Mostra de Cinema de Gostoso aposta em filmes coletivos, de baixo custo e temáticas alternativas

Por Maria do Rosário Caetano, de São Miguel do Gostoso

A Mostra de Cinema de Gostoso exibirá oito longas-metragens brasileiros e dezenas de curtas em um imenso telão montado na Praia do Maceió, na pacata e aprazível São Miguel do Gostoso, cidade do litoral potiguar. O festival, que chega à sua quinta edição, começa nesta sexta-feira, 23, e prossegue até terça, 27 de novembro, quando serão entregues os troféus Luís da Câmara Cascudo, homenagem ao folclorista potiguar, aos melhores concorrentes.

Os filmes serão projetados, sob a luz do luar e das estrelas, no coração da pequena cidade, com entrada franqueada a todos os interessados da zona urbana e rural, inclusive de municípios vizinhos. Há cadeiras para mais de 500 espectadores, mas muitos preferem ver os filmes deitados na areia da principal praia do antigo vilarejo hippie. A Mostra de Cinema Gostoso é organizada pelos cineastas Eugênio Puppo e Matheus Sundfeld, com participação ativa do Coletivo Audiovisual do município.

No principal segmento do festival, serão exibidos os filmes “Meu Nome é Daniel”, do carioca Daniel Gonçalves, “Sócrates”, produção santista dirigida por Alex Moratto, “Inferninho”, dos cearenses Guto Parente e Pedro Diógenes, e “Fabiana”, da realizadora goiana Brunna Laboissière.

Para a Mostra Panorama, foram escalados o pernambucano “Azougue Nazaré”, de Tiago Melo, o baiano “Ilha”, de Glenda Nicácio e Ary Rosa, e os paulistas “Lembro Mais dos Corvos”, de Gustavo Vinagre, e “Elegia de um Crime”, de Cristiano Burlan.

Os longas e os curtas-metragens serão debatidos, diariamente, na Pousada dos Ponteiros, arejada pelo vento e pelo balançar dos coqueiros. Afinal, São Miguel do Gostoso é conhecida, devido à sua localização (no extremo nordeste do país), como “o lugar onde o vento faz a curva”. Os ventos que varrem o município são de tal forma abundantes, que para lá se dirigem os amantes do kitesurfe, um dos esportes radicais preferidos por jovens.

Eugênio Puppo, que seleciona os longas e os curtas em parceria com estudantes das Oficinas de Audiovisual de Gostoso, segue conceitos recorrentes: filmes que fogem da gramática convencional, são fruto de coletivos audiovisuais e consomem baixos (ou baixíssimos) orçamentos. E, o que é muito importante, valorizam temáticas ligadas aos direitos da mulher e das minorias LGBTQI.

Este ano, um filme, em especial, deve causar frisson na pequena Gostoso: “Meu Nome é Daniel”. Trata-se de documentário de longa duração, realizado por jovem portador de deficiência motora (Daniel Gonçalves), advinda de doença ainda não diagnosticada pelos médicos. Embora, como ele demonstra no filme, tenha se submetido, desde a infância, a verdadeira via-crucis de exames.

Nascido em Barra Mansa, estado do Rio, em uma família de bom poder aquisitivo, Daniel apresentou, já na infância, sintomas de distúrbio que o tornava diferente das outras crianças. A família fez de tudo para que ele fosse curado. E ele, de sua parte, fez de tudo, e um pouco mais, para não ser tratado como um coitado. Desenvolveu raro senso de humor e nunca apelou para o vitimismo. Formou-se em Jornalismo na PUC-Rio, fez pós-graduação em Cinema na respeitada FGV (Fundação Getúlio Vargas), trabalhou na TV Globo por três anos e tornou-se cineasta. Dirigiu dois curtas documentais (“Luz”/2012, e “Pela Estrada a Fora”/2015), até chegar ao primeiro longa, que narra sua própria história.

“Meu Nome é Daniel” soma muitas imagens de arquivo (vídeos domésticos, que o mostram desde pequenino) e imagens atuais, construindo sensível e nunca apelativa reflexão sobre sua condição.

São Miguel do Gostoso não terá oportunidade de conhecer o jovem cineasta, pois ele está participando do maior festival de cinema documental do mundo, o de Amsterdã, na Holanda. Foi selecionado pela mostra (competitiva) Luminous, destinada “a filmes de temáticas universais realizados a partir de histórias pessoais”. Para apresentar e debater o filme, o festival potiguar receberá o co-roteirista e montador Vinícius Nascimento, parceiro de primeira hora de Daniel. Vinícius é também cineasta e está realizando longa documental sobre os maiores montadores da história do cinema brasileiro.

Vem da Baixada Santista outro dos concorrentes ao Troféu Câmara Cascudo, “Sócrates”, de Alex Moratto, filho de mãe brasileira e pai norte-americano, formado pela Escola de Artes da Universidade da Carolina do Norte. Seu primeiro e sintético (apenas 71 minutos) longa-metragem foi produzido pelo Instituto Querô, ONG que promove oficinas de capacitação de jovens em Santos, no litoral paulista. O filme vem tendo boa aceitação em festivais nacionais e internacionais.

Sócrates, o protagonista, é um jovem da Baixada Santista, batizado pelo pai, corintiano fiel, com o nome do mais famoso dos jogadores do Corinthians, o médico Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Mas os anos se passaram, e o adolescente afastou-se da figura paterna. Vivia na companhia da mãe, num pequeno apartamento alugado, quando a morte súbita dela o jogou em situação difícil. Menor de idade, sem dinheiro e sem emprego, como sequenciar sua vida?

Para tornar a situação ainda mais difícil, Sócrates é negro e homoafetivo. Como pagar o aluguel, como se alimentar, como sobreviver? Como livrar-se dos organismos de tutela a menores de idade? Estes são os desafios que a ele se impõem. Sócrates os enfrentará perambulando por lojas e fábricas que possam empregá-lo, buscando abrigo no apartamento de outro rapaz, mas a situação só se agravará. Em sua peregrinação, o garoto de 15 anos oferecerá ao público um duro retrato das cidades gêmeas de São Vicente (terra do jogador Robinho) e de Santos. Uma Santos sem a alegria da Vila Belmiro (estádio do Santos Futebol Clube), sem a avenida litorânea, sem belos e centenários casarões. Estes e outros cartões postais não terão vez. Mesmo o porto, símbolo da opulência econômica do município, será visto em situação nada animadora.

Tammy Weiss, coordenadora do Instituto Querô, e produtora de “Sócrates”, detalha o processo de escolha de locações do filme: “no roteiro original, estavam previstas 80 ambientações diferentes. Acabamos reduzindo para 50 locações e, mesmo assim, foi um trabalho complexo”. Além do Porto e da praia, “filmamos na favela México 70, localizada no bairro vicentino de Vila Margarida e, também, em uma favela de palafitas, na área continental de São Vicente, e nos mangues que a compõem. Sem falar nas ruas de comércio popular”.

Além da Mostra Internacional de São Paulo (na qual ganhou prêmio especial do Júri Oficial), do Festival do Rio e do Mix Brasil, “Sócrates” participou de festivais internacionais, sendo o mais recente, na Grécia. E agora vai para o Festival do Novo Cinema Latino-Americano de Havana.

A competição completa-se com o cearense “Inferninho”, de dois integrantes do Coletivo Alumbramento, Parente & Diógenes, e “Fabiana”, de Brunna Laboissière. Os dois, como “Sócrates”, dialogam com o universo homoafetivo.

O nome “Inferninho” vem do bar que ambienta a narrativa e pertence a Deusimar. Num pequeno palco, uma cantora desafinada se apresenta. Um dia, Jarbas, um marinheiro misterioso, chega ao Inferninho e brota, entre ele e Deusimar, paixão à primeira vista. Em outro dia, chega ao mesmo Inferninho, um representante do governo. Ele quer comprar o imóvel e erguer, no lugar dele, um grande empreendimento imobiliário. Quem viu o filme, o qualificou como o longa mais fassbinderiano entre os criados por integrantes do Coletivo Alumbramento.

“Fabiana” é um documentário sobre rodas. As rodas do caminhão (uma jamanta daquelas!) dirigido pela transexual Fabiana Camila Ferreira, no qual tem assento privilegiado a efusiva Priscila Cardoso, sua namorada. Depois de 30 anos rodando pelos estradões brasileiros, Fabiana fará sua última viagem. É chegada a hora de aposentar-se. Leva com ela a companheira rebelde e atrevida, motivo de muitas alegrias, mas de muitas contrariedades.

Para a Mostra Panorama, também foram escolhidos filmes que receberam importantes prêmios em grandes festivais brasileiros. O pernambucano “Azougue Nazaré”, de Tiago Melo, mostra duelo entre forças evangélicas e o Maracatu, folguedo popular da gente dos canaviais nordestinos. Recebeu três troféus Redentor no Festival do Rio (Especial do Júri, ator e montagem).

“Ilha”, segundo longa-metragem da dupla Nicácio e Rosa, oriunda de Cachoeira-Recôncavo Baiano (a mesma de “Café com Canela”), trabalha metalinguisticamente sua intrincada narrativa. Um jovem ilhéu sequestra festejado cineasta baiano e exige que ele realize um filme sobre sua vida e relações afetivas. “Ilha” recebeu prêmios no Festival de Brasília e venceu a mostra Novos Rumos, do Festival do Rio.

Os paulistas “Lembro Mais dos Corvos”, de Gustavo Vinagre (selecionado para o próximo Festival de Havana), e “Elegia de um Crime”, de Cristiano Burlan, também encontraram vitrines em diversos festivais brasileiros. Vinagre, formado em Letras, pela USP, e em Roteiro, pela Escola Internacional de Cinema de San Antonio de los Baños, em Cuba, ouve histórias contadas por Júlia Katharine, ao longo de uma noite de insônia.

Burlan, premiado pelo Festival é Tudo Verdade com o potente “Mataram meu Irmão”, fecha ‘trilogia do luto’ sobre morte brutal de parentes próximos. Primeiro o pai (“Construção”/2007), depois o irmão (2012) e, agora, a mãe (“Elegia para um Crime”), assassinada pelo companheiro, que segue longe do cárcere, já que a Polícia não se empenhou em encontrá-lo.

A competição de curtas-metragens nacionais conta com oito concorrentes, sendo três potiguares (“Codinome Breno”, de Manoel Batista, “P’s”, de Lourival Andrade, e “Ainda que Eu Ande pelo Vale das Sombras”, de Helio Ronyvon), um gaúcho (“Catadora de Gente”, de Mirela Kruel), dois pernambucanos (os premiadíssimos “Guaxúma”, animação de Nara Normande, e “Nova Iorque”, ficção de Leo Tabosa), um paulistano (“Mesmo com Tanta Agonia”, de Alice Andrade Drummond), e um mineiro (“Teoria sobre um Planeta Estranho”, de Marco Antônio Pereira).

A produção local, mais uma vez, levará a plateia da Mostra de São Miguel do Gostoso ao delírio (afinal atores e equipes locais se divertem ao se verem na gigantesca tela fincada na areia). São cinco os concorrentes a melhor filme gostosense, todos fruto do trabalho do Coletivo Nós do Audiovisual: “Autômato do Tempo”, “Derradeiro”, “Medo é Moita”, “O Grande Amor de um Lobo” e “Pescadores”.

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