Era uma vez na Alemanha

“Eu precisei simplificar tudo para não destruir a complexidade da história”, disse Christian Petzold, em uma recente entrevista, ao se referir a “Phoenix”, seu último filme, um conto cinematográfico (o termo, como veremos, não é usado aleatoriamente), sombrio e melodramático. Aos leitores menos familiarizados com a obra do realizador alemão, essa parece ser uma frase de efeito, talvez um tanto paradoxal. Ela, contudo, traduz uma espécie de máxima do cinema de Petzold (“Barbara” [2012], “Yella” [2007], “Jerichow” [2009]). Um cinema de sutilezas e transparência desconcertantes. Um cinema de grandes temas. Um cinema de personagens. Um cinema sobre a Alemanha e suas feridas mal cicatrizadas, do nazismo ao muro de Berlim.

O filme começa com a imagem de um rosto envolto em gaze. Uma mulher. Nelly Lenz (Nina Hoss) é seu nome. Ela é uma sobrevivente dos campos de concentração nazistas, e, embora tenha escapado da morte, teve o rosto totalmente desfigurado. Sua amiga, Lene Winter (Nina Kunzendorf), leva-a de volta a Berlim, onde passará por diversas cirurgias. Enquanto se recupera e tenta se acostumar com o novo rosto, Nelly decide procurar Johnny (Ronald Zehrfeld), o marido, que tudo indica ter sido quem a denunciou às autoridades alemãs. Certo dia, encontram-se. Convencido de que Nelly morreu, Johnny não a reconhece, mas propõe-lhe um acordo: dadas as semelhanças com a esposa que julga falecida, pede-lhe que finja ser ela própria e o ajude a reclamar uma herança em seu nome.

“Phoenix”, uma adaptação de “Le Retour des Cendres”, de Hubert Monteilhet, é mais um roteiro de Petzold e Harun Farocki – outro grande cineasta alemão, falecido em 2014. E é, sem dúvida, o filme da dupla que mais faz referências ao cinema, envolvendo clássicos do cinema noir americano, de Edgar G. Ulmer a Jac-ques Tourneur. Nelly caminha pelos corredores do hospital como se estivesse em “Os Olhos sem Rosto” (1953), de Georges Franju, e ouve do médico que ter uma visagem nova é “uma grande vantagem”. Ela declina, quer seu rosto de volta, o que se mostrará impossível. Johnny não a reconhece, embora perceba algumas semelhanças. Ele a ensinará a ser mais como ela. Nelly, vestida com um rosto que não era dela, passa dolorosamente a ver a si mesma através dos olhos de outra pessoa. E, assim, o filme se transforma em uma curiosa variação de “Um Corpo que Cai” (1958). “Phoenix” é um filme de cinema. Parece meio óbvio, mas não é. Este é um dado da fotografia, da ambientação, como se o que vemos fosse o eco fantasmático de alguma coisa.

Nelly é Nina Hoss, uma das atrizes mais expressivas do cinema contemporâneo. E “Phoenix” estará menos nos mistérios e reviravoltas de sua trama do que na intensidade do olhar de sua protagonista. Sua fragilidade e o confronto com o passado são traduzidos por um olhar doce, doído, esperançoso. Ela não só parece querer permanecer na Alemanha, ao contrário de sua amiga Lene. Nelly acredita na possibilidade de retornar a um momento anterior à guerra. Johnny é teimoso, pouco gentil. Sua miopia é de origem moral e ele parece reprimir a imagem que tem de si mesmo. Johnny também tem seus desejos e motivações.

Petzold costura o jogo entre os protagonistas movendo-se do pessoal ao histórico e de volta, envolvendo uma série de convenções de drama e ambientação e refletindo a experiência dessas personagens com muito esmero. É uma coisa curiosa. O mistério está lá, aflorado. Ele se faz sentir, chama atenção para si, alimenta nossa curiosidade. Esta, no entanto, não se mantém exatamente na espreita pela resolução do caso. Claro: nos perguntamos se Johnny traiu Nelly, mas nossa atenção é logo direcionada aos olhares, aos gestos, aos detalhes. Não há tempo para por quês, nem conjunções condicionais. A história segue e nós vamos com ela. O mundo paranoico e instável de “Barbara”, quando qualquer um poderia ser um espião, é ainda mais escorregadio, incerto, doloroso – aliás, uma experiência bem curiosa seria rever “Barbara” com “Phoenix” no retrovisor, pois o país dividido do primeiro se ergue justamente nas ruínas do segundo. Lá, eles eram observados o tempo todo e o filme jamais se mostrava voyeur. Aqui, eles fazem de conta e o filme não se transforma em um estudo das aparências, ao contrário, é nelas que se revelam os personagens. Nelly e Johnny estão sempre atuando. Vemos, contudo, sempre e ao mesmo tempo, uma máscara e uma alma.

Ao fim, “Phoenix”, um dos mais bem arquitetados trabalhos dramatúrgicos do cinema recente, se transforma numa espécie de filme de zumbis, de fantasmas encarnados. Nada será como antes, eles não nos deixarão esquecer.

 

Phoenix
(Alemanha, 98 min., 2014)
Direção: Christian Petzold
Distribuição: Imovision

 

Por Julio Bezerra, crítico de cinema

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.