Walter Lima Jr.: em busca do “cinema de atmosfera”

O cineasta Walter Lima Jr. (Niterói, 1938) lança nesta quinta-feira, 10 de novembro, seu décimo-terceiro filme de ficção: “Através da Sombra”, baseado na novela “A Volta do Parafuso”, de Henry James, publicada em 1898. Para muitos, trata-se de “um filme de horror”.

“Um filme de atmosfera”, rebate o realizador. Um filme que segue pelos caminhos trilhados por “A Ostra e o Vento”, “Inocência” e “Ele, o Boto”. Walter entende que estes longas-metragens contêm, sim, elementos do cinema de gênero, mas “buscam climas, atmosferas, ao invés de sustos”.

“Através da Sombra” tem como protagonista a atriz pernambucana Virgínia Cavendish, também produtora do filme (em parceria com Maria Dulce Saldanha). Ela contracena com Domingos Montagner (1962-2016), em um de seus últimos trabalhos no cinema, Ana Lúcia Torre, Michel Gomes, Romeu Evaristo e os infantes Mel Maia e Xande Valois. O fotógrafo Pedro Farkas e o cenógrafo Clóvis Bueno destacam-se na ficha técnica do filme e fazem aparições afetivas como “atores”.

A trama de “Através da Sombra” gira em torno de Laura (Virgínia Cavendish), contratada pelo irmão (Domingos Montagner) de fazendeiro morto, para ser professora de crianças órfãs. Elas são sobrinhas dele (Mel Maia e Xande Valois) e vivem em grande propriedade rural, no Brasil do começo dos anos 1930. Com a queda da Bolsa de Nova York, os cafeicultores são arremessados na terrível crise e obrigados pelo governo a queimar grandes estoques.

É em meio à fumaça (gerada pelo fogo que devorava o maior produto de exportação do Brasil, à época) que a também órfã Laura chega à bela fazenda fluminense para atuar como preceptora dos meninos. Aos poucos, ela constatará que as crianças estão sob influência de espíritos hostis e empenha-se em desvendar o mistério. Só que, quanto mais ela se envolve naquele mundo, mais ambíguo ele lhe parece. A ela e a nós, espectadores.

Virgínia Cavendish e Xande Valois © Maria do Rosário Caetano

Em conversa com a imprensa, Walter Lima Jr. respondeu, com a perspicácia de quem foi crítico de cinema atuante, a três questões da Revista de CINEMA e relembrou seu curto, mas intenso, trabalho com o ator Domingos Montagner. Detalhe importante: o cineasta, que era cunhado de Glauber Rocha (marido da atriz Anecy Rocha, com quem trabalhou em “Menino de Engenho”, “Brasil Ano 2000” e “A Lira do Delírio”) foi também o “introdutor” de Júlio Bressane no cinema: o futuro diretor de “O Anjo Nasceu” atuou como assistente de Walter, em “Menino de Engenho”, filmado em 1965, na Paraíba.

Revista de CINEMA – Você fez um filme de horror, mas parece rejeitar o rótulo…

Walter Lima Jr. – Não fiz um filme de terror. Este tipo de filme aposta em sustos e sangue. Este não é o caso de “Através da Sombra”. Fiz um filme de atmosfera, segui a mesma trilha de “A Ostra e o Vento”, “Inocência”, “Ele e o Boto”. Laura, a professora, é um mulher reprimida sexualmente, que se veste de negro (luto pela perda da mãe) e se abotoa até o pescoço. Este clima de repressão sexual estava presente em “A Ostra e o Vento”, em “Inocência”. E até em “Ele, o Boto”. Faço filmes centrados em personagens, que contam histórias e buscam atmosferas. Não faço filme para assustar as pessoas, não estou atrás de gritos.

Revista de CINEMA – Mas até a canção de ninar (“A Menina e a Figueira”) que você escolheu causa pavor. Ela foi usada para “ninar” muitas gerações de crianças, incluindo Julia Mann, mãe do escritor Thomas Mann, na infância brasileira dela (“Não corte os meus cabelos/ minha mãe me penteou, a madrasta me enterrou/ pelos figos da figueira”).

WLJr. – Esta canção é realmente apavorante. Fui ninado com ela. Morríamos de medo e fascínio ao mesmo tempo. Ela ajuda a criar a atmosfera do filme.

Revista de CINEMA – Há quem o veja como o integrante do Cinema Novo que trocou filmes mais inventivos (caso de “A Lira do Delírio”) por narrativas mais tradicionais. Há quem tenha “A Ostra e o Vento” como filme aparentado aos melodramas da Vera Cruz. Você estaria mais ligado à tradição narrativa de John Ford que, por exemplo, aos caminhos trilhados por Nelson Pereira dos Santos (a partir do Neo-Realismo), Hirszman e Glauber (Eisenstein), Saraceni (o Rosselini de “Viagem à Itália” e Visconti)?

WLJr. – Cada um vê meus filmes e os classifica como lhes convém. Espero que ao vê-los, as pessoas, críticos ou espectadores, prestem atenção em seus movimentos internos. Sinceramente, não creio que “A Ostra e o Vento” tenha a ver com os filmes da Vera Cruz, uma fórmula importada, assumida e consumida, num determinado período de nossa história cinematográfica. Meu primeiro filme (“Menino de Engenho”) tinha já uma narrativa clássica. Há momentos em que temos vontade de transgredir, em outros, não. Cada filme é um filme. O que me interessa é contar uma história, entender de gente. Se a invenção não passar por isto, ela não me interessa. Não me sinto obrigado a ‘re-buscar’ supostas invenções. Parte dos realizadores investe gratuitamente neste caminho, quando deveria preocupar-se com o bem-narrar. Por que confundir o espectador? Quero me relacionar com aquilo que estou vendo, não ser afastado. Estar junto. Na minha avaliação, do que tenho visto no cinema brasileiro, que já passou por tantos ciclos, o melhor é o que está sendo feito em Pernambuco. Porque é de lá? Não, mas porque eles estão contando histórias, se comunicando. O que você se propõe a me contar? Então me conte. Não posso abdicar de minhas intenções para atender a uma suposta vanguarda. Bendito John Ford. Ele, como tantos outros, sentia, nos fazia rir ou chorar. Nos transportava pelos sentimentos.

DOMINGOS MONTAGNER

Um boxeador viril e sedutor

Walter Lima Jr. viu Domingos Montagner na TV e ficou impressionado com sua figura física. “Ele fugia totalmente do padrão televisivo, tinha cara de homem, nariz quebrado, uma presença muito forte”, constatou.

Um dia, num restaurante paulistano, o ator jantava com amigos. Walter sentiu vontade de abordá-lo e dizer que gostaria de dirigi-lo num filme. Mas resolveu não incomodar. A produtora que o acompanhava insistiu. Walter ainda pensou: “mas o papel é pequeno”. A produtora insistiu mesmo assim. O cineasta foi falar com Domingos. Fez o convite e o ator, que admirava o trabalho do diretor de “A Ostra e o Vento”, ficou motivadíssimo. Deu tudo certo.

Domingos Montagner e Virgínia Cavendish, em cena de "Através da Sombra"

“Bastaram” – lembra Walter – “dois dias de preparação para os movimentos da luta de boxe e alguns dias de filmagem” (o personagem recebe a recatada professora durante sessão de treinamento e exala virilidade por todos os poros, deixando-a perturbada).

Quando, em setembro último, Walter soube da morte de Montagner, por afogamento, no Rio São Francisco, ficou atordoado. “Que perda! Além de ótimo ator, ele era um sujeito sem empáfia, despojado e muito engraçado”.

A atriz Virgínia Cavendish destaca a importância de seu primeiro “e único” trabalho com Montagner: “quando filmamos aquela sequência da chegada da professora à casa dele, enquanto ele treinava boxe, foi como se já tivéssemos trabalhados juntos muitas vezes. Mas nunca atuáramos juntos. Criamos nossas cenas na base de olhares. O desaparecimento dele nos deixou profundamente abalados”.

O ator-mirim Xande Valois não contracena com Domingos Montagner em “Através da Sombra”. Mas chorou a morte do ator, com quem manteve intensa parceria na novela “Jóia Rara”, da TV Globo. Ele guarda com carinho fotos que fez com Domingos numa das locações do filme de Walter Lima Jr.

A produtora Maria Dulce Saldanha destaca “a sorte de ter contado com Domingos Montagner no nosso elenco, foi um presente de Deus”. E acrescenta: “ele fez poucos filmes, mas marcou-os de forma inesquecível”.

O ator paulistano, que morreu aos 54 anos, chamou atenção do público cinematográfico pelo seu carismático Coronel Raimundo, no filme “Gonzaga, de Pai pra Filho”, de Breno Silveira. Depois, fez mais sete longas-metragens.

Interpretou o pai do judoca Max Trombini, em “A Grande Vitória”, de Stefano Capuzzi. Em 2015, deu vida ao Afonso, de “Através da Sombra”, que chega agora aos cinemas, e ao Fábio, da delicada comédia romântica “De Onde Eu te Vejo”, que protagonizou ao lado de Denise Fraga. Em 2016, interpretou o “amante de aluguel” Corvo, em “Um Namorado para minha Mulher”, formando inusitado triângulo amoroso com os personagens de Ingrid Guimarães e Caco Ciocler. O filme vendeu 700 mil ingressos (tornando-se o segundo sucesso comercial do ator: o primeiro foi “Gonzaga, de Pai pra Filho”, visto por 1,5 milhão de espectadores).

O palhaço da companhia teatral e circense La Mínima, nascido no bairro do Tatuapé, atuou também em “Vidas Partidas”, inspirado em histórias de mulheres espancadas pelo marido, razão da criação da Lei Maria da Penha. Ainda por estrear estão “O Rei das Manhãs”, do montador (indicado ao Oscar, por “Cidade de Deus”) Daniel Rezende, cinebiografia de Arlindo Barreto, o Bozo, no qual interpreta um palhaço, e “O Rastro”, de J.C. Feyer.

FILMES DE WALTER LIMA JR.

FICÇÃO:

1965 – Menino de Engenho

1969 – Brasil Ano 2000

1970 – Na Boca da Noite

1978 – A Lira do Delírio

1978 – Joana Angélica

1983 – Inocência

1985 – Chico Rei

1987 – Ele, o Boto

1995 – O Monge e a Filha do Carrasco

1997 – A Ostra e o Vento

2001 – O Filho Predileto

2008 – Os Desafinados

2016 – Através da Sombra

DOCUMENTÁRIOS:

De curta e média-metragem (*)

1971 – Arquitetura, a Transformação do Espaço

1975 – José Lins do Rego

1977 – Conversa com Cascudo

1982: Em Cima da Terra, Embaixo do Céu

2004: Thomaz Farkas, Brasileiro

 

(*) Walter Lima Jr. integrou a equipe do programa “Globo Repórter” em sua melhor fase (anos 1970) e dirigiu “Cavalos”, “Violência”, “A Crise do Progresso”.

 

Por Maria do Rosário Caetano

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