Festival de Gramado – Uma noite de prêmios e muitos protestos
Por Maria do Rosário Caetano, de Gramado
Os termômetros marcavam 4 graus na Serra Gaúcha, mas dentro do Palácio dos Festivais o clima esquentou. Depois de exibir mais dois curtas (“Médico de Monstro”, de Gustavo Teixeira, e “A Gis”, de Thiago Carvalhaes) e “As Duas Irenes”, do goiano-carioca Fábio Meira, terceiro longa da competição brasileira, uma banda de rock pesado anunciou – com os versos convulsivos de “Tropa de Elite” (“osso duro de roer/pega um/pega geral”) –, a noite de entrega dos troféus da Assembleia Legislativa. Ou melhor, os premiados do Gaúchão (competição de filmes riograndenses). Os apresentadores – Marla Martins e Roger Lerina – com muita bossa e jogo de cintura, avisaram que duas emissoras de TV (Educativa e TV Assembleia) transmitiam a festa ao vivo.
Os primeiros laureados receberam seus troféus e prêmios em dinheiro, oferecidos pelo Legislativo, gaúcho com falas razoavelmente tranquilas (exceção para a equipe do prêmio de melhor produção-executiva, definido como “categoria absurda”, uma vez que “não bate na tela e, assim sendo, o júri não tem como avaliá-la”). Mas o clima esquentou para valer quando foi entregue o Prêmio Aquisição TV Educativa a dois filmes (“Gestos”, de Alberto Goldim e Júlia Cazarré, e “Sena, os Fios de Prosa”, de Marcelo Costa e Cacá Sena). Um dos diretores deste filme usou o microfone para protestar contra “o fim da Fundação Piratini, responsável pela TV E, e de muitas outras fundações do Estado, em desmonte brutal”.
Os prêmios iam concentrando-se entre três filmes: “Yomared”, de Lufe Bollini, sobre artista de rua ousada e sensual (Mariana Yomared), “Temporal”, de Gabriel Honzik, e “Sob Águas Claras e Inocentes”, de Emiliano Cunha). Coube a este realizador, ao conquistar o prêmio pela melhor direção, elevar ainda mais a temperatura no Palácio dos Festivais. Ele protestou contra o desmanche cultural do Estado, contra a extinção da Fundação Piratini e encerrou com um “Fora Sartori” (governador do Estado) e “Fora Temer”.
E aí deu-se o inesperado: o documentário “Secundas”, de Caco Nazário, que não havia ganho nenhum prêmio técnico ou artístico levou a láurea máxima (melhor filme do Gaúchão). Trata-se, há que se registrar, de um agit-prop dos mais incendiários. Já sob a administração do governador Sartori (peemedebista que sucedeu a governo petista), jovens secundaristas ocuparam colégio porto-alegrense por vários dias. Até decidirem ocupar a Secretária da Fazenda. Convocada, a Brigada Militar invadiu a repartição e, com cassetetes e muito gás lacrimogêneo, arrancou os estudantes com “espantoso uso da força”. Alguns foram presos.
Nazário lembrou que as imagens de seu documentário registram “a brutalidade das forças policiais enviadas por Sartori” e desfiou discurso duro contra o Governo Estadual e Federal, enfatizando “o golpe que destituiu um governo eleito”. Por fim, defendeu, com veemência, “as fundações que tantos e tão bons serviços prestam aos gaúchos”. Em especial, a TV Educativa, que transmitia a festa, ao vivo.
Competições oficiais
Se o primeiro concorrente brasileiro a melhor longa do 45º Fest Gramado – “O Matador”, de Marcelo Galvão – não agradou (e rendeu debate morno), o mesmo não se pode dizer dos outros dois concorrentes exibidos até agora: “Como nossos Pais”, de Laís Bodanzky, e “As Duas Irenes”, de Fábio Meira. Ambos tiveram boa recepção do público e debates concorridíssimos, com perguntas e respostas consistentes.
O quarto longa-metragem de Laís chegará aos cinemas dia 31 deste mês, escorado em sua enxuta, mas sólida, filmografia (“Bicho de Sete Cabeças”, “Chega de Saudade”, “As Melhores Coisas do Mundo”), em roteiro construído com engenhosidade, pela própria Laís e por Luiz Bolognesi (o mesmo de “Elis” e “Bingo, o Rei das Manhãs”) e com elenco afiado, no qual se destacam Clarisse Abujamra, Maria Ribeiro, Paulo Vilhena e Jorge Mautner. A trama, na qual as mulheres assumem a dianteira, não há grandes reviravoltas. Mãe e filha seguem suas vidas marcadas por atritos cotidianos, sem maiores consequências. Até que a filha Rosa saiba, por rompante da mãe, intelectual de esquerda, que não é filha de quem pensa ser seu pai. Afinal, fôra concebida em um Congresso de Educadores, em Havana. Assoberbada pelos afazeres diários (duas filhas pequenas, um marido ecologista ausente e envolvido em relacionamento extra-conjugal, uma meia-irmã fora do esquadro que irá se alojar em sua casa), Rosa se desdobrará em muitas. E experimentará relação amorosa fora do casamento.
O filme é forte concorrente ao Kikito principal e também em categorias como melhor atriz (Clarisse Abujamra ou Maria Ribeiro), roteiro, montagem (Rodrigo Menecucci) e fotografia (do espanhol Pedro J. Márquez, o mesmo da série “Quatro Dias em Havana”).
“As Duas Irenes”, que como o filme de Laís Bodanzky, iniciou sua carreira no Festival de Berlim, chegará ao público brasileiro no dia 14 de setembro. Seu diretor, o goiano Fábio Meira, de 37 anos, cursou a Escola Internacional de Cinema e TV de San Antonio de los Baños, nos arredores de Havana, e frequentou a última oficina de Roteiro (Como se Cuenta un Cuento) ministrada por Gabriel García Márquez. No curso de Gabo, surgiu a ideia de contar a história de duas pré-adolescentes, de mesmo nome (Irene) e idade (13 anos), filhas de relações diferentes de um mesmo pai. Uma Irene (a da matriz, filha dos personagens de Marco Ricca e Suzana Ribeiro) é tímida e de corpo bem miúdo. Sua irmã (da filial, cuja mãe é interpretada por Inês Peixoto, do Grupo Galpão, é expansiva, bonita e de corpo desenvolvido).
Ao descobrir a meia-irmã e a outra família do pai (Tonico, mais um personagem de Marco Ricca interpretado com complexidade e gestos mínimos), a Irene “oficial” aproxima-se da “intrusa”. O filme se construirá por caminhos imprevisíveis e chegará a um final em aberto e ousado. “As Duas Irenes”, rodado na Cidade de Goiás (Goiás Velho), resulta ema bela e promissora estreia de Fábio Meira. Também deve sair de Gramado com alguns Kikitos. Até agora, ninguém ofusca Marco Ricca como candidato a melhor ator.
A Mostra Latina só apresentou, até agora, um candidato: “Mirando al Cielo”, do uruguaio Guzmán García. No palco do Palácio do Festival, o realizador confessou-se admirador do cinema de Eduardo Coutinho. No debate, além de semelhança de métodos de trabalho com o grande documentarista brasileiro, foi destacada outra referência para o filme: “César Deve Morrer”, dos Irmãos Taviani. Neste filme, um grupo de presidiários interpreta um texto teatral. No de Guzmán, moradores de periferias de Montevideo atuam em grupo teatral comunitário e ensaiam peça que antagoniza encarcerados e guardas prisionais. E dão comoventes depoimentos ao cineasta, falando de suas pequenas vidas, de sonhos desfeitos, de amores frustrados, de maternidade. Um dos personagens, filho de um guerrilheiro tupamaro, revela a descoberta de sua homossexualidade. Único documentário da competição latina, o filme encanta pela qualidade dos testemunhos, pela clareza de sua proposta e mão segura de seu diretor, também roteirista e comontador.