Amor sem frescuras

Não há como ignorar a ousadia temática de “Elvis & Madona”, o longa-metragem de estreia de Marcelo Laffite, uma comédia centrada em uma lésbica de classe média que abandona a família conservadora e um ator/cabeleireiro travesti. Desta combinação improvável, nasce um estranho caso de amor. O filme investe em um universo pop bastante presente na cultura brasileira, mas distante do cinema brasileiro de ficção, assim como nosso samba e futebol. Nem precisa refletir muito sobre o assunto para presumir que levantar os recursos da produção orçada em R$ 1,2 milhões não foi fácil. Vencedor do concurso anual de baixo orçamento promovido pelo Ministério da Cultura em 2005, “Elvis & Madona” conta, desde o seu primeiro roteiro até o seu lançamento, mais de 10 anos de busca por patrocínios.

Filmado em 2007, “Elvis & Madona” já participou de 50 festivais. O diretor já levou seu filme a festivais brasileiros em Paris e Los Angeles, e participou de outros festivais internacionais na Austrália, no Festival de Tribeca em Nova York, em Varsóvia, Zagreb, Sófia, e em Portugal. A ideia de Laffite, realizador com cinco curtas-metragens na bagagem e militante na ABD (Associação Brasileira de Documentaristas), onde foi presidente, não era fazer apenas uma comédia escrachada. Seu desejo era por uma espécie de fábula moderna, com personagens factíveis. “Nossa sociedade vivia uma eterna crise econômica, com alta taxa de desemprego e uma desesperança quase crônica. Eu acreditava que isso poderia mudar e decidi inserir essa visão de uma sociedade mais justa no enredo de ‘Elvis & Madona’. Um dia, após muitas sinopses, fui para o computador e escrevi todo o roteiro em uma semana”. Foi assim que Lafitte chegou à história de um travesti chamado Madona e da lésbica Elvis. Madona (Ígor Cotrim) trabalha como cabeleireira, faz shows na noite e sonha com um espetáculo fixo de drag queens. Elvis (Simone Spoladore) quer ser fotógrafa de jornal, mas, por enquanto, vive entregando pizza.

Para dar o tom carnavalesco, o diretor convidou o criador do grupo Dzi Croquettes, Bayard Tonelli, o cabeça do debochado grupo de dançarinos travestidos que ficou famoso mundo afora nos anos 70, para colaborar nos figurinos e no visual do elenco. “Outra fonte de inspiração para criar o visual anárquico de ‘Elvis & Madona’ veio de Roy Lichtenstein, que trabalhava cores e emoções como ninguém em suas pinturas pop. Foi com esse pincel que o diretor de arte Rafael Targat, o fotógrafo Uli Burtin e eu fomos criar a arte do filme com os recursos que tínhamos à mão, e deu no que deu”, diz Laffite.

O filme também mostra uma Simone Spoladore completamente diferente do usual, na pele de uma lésbica supersensual que atrai bastante os homens. “Isso tem muito a ver com a minha opção de evitar estereótipos. Mas também foi resultado do processo do teste de elenco e da química resultante do encontro da Simone com o Igor. Veja bem: com aquela Madona forte e masculina, não tinha como a Elvis ser ‘caminhoneira’”, brinca o diretor.

Agruras de um iniciante no longa-metragem

Para Laffite, a experiência do primeiro longa foi como andar de montanha russa: muita velocidade, perigo e incertezas, “mas totalmente prazeroso”, completa ele, lembrando das enormes dificuldades encontradas. “Imagine um diretor estreante tentar fazer um filme de ‘viado’ no início dos anos 2000?! Foi difícil e quase que não acontece. Só conseguimos vencer o concurso na terceira tentativa, em 2005, e o dinheiro só foi sair em 2007. E o dinheiro do MinC não foi suficiente para terminar o filme. São muitos personagens, muitas locações diferentes, muitas cenas de rua. O concurso da Oi Telecomunições nos permitiu terminar o filme”, explica o cineasta. “Eu adoro trabalhar com equipes e elenco. Eles sempre me dão conforto e segurança para que eu possa ir construindo a narrativa das imagens desde o primeiro dia de filmagem”, conta.
“Este é um tema espinhoso”, continua o cineasta. “Na minha opinião, existe uma certa patrulha cultural no cinema brasileiro que diz: ou você é Globo Filmes, ou você é cinema cabeção. Para a turma situada neste último caso, é um pecado capital criar personagens chamados Elvis, Madona, Clark ou João Tripé, como se isso não fosse o fruto da formação do povo brasileiro”, desabafa Laffite. “Alguns representantes desse setor torcem o nariz para meu filme como se a forma bem humorada e histriônica do filme fosse um impedimento para que o conteúdo fosse assimilado pelo público, o que não é, nem de longe, reflexo da verdade”, conclui o diretor.

Finalmente, o filme esteia agora em junho, e Laffite já tem uma ideia de como será a reação do público. “Em todas as sessões, o que mais chama a atenção é o fato de o público entrar na história de amor entre Elvis e Madona. Com dez minutos de filme, todo mundo já esqueceu que elas são uma lésbica e uma travesti que se chamam Elvis e Madona, pois o que importa é o amor entre elas”, conta o cineasta, bastante otimista com a estreia que se aproxima. “Vamos lançar com poucas cópias e em poucas cidades, para ir caminhando aos poucos. Mas o filme tem potencial para bater recordes de expectadores por cópia e de ficar várias semanas em cartaz pelos cinemas do Brasil”.
Laffite pretende continuar a mesma linha de “Elvis & Madonna” em seus próximos filmes. “Estou escrevendo um roteiro chamado ‘Salomé’, que é a história de uma grande atriz, uma estrela do filme pornô, que precisa voltar à sua pequena cidade natal depois de 15 anos para o enterro de seu pai. Todos na cidade acompanham a sua vida pelas revistas, seus filmes foram vistos por quase todos, tem um bar e uma oficina mecânica com o seu nome, mas ninguém fala com ela. Será um ensaio sobre o moralismo”.

Por Julio Bezerra

One thought on “Amor sem frescuras

  • 2 de outubro de 2011 em 17:15
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    Filme excelente, ótima e inovador para o cinema brasileiro. Marcelo você está de parabéns, estou ancioso para ver o seu próximo filme Salomé.

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