Quando o personagem faz a diferença
Três filmes pernambucanos, que serão lançados brevemente, “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça, “Boa Sorte, meu Amor”, de Daniel Aragão, e “Era uma Vez Eu, Verônica”, de Marcelo Gomes, possuem algo em comum, além do fato de serem todos rodados em Recife. Uma semelhança no íntimo de seus personagens e na herança arcaica dos antigos usineiros, hoje decadentes, que formou a classe média de Recife, de onde surgiram seus diretores. Esses três filmes têm em comum o uso do personagem como o centro dos acontecimentos, tornando-os universais, e ilustram a força autoral dessa novíssima geração que está surgindo no cenário cinematográfico de Pernambuco. Outra marca desses filmes é a ausência do regionalismo. Só para citar um exemplo, uma forma bem diferente de abordagem desses mesmos aspectos acontece no cinema gaúcho, onde se produz também muitos filmes, mas se busca uma ligação estreita com os costumes e a cultura local. Uma diferença que está muito latente na vocação de seus realizadores.
Segundo o raciocínio da importância do personagem, e das relações em comum entre esses três filmes, o personagem principal de “Boa Sorte, meu Amor” é um homem de 36 anos com origens “que remontam à aristocracia latifundiária do sertão”, que perambula por uma Recife em preto e branco, entre o romance com uma modelo loira e o pai decadente. Ao ir de um lado para o outro, descobre seu mundo desmoronando, a cidade, o sertão e sua origem em desfiguração. Mas o que guia a narrativa do filme é a inconstância existencial do personagem, que reage quando a sua modelo boa de cama some, e seu vazio existencial se transforma numa busca sem rumo.
Esse personagem perdido, sem rumo, que busca no sexo uma forma de preencher seu vazio existencial, se encontra em “Era uma Vez Eu, Verônica”, agora na pele de uma personagem feminina. Apesar de não haver uma crítica direta ao urbanismo de Recife, é a cidade que lhe empresta uma bela paisagem gigantesca onde Verônica se agarra ao pai, e ao mundo fechado de sua casa. O filme é guiado pela intensidade das paixões da personagem, seu desejo de sexo sem amor, sua incapacidade de exercer a medicina, onde desconhece os sintomas claros da depressão em seus pacientes, da mesma forma que desconhece em si. É desse estado patológico que nasce seu estado patêmico, sua alma melancólica guia a narrativa e todo o enredo do filme. É essa melancolia que liga Verônica a Dirceu, pelo mesmo modo suicida de agir, do filme “Boa Sorte, meu Amor”.
Em “O Som ao Redor”, a relação com o passado dos usineiros toma forma mais forte, e se torna a estrutura da construção dramática, ao colocar em uma mesma rua, que pertence a um senhor como herança dos tempos ricos das usinas, todos os personagens que constroem a narrativa. Eles vivem nesta rua, onde o interior das casas se relaciona com o mundo externo, gerando, por outro lado, a ação dramática nesta relação. Mais uma vez, o tema urbano ganha contexto no lado existencial de seus personagens, tanto na dona de casa enfadonha, que reanima seus dias fumando maconha, ao vigia de voz mansa, como se tivesse o mesmo nível existencial decadente dos que moram naquelas casas. Em todos esses filmes, o emocional e o existencial se confundem, numa abordagem marcante de cinema autoral.
Além desses três filmes, o cinema pernambucano já conta com mais um, de um diretor estreante, “Eles Voltam”, de Marcelo Lordello, um filme feito com um orçamento de curta-metragem. É um grande filme exatamente porque se sustenta no sensorial de uma personagem, uma garota de 12 anos. Tanto que o roadmovie, que relata a trajetória de uma pré-adolescente sem rumo, que passa por lugares estranhos a ela, como um acampamento dos “sem terras”, reverte a ordem deste tipo de filme. Não é a menina que passa pelos lugares, mas os lugares que passam por ela. Sua personagem vive imersa em si, não se molda aos acontecimentos. E é exatamente por se sustentar em seus personagens, que esse boom de qualidade do cinema pernambucano está despontando neste momento, angariando prêmios e admiração.
E mais dois filmes estão em andamento em Pernambuco. Pouco sabemos sobre seus conteúdos, mas conhecemos a linha criativa de seus realizadores. Está em finalização o primeiro filme do roteirista de Cláudio Assis, Hilton Lacerda, “Tatuagem”, que anuncia mexer com o mundo louco dos anos 70, e “A Eternidade”, de Camilo Cavalcante, que promete apostar na estética, tendo como fonte um curta-metragem muito premiado e que tem o mesmo nome do longa. A mídia aponta esse boom cinematográfico devido aos recursos que o governo pernambucano investe na cultura, chegando a mais de R$ 11 milhões em 2011. Pensar que esse boom do cinema pernambucano seria apenas pela quantidade de filmes produzidos seria não ver que o verdadeiro motivo do sucesso do cinema que essa moçada está fazendo vem do desejo de falar sobre seu próprio mundo, o aparente, dos prédios de Recife, e o existencialismo tropical de seus personagens.
Por Hermes Leal, escritor e documentarista, mestre em Cinema pela ECA/USP, doutorando em Semiótica também na USP, e autor do romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros livros.