o Coletivo Vídeo nas Aldeias, ninguém acreditava que indígenas pudessem realizar seus próprios filmes. Hoje, isso acontece em todo o território brasileiro. A produção está crescendo, mas ainda há imenso preconceito contra tais filmes. “Me impaciento quando nos colocam no gueto do filme etnográfico”.

“Cinco anos atrás” — rememorou —, “a CineOP nos prestou belíssima homenagem, dedicou excelente catálogo aos filmes do Vídeo nas Aldeias, mas os colocou numa salinha pequena. Quando lá entravámos, havia oito ou dez pessoas assistindo. Continuávamos segregados. Este ano, não! Estamos no espaço nobre: na noite inaugural, no Cinema da Praça, para centenas de pessoas. E nosso novo filme — ‘Adeus, Capitão’ — é o convidado da noite de encerramento”.

O diretor de “Corumbiara” e “Martírio” contou que, no final do Governo Dilma, um dirigente da Ancine (Agência Nacional de Cinema), instituição que promovia mapeamento do Cinema Indígena, o procurou para saber o que desejava para fortalecer a produção dos povos originários”. Ele respondeu: “um portal para os filmes e séries de TV, que se multiplicam, e estão engavetados, pois não encontam escoamento nos veículos tradicionais”. Com a deposição da presidenta e o triunfo de governos hostis à causa indígena, a ideia não prosperou.

Em outro encontro, com alto dirigente do BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social), Vincent Carelli ouviu fala irônica: “Ah, você é o responsável pela formação destes cineastas indígenas que agora batem às portas do Banco para exigir apoio a seus projetos audiovisuais?!”

O Xavante Divino Tserewahú, que participa da CineOP com sua companheira Criosmar e a bebê Flávia Regina — depois de alertar, em tom de brincadeira-séria, que “os costumes de seu povo permitem que as mulheres tenham dois maridos e os homens tenham sete esposas” — fez verdadeira profissão de fé em seu ofício. Ele ama o cinema e, principalmente, a TV. Contou de sua decepção com a Rede Globo. Que ele e Ariel deram entrevista à Globo Minas, no dia anterior, que se manifestaram com discurso consistente e em bom português. O que foi ao ar? “Uma frase e olhe lá”.

Por isso, em tom afirmativo, avisou: “estamos torcendo pela mudança de Governo, pois levaremos ao novo presidente da República, a ser eleito, a reivindicação de um Canal Indígena. Não estamos brincando, nem sonhando. Na Bolívia, há canais indígenas. Lá povos originários produzem filmes, telejornais e programação de TV. Divulgam seus idiomas, sua cultura, seus direitos e problemas. Se não for assim, o preconceito contra os povos indígenas não acabará nunca”. E mais: “a partir de setembro, vou coordenar oficina de dois meses intitulada ‘Cinema, Memória que Dura’, com povos Xavante, Bororo e Carajá, unidos pela mesma causa – a luta por nossos direitos”.

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