Melodrama, telenovela e violência
O formato narrativo conhecido como folhetim desenvolveu-se inicialmente na literatura e posteriormente no cinema e na televisão seguindo os paradigmas do melodrama, do velho e bom melodrama antes adotado na ópera e no teatro. Melodia e ação, música e narração, histórias românticas contadas de maneira enfática, nas fronteiras da exacerbação, a sagração do over. Emoções à flor da pele, dor e alegria saindo pelos poros, conflitos sentimentais (anos atrás escrevi um texto sobre o assunto com o título Te Odeio, meu Amor). Essa exteriorização, esse impudor psicológico, esse jeito intenso de narrar espalhou-se por todo o Ocidente a partir do século 17, sempre centrado nas distonias amorosas.
Encontrou solo fértil na América Latina mestiça, que cultuou essa opção dramatúrgica em seu sentido radical, como histórias de amor profundo. A violência psicológica ou física contextualizada nos avatares e azares do amor e menos presente em cena, bem menos, do que o fogo no coração dos apaixonados. O cinema latino-americano chegou aos seus primeiros sucessos mundiais montado no melodrama – à moda argentina na década de 1940, com exportação de filmes com Libertad Lamarque e Hugo del Carril para a Europa, e à moda mexicana nos anos 1940 e 1950 com os filmes de Emilio “El Indio” Fernandez e o carisma de Pedro Armendariz e Maria Félix, la mujer más bella del mundo.
Paradigmas sentimentais
Na Europa, o melodrama foi se transformando em distintos estilos e absorvendo preocupações naturalistas ou realistas dos autores e atores, principalmente na França, a partir do século 19, quando os enredos começaram a incluir assassinatos e perversões. Tanto que o Boulevard du Temple, uma rua com teatros que apresentavam melodramas, foi apelidada pelo povo de Boulevard du Crime. Também na Alemanha e na própria Itália, onde o melodrama pode ter começado, a essência amorosa de suas tramas passou a ter menos importância que as disputas no terreno social e material, passou a funcionar como causa de outra coisa. Tanto que, hoje, os melhores dicionários definem melodrama como “drama de situações violentas e exageradas” (até no “Aurélio” está assim).
A telenovela tem sua semente nas novelas radiofônicas dos anos 1940. Tudo indica que surgiu no México, no alvorecer da televisão, com a adaptação para a telinha de um sucesso radiofônico mundial, O Direito de Nascer, do cubano Félix B. Caignet. A novela radiofônica era puro melodrama clássico e levou essa sua característica para a TV, razão do enorme sucesso de O Direito de Nascer (o México fez três versões da telenovela, o Brasil fez duas versões, na TV Tupi, e também transmitiu a mexicana no SBT). A filha de um homem poderoso fica grávida de um rapaz de uma família inimiga, tipo Romeu e Julieta, e é internada em um convento; a empregada negra cria o menino em uma fazenda; ele, já adulto e médico, salva a vida do avô que o separou de sua mãe. Ninguém é assassinado na história, a treliça do relato apoia-se exclusivamente nos sentimentos e sensações e o enredo se desenrola a partir de um gancho angustiante: a única pessoa que sabe do segredo do menino branco que tem uma mãe negra fica muda e paraplégica. As armas só aparecem em uma cena, quando a empregada negra evita que um sicário mate o recém-nascido.
Cenários de ódio
O que me inspirou essas anotações foi ouvir de um ilustre intelectual que o melodrama, em sua acepção clássica, só subsiste hoje nas telenovelas. Fui averiguar nas telenovelas transmitidas à noite, vi capítulos da turca Fatmagul – A Força do Amor na Band (que atualmente transmite folhetins turcos) e dei uma boa olhada em A Regra do Jogo, da Globo. Na turca, com vários homicídios, que já começa com um estupro, o herói e o vilão disputam a mocinha a tiros e machadadas e também a mocinha aparece atirando. A brasileira é, integralmente, sobre violência. Não se trata de uma reflexão dramatúrgica-psicológica sobre causas do comportamento sociopata e sanguinolento e sim de um espetáculo, plástico e emocional, sobre o ato de matar o semelhante (incluindo preliminares para aquecer, como tortura e privação da liberdade).
Achei que o ilustre intelectual estava se referindo apenas às telenovelas das seis da tarde como Êta Mundo Bom, que é sobre um bebê abandonado pela família, como em O Direito de Nascer. É adotado por um casal e se apaixona pela filha do casal, digamos um quase incesto. Ou então que estava alugando antigas telenovelas. Ou então que ele não se referia à acepção clássica do melodrama e sim ao significado que a maneira romântica e derramada de contar histórias adquiriu nos últimos tempos: situações não apenas exageradas mas também violentas, distanciando-se cada vez mais de seu sentido etimológico gestado no grego, do melodrama que gerou o adjetivo meloso mas que, na minha opinião, não deveria ser forçado a se associar ao criminoso.
Ver as mencionadas telenovelas turca e brasileira ou as telesséries policiais que inundam a TV paga (e avançam pela TV aberta) é como se estivesse comendo farinha do mesmo saco. Processadas de maneiras diferentes, mas a mesma farinha, a mesma opção pela “beleza da brutalidade”. A dramaturgia reflete a humanidade, é claro. O problema é a dosagem de cada aspecto dessa humanidade. Um percentual enorme dela (já li que são entre 80% e 90%) jamais tocaram, sequer, em uma arma de fogo.
Por Orlando Senna, escritor e cineasta