João Paulo Miranda prepara seu primeiro longa em coprodução com a França
Foi quase por acaso que a coprodução internacional virou uma realidade para o cineasta João Paulo Miranda Maria. Antes de qualquer intenção de se aproximar dos produtores franceses, o paulista radicado em Rio Claro (cidade localizada a cerca de 190 quilômetros de São Paulo) apenas vislumbrava o Festival de Cannes como uma possibilidade distante de exibir o seu primeiro curta-metragem, intitulado “Command Action”. Sem nenhuma aproximação prévia com os curadores, o diretor enviou uma cópia do filme para a Semana da Crítica, em um DVD simples, naquela “caixinha transparente”, e pouco tempo depois recebeu um e-mail e uma ligação que mudariam os rumos da sua carreira cinematográfica, estabelecendo uma ponte direta para Paris e o sul da França.
De 2015 para 2017, Miranda Maria participou de dois laboratórios internacionais para jovens realizadores, teve três curtas-metragens selecionados para dois dos maiores festivais de cinema do mundo, ganhou uma Menção Especial do Júri de Cannes e se prepara para filmar o seu primeiro longa-metragem franco-brasileiro, “Casa de Antiguidades”, entre junho e julho de 2018.
Se antes o seu cinema soava meio “torto” e “caipira” para os amigos e colegas conterrâneos, foi dos franceses que ele recebeu a melhor acolhida, e lá descobriu que podia mirar em algo “mais artístico, mais cinematográfico” e, quase sem querer, acabar “tocando no lado mercadológico”, que a princípio parecia tão “marginal” quando comparado às tendências atuais.
Durante a própria Semana da Crítica, em 2015, Miranda Maria passou a perceber o olhar diferente dos jovens críticos que lá estavam. Meses depois, no Next Step – um laboratório que acontece em dezembro, na França, a partir de uma parceria da mostra com o Torino Film Lab –, ele teve a chance de começar a desenvolver os primeiros tratamentos do roteiro do seu longa-metragem de estreia. Foi lá também que teve um contato inicial com produtores franceses e uma consultoria voltada para a direção e a produção. Na ocasião, ele conheceu Didar Domehri, da Maneki Films, porém só no ano seguinte eles selariam a parceria internacional.
Dois meses antes de viajar para o laboratório, o diretor tinha acabado de filmar “A Moça que Dançou com o Diabo”, sem que ninguém da equipe de seleção tivesse a menor ideia da existência desse projeto. Ao chegar à França, durante as reuniões, ele mencionou a empreitada, que já estava em pós-produção, e surpreendeu o grupo. O que eles não esperavam, na verdade, era que o segundo curta-metragem acabaria sendo escolhido para o Festival de Cannes, só que agora para a Competição Oficial.
“Eu até achava que eles se comunicavam, mas depois fui ver que não era bem assim. Tanto que quando eu cheguei lá, durante o festival, em maio de 2016, a equipe da Oficial ficou surpresa ao saber que, no ano anterior, eu tinha estado na Semana da Crítica e eles só tinham me descoberto depois”, relata o diretor.
“Command Action” foi enviado para as duas seleções, mas só foi escolhido por Rémi Bonhomme, coordenador geral da Semana e que costuma vir aos festivais do Brasil e da América Latina para descobrir novos talentos, assim como Charles Tesson, hoje delegado geral da mostra. Na conversa entre Bonhomme e Miranda Maria, o francês teria dito que o filme “era muito diferente” do que eles estão acostumados a receber dos cineastas brasileiros e queriam “conhecer mais” sobre a sua visão de cinema.
Naquele mesmo ano de 2016, “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho, teve première internacional na mesma Competição Oficial, porém na mostra dos longas-metragens, e acabou ficando sem troféus. Eryk Rocha levou o prêmio Olho de Ouro para o documentário “Cinema Novo”, e João Paulo Miranda Maria recebeu a Menção Especial do Júri, além de ter a coprodução do longa-metragem alinhavada com a brasileira Bossa Nova Films (empresa majoritária) e a francesa Maneki Films. Poucos meses depois, o cineasta também foi selecionado para fazer a residência Cinéfondation, mas esse passo seguinte não foi tão automático.
Cinéfondation em Paris
Durante aquele Festival de Cannes, ele participou de um jantar, no qual foi apresentado à diretoria da Cinéfondation, que, a priori, ficou surpresa de ele ter sido selecionado em dois anos consecutivos. Nas palavras do diretor, nessa oportunidade, chegaram a comentar que era “realmente algo especial” e “uma coisa rara”. No entanto, o processo de seleção ocorreu normalmente, com o envio de muitos documentos e do roteiro de “Casa de Antiguidades”. Após uma longa entrevista por Skype com diversos agentes do setor cinematográfico francês, ele só recebeu a resposta afirmativa no final de 2016.
De fevereiro a junho de 2017, Miranda Maria imergiu na escrita das últimas versões do roteiro, “construindo e amadurecendo” o seu olhar autoral. Ele ficou hospedado no mesmo quarto em que estiveram abrigados cineastas como a argentina Lucrecia Martel e o brasileiro Gregorio Graziosi, em edições anteriores da mesma residência, cujo prédio fica localizado no bairro Pigalle, ao lado do boêmio Montmartre, em Paris. Além de ter acesso livre a museus e cinemas, os diretores residentes também se reúnem com potenciais coprodutores franceses e profissionais do setor.
Nesse meio tempo, ele conseguiu ainda fazer, na França, a pós-produção do seu terceiro curta-metragem, “Meninas Formicida”, que foi selecionado para o Festival de Veneza deste ano. E como o projeto do longa já estava bastante adiantado, ele progrediu ainda mais, avançando nas reuniões com a coprodutora francesa e fechando a colaboração do diretor de fotografia. “Casa de Antiguidades” terá Sefian El Fani no cargo, o mesmo de “Azul é a Cor Mais Quente”, filme de Abdellatif Kechiche, que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes em 2013.
“O Sofian adorou o projeto e está muito empolgado em trabalhar nesse estilo de cinema que eu venho fazendo nos curtas. Fez vários apontamentos sobre a questão da imagem”. Outra colaboração francesa na obra, de acordo com Miranda Maria, foi a construção da empatia do personagem: “Essa coisa de pensar mais no público, que eu não estava pensando muito quando fazia meus curtas. Porém, agora com o longa, que já tem toda a ideia de passar em circuito comercial de cinema, de alguma maneira tem que pensar mais em como criar esse diálogo”.
Universal e local
Ao mergulhar no cosmopolitismo parisiense, a dialética entre o local e o universal pesou ainda mais nesse processo criativo: “Eu falo muito de situações que tem a ver com a minha experiência no interior, porém tenho uma pretensão de criar uma questão estética mais universal, dialogando com esse panorama atual, com essa nova geração de cineastas. Quero fazer um filme que não funcione apenas no Brasil, mas que seja universal. Estar em Paris foi um prato cheio para pensar como eu conseguiria me colocar diante das discussões contemporâneas sobre arte e cinema. Como o meu filme, que vai ser filmado no Brasil, com uma história brasileira, falado em português, conseguirá dialogar esteticamente, artisticamente e até conceitualmente com esse panorama que surge nessas discussões atuais?”, reflete o diretor.
“Casa de Antiguidades” vai retratar a vida de um homem mais idoso que começa a trabalhar em uma fábrica de laticínios bastante moderna, mas que não se identifica com aquele lugar, com aquelas pessoas e com aquela sociedade. Até que, aos poucos, se aproxima do gado e vai se transformando em um animal, perdendo a conexão com o mundo contemporâneo e atingindo um estágio mais ancestral.
Neste momento, as produtoras estão aguardando o resultado de alguns editais e fundos nacionais e internacionais para estabelecer a participação oficial de cada uma na coprodução. A filmagem deverá acontecer somente no Brasil, nos Estados de Goiás e Santa Catarina, com pós-produção em Paris, no segundo semestre de 2018.
A ideia é que a obra fique pronta para ser apresentada aos curadores das diferentes mostras (oficiais e paralelas) do Festival de Cannes, em 2019. Até porque João Paulo Miranda Maria já faz parte da “Família Cannes” e há uma certa expectativa por parte do festival em assistir esse filme pronto, em primeira mão.
Por Belisa Figueiró
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