“O Som ao Redor” e o cinema de estética

Este artigo não pretende ser uma crítica sobre o filme “O Som ao Redor”, de Kleber Mendonça Filho, que entra em cartaz agora em janeiro, mas uma análise do filme sob o ponto de vista narrativo, do plano do conteúdo, e não do plano da expressão, da onde usualmente tiramos as análises críticas. A utilização do som e do ruído no filme “O Som ao Redor”, como diz o próprio título, nos permite divagar um pouco sobre o que esse “ao redor” representa e dá sentido ao filme no plano estético. Enquanto o filme narra uma série de pequenos acontecimentos, com vários personagens em seus percursos narrativos próprios, os sons que eles produzem, e do ambiente que os cercam, são artifícios de linguagem, que têm como função ressaltar a força dramática. Ao invés desses ruídos incomodarem por sua persistência, na verdade, cumprem o papel de silenciar, e servem como uma espécie de limpeza daquilo que é externo aos personagens.

O “Som ao Redor” atua com os ruídos em cena – e fora de cena – com uma função de fechar uma espacialidade em volta dos personagens, delimitando o mundo externo do interior onde transitam. Nesta anulação externa através do som, onde está ausente uma trilha sonora como é usual, os personagens são donos da situação. Sem o som artificial em cena, o filho que se despede do pai envelhecido, os vigilantes para proteger os moradores de uma rua, e a dona de casa entediada atuam no filme sem muita dramaticidade, de forma quase documental. Isso porque a narrativa do filme é linear, sem ações bruscas, personagens livres para atuarem soltos nesse espaço livre e ao mesmo tempo acobertado pelos ruídos.

Os sons ao redor nos dão a impressão de que existe uma película sonora em torno dos personagens e do micro ambiente em volta, como podemos observar nas cenas da dona de casa que eleva seu grau de estresse ao ouvir o latido irritante do cachorro do vizinho. Ao criar essa espacialidade, Kleber teve liberdade para deixar a atuação dos personagens mais natural, para que eles pudessem passar sua proposta de direção, sem manipulação na edição, onde a força dramática estaria nos personagens e nos estados de paixão de suas almas. Esse aspecto de análise dos personagens pelas paixões da alma foi criado por Descartes e assumido pela semiótica como a forma em que podemos demonstrar de maneira teórica a famosa jornada interna dos personagens.

Os bons filmes tem esse percurso interno conduzido não pelas emoções que expressam, pois ela é apenas “produzida” pelo personagem, mas pela paixão, que é “sofrida” pelos sujeitos. Dentre as paixões mais famosas estão o ciúme, a ira, o medo, a melancolia, e por aí vai. Estas paixões são consideradas “estados patêmicos da alma”, e existem em todos os personagens. É algo inerente ao ser humano. Os personagens que ganham dimensão mais profunda são os que agem “impregnados” por seus estados de alma. Para filmes que apostam na densidade narrativa do cinema, se torna imprescindível que as ações dos personagens sejam guiadas pelas disjunções e conjunções do seu “eu consigo mesmo”, e não as ações causadas pelos outros personagens. Esta impregnação pode ser percebida na melancolia da dona de casa que passa os dias monótonos a custas de cigarros de maconha.

Com esta análise, que pode ser aplicada a qualquer filme, podemos perceber a utilidade de neutralizar os elementos externos a esses percursos internos dos personagens, para que se sobressaiam as motivações espontâneas, e não aquelas programadas pelas ações. Esse mesmo arranjo estético de “O Som ao Redor” foi utilizado por Marcelo Gomes em “Cinema, Aspirinas e Urubus”. O filme narra a história de dois homens rodando de caminhão o interior do nordeste, um culto e outro rude. Concentra-se na ação dos dois personagens, onde a “imagem ao redor” tem a mesma função de “o som ao redor”, e foi conseguida através da fotografia, neutralizando o sertão nordestino para uma paisagem quase imperceptível, totalmente embranquecida, como se fosse uma película em volta dos dois personagens em seu caminhão. A paisagem árida do interior do nordeste desaparece para dar lugar a uma terra menos amarelada, a cor das folhas e da terra seca, por uma paisagem branca como se ali houvesse uma leve camada de neve.

Assim como o “Som ao Redor”, o filme de Marcelo Gomes se fecha com uma cortina para valorizar a história que os personagens precisam desempenhar sendo apenas eles mesmos. Essa experiência de anular o “ao redor” foi radicalizada por Lars von Trier em “Dogville” e “Manderlay”, por exemplo, onde ele suprimiu os cenários externos, deixando presentes apenas objetos de cenário, e escureceu o “ao redor” com um forte negrume, com o intuito de reforçar a iluminação nos personagens, e também de embrulhar a alma de cada um com o negrume que os estados patêmicos (doentios) do espírito tem dentro de cada um. Uma busca de impregnação do sentido mais profundo dos personagens com a escuridão que os cercam.

 

Por Hermes Leal, escritor e documentarista, mestre em Cinema pela ECA/USP, doutorando em Semiótica na FFLCH/USP, e autor do romance “Faca na Garganta” e da biografia “O Enigma do Cel. Fawcett”, entre outros livros.

One thought on ““O Som ao Redor” e o cinema de estética

  • 10 de janeiro de 2013 em 14:29
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    Ótimo e oportuno texto Hermes. Importante: a Revista está cumprindo um papel essencial, ao dar espaço e mostrar os rumos, discussões e debates novos diretores e um novo momento no cinema brasileiro; momento que, penso, tem em O SOM AO REDOR um ponto de inflexão.

    Parabéns; Humberto

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