Duas mulheres e o amor na Nova York dos anos 50
Todd Haynes sempre teve uma atração por personagens femininas. Nem todas elas eram exatamente fortes, embora sempre cultivassem personalidades desviantes, exemplos exemplares de comportamentos “anormais”. As mulheres dos filmes e minissérie de Haynes cambaleiam por um tédio intensificado, algo que ameaça o próprio papel que elas respeitosamente construíram – ou melhor, que construíram para elas. Seja a história da cantora Karen Carpenter (“Superstar”, 1987-88), a saga da banda “Velvet Goldmine” (1998) ou “Longe do Paraíso” (2002), o cinema do realizador americano, festejado como um dos responsáveis por levar a questão homossexual para além do dito cinema gay, nos oferece retratos melodramáticos sobre o desejo por uma ordem perfeita e a força dos desviantes que nela vivem. “Carol”, seu mais novo filme, baseado no romance “The Price of Salt”, de Patricia Highsmith, nos traz a história de Carol e Therese, que interrompem o discorrer aparentemente incontornável de seus cotidianos da Nova York dos anos 50, para viver algo radical: o amor. E o amor, vale dizer, é para Haynes sempre algo inesperado, como um presente de grego, que assim, de repente, espalha pontos de interrogação por todos os lados.
Therese Bellivet (Rooney Mara) é uma jovem empregada de uma loja de departamentos de Manhattan, bonita, indecisa e ilegível – “Como algo arremessado para fora do espaço”, Carol dirá a ela. Carol Aird (Cate Blanchett) é uma mulher atraente e sofisticada, prisioneira de um casamento infeliz. Elas se encontram na seção de brinquedos da loja onde Therese trabalha. Carol está comprando uma boneca e esquece as luvas no balcão. Um primeiro encontro ao sabor dos olhares sedutores de Carol, que caminha como uma espécie de predadora, e dos gestos tímidos, porém curiosos de Therese. Elas logo se reencontram e um caso de amor em tons menores se inicia. Um caso cheio de perigos. Carol pode perder a guarda da filha. Seu marido, ressentido (Kyle Chandler), força-a a escolher entre Therese e a menina.
É curioso: Haynes, trabalhando pela primeira vez em um filme cujo roteiro não foi escrito por ele, refere-se menos a Douglas Sirk – o que não quer dizer que seu gosto pelo cinema clássico americano não esteja presente: é possível sentir, aqui e ali, “Crepúsculo dos Deuses” (1950), “Desencanto” (1945), Greta Garbo. “Carol” é algo um tanto diferente de “Longe do Paraíso”, onde tudo era, consideravelmente, mais melodramático e irônico, incluindo as atuações, claramente, um tom acima. “Carol” é mais seco (para não dizer, como faremos adiante, frio) e, embora seja mais um belamente acabado filme de época, transborda uma impressão, digamos, mais urbana e moderna. Uma impressão que emana das composições fantásticas da fotografia de Edward Lachman, em uma conjugação muito bem sucedida com a cidade de Nova York e os diversos espaços filmados. O quadro é sempre refratado, interrompido, dividido. Os personagens estão à sua mercê. Seus rostos são sempre flagrados em planos diferentes, por trás das janelas ou outras superfícies refletoras e/ou transparentes.
Haynes é cineasta dos mínimos detalhes. É evidente que tudo neste filme teve seu dedo, sua atenção. E, por vezes, perceber a onisciência do diretor enquanto vemos seu filme, não é algo lá muito animador. Quer dizer, os elementos estão todos lá, brilhando: a fotografia, a trilha sonora, a direção de arte, os temas, as atrizes. Mara é uma espécie de revelação. Blanchett é irresistível. Contudo, algo em “Carol” parece fora do lugar. Talvez, seja a questão do ponto de vista. “The Price of Salt” é todo ele centrado em Therese. O roteiro de Phyllis Nagy, no entanto, se baseia numa espécie de inversão que, na verdade, jamais se concretiza a contento. A questão é que, embora sejam convincentes em suas respectivas fragilidades, as personagens são muito menos felizes na encenação do amor entre elas – e, claro, não ajuda em nada a ansiada (por nós e por elas) cena de sexo ser tão pouco calorosa. Não que o filme não tenha seus momentos: a conjugação dos olhares das personagens e os arranha-céus de Nova York, o abalo que o corpo de Carol atravessa quando Therese a toca, casualmente, pela primeira vez. Haynes, é verdade, continua brilhante – vide o belo falso final feliz deste filme, por sinal, bem ao estilo de Sirk. “Carol”, no entanto, tinha tudo para ser mais.
Carol
(Reino Unido/EUA, 118 min., 2015)
Direção: Todd Haynes
Distribuição: Mares Filmes
Estreia: 14 de janeiro
Por Julio Bezerra