O Pasolini de Ferrara

É bem sabida a dívida que Abel Ferrara tem com alguns do principais nomes do cinema moderno. É o caso de Pier Paolo Pasolini, cuja vida Ferrara sempre desejou transformar em filme – chegou mesmo a bolar, ainda nos anos 80, um projeto com Zoë Tamerlis Lund, estrela inesquecível de “Sedução e Vingança” (1981), no papel de Pasolini em versão feminina. Essa associação, contudo, está longe de ser óbvia. Ferrara é cineasta de uma certa tradição narrativa do grande cinema americano, de Nicholas Ray a John Cassavetes. Está sempre em busca da verdade do momento, do ponto de inflamação, do estalo da contradição. Seu cinema é uma espécie de composição dissonante: corpos, espaços, músicas, cores e ritmos, incoerência narrativa e questões morais, abertura estética e de espírito, e as mais variadas obsessões. Bem, dito assim, uma certa afinidade se faz sentir com o projeto cinematográfico de Pasolini, ainda que timidamente. Viver é algo deliciosamente perturbador no cinema de ambos. É estar às voltas com um êxtase incontornável, entre uma poderosa inclinação para a animalidade e as obrigações limitadoras da vida em sociedade. Ok. Estamos falando de Ferrara. Estamos falando de Pasolini. Estávamos todos ansiosos por este filme.

“Pasolini” (coescrito por Maurizio Braucci, colaborador constante de Matteo Garrone) sintetiza o último dia de vida do realizador de “Salò ou os 120 Dias de Sodoma” (1975). O cineasta italiano regressava de Estocolmo, onde se encontrou com Ingmar Bergman. Ele passa o dia em casa, em família. Concede uma entrevista, recriando, em sua fala, de forma grave e solene, uma análise sobre o novo totalitarismo emergente e seu projeto de ontologia da resistência, sexual e política. E, à noite, leva o jovem Pelosi a um restaurante e, pouco depois, à praia. Ferrara ainda cria imagens para “Petróleo”, romance póstumo do italiano, e imagina o que poderia ter sido o filme que o cineasta deixou por fazer, “Porno-Teo-Kolossal” – o longa seria estrelado por Ninetto Davoli e Eduardo De Filippo (Davoli, na versão de Ferrara, interpreta o papel De Filippo).

“Pasolini” é, certamente, um longa de clara admiração pelo cineasta italiano. Ferrara tenta, aqui e ali, uma espécie de glorificação de seu ídolo, um profeta, um cronista, arrancado por demais depressa do nosso convívio. Willem Dafoe e seus óculos nos levam a Pasolini, em uma interpretação de absoluta entrega – apesar da alternância aparentemente aleatória do inglês e do italiano entrar por vezes muito mal nos ouvidos. Contudo, a estrutura fragmentada em mosaico, costurada por cenas entre o “real” e a “ficção”, soa na maioria das vezes sem propósito, bem como a fábula pasoliniana revela, como era de se esperar, um Ferrara talvez um tanto desconfortável. Mais do que isso. A tragédia e a resistência de que fala o personagem jamais ganha corpo neste filme. Ferrara não consegue materializar a força do pensamento e do cinema de Pasolini. Seu filme não funciona muito bem seja como elegia, retrato ou análise. “Pasolini” é um longa respeitoso, um tanto tímido, não exatamente sobre Pasolini ou pasoliniano. Talvez, mais simplesmente, um filme de Ferrara para Pasolini. Talvez.

Ainda assim. Estamos falando de Ferrara. Estamos falando de Pasolini. E, por vezes, a graça se espreita pelos planos. Ferrara povoa a primeira metade de seu filme com cenas nada dramáticas, um tanto até comoventes em sua simplicidade. Pasolini em família, com sua amada mãe Susanna (Adriana Asti, ex-ator de Pasolini e Bertolucci, agora na casa dos oitenta) e seus amigos, jogando futebol com homens bem mais jovens do que ele, trabalhando em sua máquina de escrever. Nestes momentos, “Pasolini” se encontra.

Pasolini
França/Itália/Bélgica, 84 min., 2014
Direção: Abel Ferrara
Distribuição: Imovision
Estreia: 5 de novembro

 

Por Julio Bezerra

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.